Por Kauane Müller e Lucas Delgado.
A torcida organizada do Inter-SM foi um primeiro respiro do que viria a ser o movimento LGBT em Santa Maria. Ao longo de quase vinte anos de existência e atuação, pode ter servido de referência em todo o estado e até mesmo em outras regiões do país. A Maré Vermelha transformou a arquibancada em um lugar em que lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (daí a sigla LGBT), marginalizados pela sociedade, encontravam alento e lutavam por seu espaço em meio a um ambiente tão masculino, como é o futebol. E, apesar do arranjo coletivo que uniu diversas pessoas LGBTs por mais de 15 anos – tal qual o fenômeno maré vermelha que necessita dos agentes em coletivo – havia algumas pessoas que se destacavam e coordenavam o movimento.
A data de fundação da Maré Vermelha é um completo mistério, é bem verdade – debateremos isso mais adiante. Entretanto, o que não se coloca em xeque é a importância de um nome para o início de uma das torcidas organizadas mais importantes do cenário do futebol do interior gaúcho. Marcelino Cabral é citado a todo instante como o pilar de tudo que aconteceu com a extinta torcida organizada. “O Marcelino foi sempre o nosso grande líder”, afirmou à reportagem Marquita Quevedo, ex-membro da Maré Vermelha. Outro integrante da torcida organizada nos anos 80 e 90, Cleocir Guimarães destaca a relevância do líder: “Marcelino conhecia várias pessoas da mídia, e isso ajudou bastante o movimento. Ele era um coordenador muito bom e que faz muita falta até hoje”.
Foi justamente Marcelino quem fez a conexão Carnaval-Futebol; uniu o Internacional de Santa Maria e a Escola de Samba Vila Brasil. “A Vila Brasil é a Escola de Samba mais antiga da cidade. Na época ela já tinha uma Ala Gay que formava a base da Maré Vermelha e que atuava como bateria da nossa charanga nos estádios”, relembra uma nostálgica Marquita. A Ala Gay da Vila Brasil sempre atraiu muitos olhares nos desfiles da avenida com seus cerca de 70 integrantes que viam ali uma oportunidade de aproximação com a sociedade santa-mariense. Marcelino foi parte fundamental também por ter sido quem utilizava a Maré Vermelha como local de fomentação dos debates sobre o ser LGBT na cidade de Santa Maria. Para outra ex-integrante da torcida, Cilene Rossi, Marcelino “foi uma pessoa que lutava pela causa LGBT e agregava à essa luta o seu próprio amor pelo time”. O amor pelo Internacional que, para alguns poderia ser secundário naquela situação, foi espalhado através das palavras e atitudes de Marcelino.
O grande líder da Maré faleceu em 2014; mesmo ano da despedida de outra figura que fortaleceu aquela que fora a primeira grande oportunidade de reunir, em espaço aberto e de forma relativamente tranquila, um grupo social tão marginalizado na cidade de Santa Maria: Manovan Gomes, o Mano, para os mais íntimos. “O Manovan, antes de qualquer coisa, era apaixonado pelo clube. As reuniões da torcida aconteciam justamente na casa dele e da Vó, como chamávamos a mãezinha dele. Os dois nos ajudaram muito a empurrar o Inter-SM”, afirma Cilene. Outro ex-membro da torcida, Matias Pinheiro Vieira, lembra a primeira vez que participou de uma reunião da torcida. “Quando cheguei lá, me deparei com a casa de uma família, uma senhora de idade, a Vó, o pessoal se preparando, o papel picado. O que eu senti na hora foi que aquele era um ambiente de acolhimento. Aquilo era coisa séria, ninguém estava ali para brincar.”
Manovan exercia sua função de roupeiro e de torcedor apaixonado pelo Inter-SM quando sofreu um mal-súbito. O caso aconteceu justamente em dia de decisivo jogo entre o clube do seu coração e o Futebol Clube Santa Cruz. Infelizmente Manovan não resistiu às emoções que o seu Inter-SM lhe proporcionou naquela noite e faleceu após uma vida inteira dedicada direta ou indiretamente ao seu Internacional.
Além de Mano e Marcelino, outras pessoas tantas pessoas formaram e batalharam pela Maré Vermelha, pelo Inter-SM e pelo movimento LGBT. Badeca, José Augusto, Faller, e tantos outros, esquecidos pela falta de registro histórico, e que colocaram suas esperanças de liberdade individual e coletiva nesse movimento surgido em um período de extremo conservadorismo.
