Marcelo Cerqueira – “Não há paralelo do Brasil de hoje com o da ditadura”

Marcelo Cerqueira em sua biblioteca. Foto: Ana Helena Tavares
Marcelo Cerqueira em sua biblioteca. Foto: Ana Helena Tavares.

Por Ana Helena Tavares, editora do QTMD?

Marcelo Cerqueira era vice-presidente da UNE, quando o prédio da entidade foi invadido em 1964. Exilou-se, mas por pouco tempo. Voltou ao Brasil em 1965.

Como advogado, perdeu as contas dos presos políticos que defendeu. Foi também deputado e é uma testemunha ocular de duas das décadas mais sombrias que o Brasil viveu.

Ele garante: “Nós estamos numa democracia. Os poderes estão funcionando, mal ou bem. A presidente está meio desorientada, mas é uma pessoa do bem.”

Leia abaixo trechos de entrevista exclusiva que ele concedeu a mim para o livro “O problema é ter medo do medo”, que estou escrevendo com uma série de depoimentos de pessoas que enfrentaram o medo instaurado pela ditadura militar brasileira.

Os trechos a seguir se referem à segunda parte da entrevista, em que ele analisou o Brasil atual. A primeira parte, bem maior, em que falamos sobre ditadura e Comissão da Verdade, fica reservada para o livro.

Movimento “difuso”

“O mundo é diferente. Não há nenhuma relação entre (a ditadura e) os movimentos de rua, que são espontâneos, autônomos, convocados pelas redes, e que têm o direito de se manifestar. Não tem nenhum ponto de contato com nada do que aconteceu no Brasil até hoje. Falam em Primavera Árabe, mas lá houve outra motivação. Occupy Wall Street foi negócio econômico e financeiro. Na Europa Meridional, é o desemprego. No Brasil, é difuso. Não era o Passe Livre, tanto que continuou. Mas não faço nenhuma relação com a ditadura militar.”

“Nada perto do Dr. Ulysses”

“Nós estamos numa democracia. Os poderes estão funcionando, mal ou bem. A presidente está meio desorientada, mas é uma pessoa do bem. O Congresso é essa tristeza que você vê. Um Congresso terrível. Nada perto de quando o Dr. Ulysses era presidente (da Câmara) e eu era deputado. É um Congresso na base do dinheiro, das emendas, uma vergonha.”

“Ninguém em sã consciência pode ficar contra o bolsa família”

“Ora, o Brasil há muitos anos não investe em transportes, portos, aeroportos, saneamento básico. O dinheiro foi gasto no consumo. Aliás, é uma parte muito bem gasta com o bolsa família. Com relação a isso, não tem nenhuma dúvida. Acho que ninguém em sã consciência pode ficar contra o bolsa família e as melhorias das condições de vida. Agora como estão a educação, a saúde e a mobilidade urbana… Nada.”

Classe média endividada

“E esses incentivos que são dados para a compra de carros são “uma faca de dois legumes”, porque você diminui o IPI, a classe média se endivida… Além disso, há mais carro na rua e não há ônibus de boa qualidade, são uma porcaria. Você viu aí a revolta… O metrô já não aguenta mais… E o governo tem idéias paranoicas, como esse trem bala Rio-Campinas. Isso é uma loucura, já se gastou 1 milhão de dólares só pra fazer o projeto. E a cada vez o BNDES aumenta mais… E o dinheiro do BNDES é muito caro, porque ele empresta barato, mas como ele não tem dinheiro dele, o tesouro empresta.”

“Não vejo possibilidade de novo golpe”

“Enfim, nós estamos vivendo uma fase de transição, em que esgotou um ciclo político junto com o ciclo econômico que o sustentava. Não quer dizer que as forças que estão no poder, se renovadas, não poderão se manter. Não vejo possibilidade de novo golpe. Ao contrário. Acho que as discussões estão sólidas. A presidente está meio perdida, repito, mas é do bem.”

