Lohana, no tenías permiso para irte

Por Linete Martins.

Ouvir, conhecer e contar histórias. O jornalismo é apaixonante também por isso e porque em alguns momentos da vida a gente encontra personagens inesquecíveis, com relatos tão intensos que representam não somente a si mesmas, mas uma infinidade de pessoas.

 A travesti argentina Lohana Berkins,  que conheci e entrevistei em São Paulo para a revista “Caros Amigos” (fevereiro, 2001), era assim: ativista, engajada e referência internacional nos debates sobre organização das minorias e a busca incessante por uma nova sociedade, com respeito e garantia de direitos e cidadania.

Lohana faleceu em cinco de fevereiro deste ano em Buenos Aires, aos 50 anos de idade. Além de sua coragem e exemplo de engajamento, em depoimentos como nessa entrevista que volta a ser publicada , fica a sua capacidade de, através da compreensão e recortes de suas experiências, falar também de muitas e muitas pessoas que passaram pelas mesmas dores e sonhos. E representá-las.

A íntegra da entrevista não está no site da Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade (ADEH) por acaso. É publicada neste momento em que a entidade mostra sua força de organização e consegue que o filme “A Garota Dinamarquesa”, sobre a primeira pessoa a fazer cirurgia de mudança de sexo, seja exibido nos cinemas de Florianópolis (SC).

A entidade divulgou uma carta de repúdio com denúncias sobre a possibilidade do filme não ser exibido nos cinemas locais. O filme entrou em cartaz e a ADEH levou homens e mulheres transexuais e travestis para assistir ao filme gratuitamente nesta quarta-feira (24/02), na sessão das 19h do Beiramar Shopping, em Florianópolis.  O movimento de visibilidade foi chamado de “OcupaAdeh”.

Passada mais de uma década, são muito atuais as palavras de Lohana Berkins.

 

Um desafio

Por Linete Martins.

Lohana 1

 “HOJE, NA ARGENTINA, NINGUÉM DESCONHECE A REALIDADE DOS TRAVESTIS. TEMOS VOZ POLÍTICA E, SOBREUDO, TEMOS NOSSA PRÓPRIA VOZ. O MELHOR QUE PODE ACONTECER A QUALQUER MOVIMENTO É QUE NINGUÉM FALE EM NOME DELE, MAS QUE AS PESSOAS FALEM POR SI MESMAS E CONTEM SOBRE SUA REALIDADE.”

“Se há milhares de travestis na ruas que se prostituem à noite, submetidas à violência policial e à exclusão social, é porque há milhares de homens que usufruem dessa prostituição e que, durante o dia, não sofrem discriminação alguma por uma sociedade capitalista e hipócrita”. A afirmação é de Lohana Berkins, 38 anos, travesti, coordenadora da ALIT (Asociación de Lucha por La Identidad Travesti-Transexual), entidade criada há oito anos na Argentina, em reação à repressão do Estado aos travestis e para lutar pela construção de uma sociedade com novos valores culturais onde possa haver também liberdade de gênero.

 Lohana esteve no Brasil para participar do VI Seminário Internacional da Revista América Libre – Socialismo: Experiências e Perspectivas, realizado em dezembro último. Diante de um público de mais de quinhentas pessoas, no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, ele falou do desrespeito da sociedade em relação aos travestis e desafiou os partidos de esquerda a serem realmente revolucionários: “Penso que uma sociedade realmente livre será uma sociedade onde não haverá opressão de nenhum tipo, sem hierarquias. A esquerda não vai ser verdadeiramente revolucionária se não incorporar todas as lutas, como as das mulheres, das minorias sexuais, da descriminalização do aborto”.

Nascida em Salta – província ao norte da Argentina, na divisa com a Bolívia -, Lohana foi expulsa de casa aos 13 anos, quando a família descobriu que sua propensão sexual não condizia com o papel determinado culturalmente às pessoas do sexo masculino. Ela teve doze irmãos, o pai trabalhava numa empresa de petróleo e a mãe era dona de casa. “Éramos bem de vida”, conta. A partir dos 21 anos, Lohana começou a se reaproximar da família.