Em um contexto marcado pela ditadura militar no Brasil e o boom da AIDS – epidemia que se iniciou no país nos anos 80 – aliados ao ambiente notoriamente machista e LGBTfóbico (palavra que expressa o ódio a pessoas LGBTs), a Maré Vermelha e a Ala Gay da escola de samba Vila Brasil podem ser consideradas a primeira iniciativa de organização do movimento LGBT em Santa Maria.
Estes dois ambientes foram a base para que se pudesse, mais tarde, ampliar o debate sobre o tema e também para que outros grupos e coletivos pudessem surgir – como o Coletivo Voe, espaço de militância pela diversidade sexual e de gênero na cidade. “A Maré vermelha naquele momento foi o único movimento organizado para dizer que nós gays existíamos, mesmo que de forma inocente. Brigando pelo nosso espaço, apesar do preconceito que havia.”, conta Marquita. Houve dias e momentos difíceis para os torcedores. O medo era um companheiro constante dos torcedores da Maré Vermelha: “quando chegava aquele ônibus com 40 homossexuais e travestis chamava atenção. Às vezes éramos recepcionados com pedradas; às vezes eu não tinha vontade de ir mais porque tinha medo de apanhar, ainda mais se o Inter ganhasse”, relembra Cleocir.
Fazer parte da torcida organizada foi uma maneira que o grupo encontrou para lutar pelo seu espaço também no futebol – e é claro festejar e se divertir. Juntos, formaram um grupo de apoio e tornaram a Maré Vermelha um símbolo da resistência dos LGBTs de Santa Maria nos anos 70, 80 e 90. Matias conta que estar na torcida mudou a forma como ele encarava a sua homosexualidade: “porque até então eu não conversava com ninguém sobre isso, não tinha outros amigos gays com quem eu pudesse conversar, me abrir. Isso influenciou muito na minha personalidade, no meu caráter”. O grupo servia ainda de suporte a quem se sentia discriminado tanto em sua própria casa como em ambientes externos. “Quando eu fui me assumir tive problemas com a minha família, decidi ir embora de Santa Maria e depois retornei. Quem me acolheu quando voltei foi o pessoal da Maré Vermelha”, explica Marquita Quevedo.
A Maré Vermelha foi a primeira organização de pessoas LGBTs em Santa Maria. Isto a fez assumir uma importância histórica pelo seu tamanho, pelo tempo que durou e por estar localizada no interior do Rio Grande do Sul. Assim, esta relevância se estende para o estado e também para o país. E, como acredita Matias, a Maré Vermelha não morreu, só foi pra alto mar, seguir novos rumos.
É evidente que a Maré Vermelha teve seu pontapé-inicial na tríade futebol-carnaval-movimento LGBT. O que não se tem certeza alguma é o momento em que se formou a inovadora torcida organizada na cidade de Santa Maria. “O que a gente sabe hoje é que ela surgiu após um grupo não ter o acesso permitido a um jogo do Riograndense, nos Eucaliptos. O grupo ficou frustrado e foi bem melhor acolhido no Inter-SM”, conta Marquita. Para os ex-integrantes a incerteza é tão grande que a fundação é considerada por uns na década de 70; para outros, na década seguinte.
A falta de confirmações por conta da falta de registros possibilitou a formação de uma rivalidade – sadia, diga-se de passagem – com outra torcida organizada que fez história. A Coligay, torcida do Grêmio Football Porto alegrense, foi a primeira torcida organizada formada por LGBTs entre os times das capitais do país – foi criada em 1977 e completou 40 anos de em 10 de abril deste ano.
Assim como a Maré Vermelha, poucos registros da Coligay foram feitos. Apesar disso, há um livro do jornalista Léo Gerschmann sobre a história da torcida tricolor que, à época, encontrou diversas dificuldades para aceitação de outros torcedores e também da diretoria do Grêmio, o que não aconteceu com a torcida organizada do Inter-SM. “O clube apoiava e a gente fazia o que queria. Tinha uma abertura bem grande porque eles confiavam em nós. A gente fazia a nossa parte e o clube a deles”, comenta Cleocir, que notou uma ruptura gradual do Internacional de Santa Maria e a torcida Maré Vermelha.