Órgãos públicos sem identificação com o povo

“O poder imperial que vem se aprofundando cada vez mais no Brasil nas mãos da presidência é muito grande, então você ter uma presidente que, embora estando meio perdida, é uma pessoa do bem, isso é muito importante. O governo dela, com 39 ministérios, e também com órgãos como a ANVISA, a ANAC, é um governo muito ruim. Não há identificação do povo com os órgãos públicos. Quem está lá ninguém sabe. Tudo é loteamento de cargo.”

A Constituinte exclusiva

“Porém, como ela é do bem, tenho certeza de que ela não caminhará para levar o país a uma situação extralegal. Ela primeiro quis uma Constituinte de “calça curta”… A nossa Constituição, que é semelhante à norte-americana, é rígida, só pode ser modificada nos termos que ela quer. Então o que você pode fazer é Emenda Constitucional desde que não fira as chamadas Cláusulas Pétreas e a separação dos poderes do artigo 60. Então não há espaço na Constituição brasileira para uma Constituinte derivada ou exclusiva.Tanto que ela já abandonou.”

Plebiscito tem que ser por Emenda Constitucional

“Agora tá no negócio do plebiscito. O plebiscito dá quando é binário. Por exemplo, contra ou a favor da monarquia. Mas como você vai levar a plebiscito matérias como voto distrital, candidatura avulsa, financiamento de campanha? É complicado, mas vamos admitir que possa passar como Emenda Constitucional. Porque o artigo 14 fala em lei, que pode ser ordinária complementar ou constitucional. Então, o plebiscito, se houver, tem que ser convocado por Emenda Constitucional.”

“Esse Congresso não vai fazer lei nenhuma”

“Vamos admitir que tudo dê certo. Sem ser binário, com quais elementos o Tribunal pode apurar isso, meu Deus? E ainda tem o fato de que tem de estar promulgado até 03  de Outubro. Há também a possibilidade do referendo e a da lei de iniciativa popular, como foi a Ficha Limpa. O referendo é binário, mas (ao contrário do plebiscito) é feito depois de o Congresso aprovar alguma lei. A população diz sim ou não à lei já feita. Mas é complexo, porque esse Congresso não vai fazer lei nenhuma. Nunca fez uma Reforma Política. O deputado é eleito num esquema e não vai querer mudar.”

Constitucionalistas divergem

“Então, eu achava mais interessante tentar o caminho de uma lei, como foi a Ficha Limpa. A OAB, por exemplo, tem condições políticas e prestígio para organizar um fórum e propor uma reforma. Pegar 5 milhões de assinaturas, encurralar o Congresso e obrigá-lo a votar. A Ordem seria a “convidante”, essa é uma idéia. Mas também é uma coisa muito difícil, porque entre nós mesmos, constitucionalistas de esquerda, há divergências.”

“O mais importante é coibir o poder econômico”

“Há um elenco muito grande de possibilidades. Por exemplo, o tipo de voto: distrital, distrital misto, proporcional, etc. Isso tinha que ser enxugado para ficar de mais fácil entendimento. E o mais importante é coibir o poder econômico. Isso é fundamental. Acho que isso é simples: empresa não pode, fundo partidário não pode! Só pode o eleitor. Uma pequena percentagem de sua renda anual. Aí diminui essas coisas de marqueteiros, essas coisas externas, “globalizadas” da Globo.”

“A questão não é apertar na pena”

“Eu acho muito difícil responder ao clamor das ruas. O Congresso votou a corrupção como crime hediondo, mas eu acho que isso é um negócio que não tem muita importância. Aumenta a pena. Mas inibe? Não! Se inibe, bota pena de morte. Não inibe! A questão não é apertar na pena. É apertar na irrigação. Como bota o dinheiro na campanha? Empresa não pode e fundo partidário não é para isso.”

Fonte: QTMD?

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