E foi no já citado “boom” da epidemia da AIDS e as informações falsas com relação a sua forma de contágio que a Maré Vermelha viu sua ligação com o Inter-SM ser perdida pouco a pouco. “Alguns torcedores da Maré saíram porque tinham medo de sofrer agressões por conta do que alguns chamavam de ‘câncer gay’. Começou ali a ruptura do nó na relação até o dia em que a Maré Vermelha deixou de fazer parte do Esporte Clube Internacional”, relembra Matias. O episódio que culminou no fim da histórica torcida organizada, entretanto, era de tensão para todos torcedores do Internacional de Santa Maria.
O DESGASTE DA MARÉ VERMELHA E A ESPERANÇA EM UM
No começo desta matéria citamos a importância de Marcelino Cabral para absolutamente tudo que viria a acontecer com a Maré Vermelha. Se a torcida foi bem aceita no clube e era pauta constante de diversas fontes de mídia da época – caso da revista Placar, que fez duas matérias sobre o movimento -, grande parte dos méritos são de Marcelino. O fim, por sua vez, também envolveu o líder da Maré Vermelha.
O Internacional passava por um momento delicado; havia muita pressão por parte das diversas torcidas organizadas que ocupavam constantemente as arquibancadas do Estádio Presidente Vargas. “Todos notavam que tava tudo muito tenso; diretoria, jogadores, a torcida. E aconteceu um protesto de todas as torcidas organizadas do Inter-SM”, afirma Matias.Ao fim da partida, ainda com os ânimos exaltados, alguns torcedores seguiram o protesto, enquanto os integrantes da Maré Vermelha se retiravam pelas saídas da Baixada Melancólica. “Um diretor fez um comentário com outra pessoa e o Marcelino ficou curiosom, foi perguntar se era sobre a torcida. Aí o dirigente deu um tapa no rosto do Marcelino. Como todo mundo tava exaltado eu e o Manovan retiramos ele dali para evitar maiores problemas” complementou o ex-integrante. Para Marquita Quevedo, “quando Marcelino sofreu a agressão a gente decidiu se retirar e não voltou mais [aos jogos do Inter-SM]”.
O fim da Maré Vermelha após quase duas décadas de atuação terminou com o sonho de um grupo tão importante para a cidade de Santa Maria. Quase 40 anos se passaram da fundação da torcida e pouco se sabe sobre ela. A história da Maré foi se perdendo com o passar dos anos, com as despedidas (em todos os sentidos) dos ex-integrantes e situações do imponderável.
Os registros existentes apenas na memória daqueles que viveram a Maré Vermelha são naturalmente perdidos ou então “danificados” pela ação do tempo. Para Marquita, faltou uma apreço do clube em preservar a memória: “a Maré Vermelha é uma página importante pra história do time. O clube superou um preconceito de uma época e deveria se orgulhar disso. Se hoje é difícil imagina naquele tempo. Os diretores e o clube nos abraçaram!”. O discurso da ex-integrante é compartilhado por outra ex-colega de torcida organizada. “Há um pouco de desinteresse com essa torcida que elevou o nome do Internacional. Faz falta esse carinho pela importância da Maré Vermelha […]. Acho que o time poderia ter uma memória pela história que a Maré teve pro Inter”, confessa Cilene Rossi.
Seguem vivos o carinho e a gratidão pela Maré Vermelha. De fundamental importância para todos que batalharam pelo seu espaço, pela sua liberdade e felicidade em uma época conturbada. Uma possível volta da torcida foi cogitada há alguns anos, quando o Internacional garantiu vaga para a Série A do Campeonato Gaúcho de 2008. “Quando o Inter subiu a gente cogitou reativar a Maré. E até conseguimos reunir um bom pessoal, mas acabou ficando só na vontade”, confidencia Marquita Quevedo. O fato é que, independente de um retorno ou não, a Maré Vermelha fez história. Nesses quase 90 anos de Internacional-SM, a torcida organizada é um dos acontecimentos mais belos e importantes do clube. Se um dia será reconhecida pelo clube e pela cidade? isso é mais um grande mistério desse movimento. Mas que a Maré Vermelha e todos seus incríveis personagens merecem não resta dúvida. Aguardemos mais algum inesperado capítulo da Maré Vermelha.
Fonte: Boca Jornalismo.