O INÍCIO

“O travestismo se dá numa idade muito tenra. A primeira coisa que nos atinge é a expulsão do lugar onde nascemos. É como uma maça podre que deve ser expulsa para não contaminar tudo ao redor. Sofremos uma orfandade familiar. Imagina uma criança de 12, 13 anos, na rua. E então, o Estado também nos expulsa, condena à prostituição, à pobreza, à marginalidade. Prefiro dizer excluído, não gosto de falar marginal. Pra mim, exclusão é quando a burguesia hipócrita desse sistema neoliberal exclui um grupo de pessoas. Dizem ‘essas pessoas não podem comer, essas pessoas não terão direitos porque não servem ao sistema’. Isso, pra mim, é exclusão. E sou uma excluída desse sistema.”

A INFÂNCIA

“Quando encontro com meus irmãos e começamos a falar sobre a infância, parece que temos duas histórias diferentes. Como eles seguiram juntos e viveram outras histórias, há momentos que eles não recordam e, como fui às ruas e queria me apegar a algo, tenho muito mais memórias dessas histórias que eles esqueceram. Eu digo: ‘Lembras quando uma vez vinha a tia…?’ E eles dizem: ‘Como lembras disso?’ Como eles viveram outras coisas, essas histórias desapareceram. Mas esses poucos pedaços da história familiar eu gravei a fogo e recordo e fantasio.”

A MILITÂNCIA

“Muita gente vai à capital federal, Buenos Aires, escapando da pobreza e da repressão das províncias. Uma vez, a polícia invadiu o apartamento de uma companheira e fomos pedir ajuda a um companheiro gay, muito conhecido. Ele nos deu ajuda e perguntou por que não nos organizávamos. Quando começamos a nos organizar, algumas diziam que éramos loucas, que nada iria mudar, que a sociedade não estava preparada, que não importávamos em nada. Dizíamos que não. A partir de 1992, começamos um movimento que organizou 10.000 companheiras.”

“Nos últimos oito anos conseguimos um impacto muito grande na sociedade. Hoje, na Argentina, ninguém desconhece a realidade dos travestis. Temos voz política e, sobretudo, temos nossa própria voz. O melhor que pode acontecer a qualquer movimento é que ninguém fale em nome dele, mas que as pessoas falem por si mesmas e contem sobre sua realidade.”

 

O MODELO

“Quando tens um genital, tens que atuar de uma maneira. Se tens um pênis, tens que atuar como um homem forte, macho, viril, protetor. Se tens uma vagina, é uma mulher, parideira de filhos. Nessa realidade, eu pensava que tinha que decidir entre um e outro. Um dia, me dei conta de que não. De que posso viver com a minha identidade, que o travestismo é a minha identidade. Que não tenho que me comportar como um varão por ter pênis, nem como mulher por ter peitos e me chamar Lohana. Posso ser eu mesma: uma pessoa que vive com uma genitália e se constrói em outro gênero. A sociedade está acostumada a um só modelo: o homem é muito forte e a mulher, muito feminina, menina, loira, bela, escultural. É o modelo comercial, Hollywood.”

OS DIREITOS

“O Estado nos nega saúde, educação, direito de viver e trabalhar dignamente. Uma coisa é que sou travesti e outra é a minha capacidade para ser secretária, enfermeira, jornalista,médica e também para estar no sistema democrático para eleger nossos candidatos e também sermos eleitas. Nós temos uma campanha, Construindo a Cidadania Travesti. Mas cidadania não no sentido liberal, mas amplo da palavra, no sentido socialista da cidadania. Da construção de uma identidade travesti muito mais forte. A opressão que sofremos vai desde o castigo físico, do insulto, o menosprezo, o descaso, à prisão e à morte.”

  “Quando nos vêm na rua, na prostituição, nos chamam de pecadoras. Quando reclamamos nossos direitos, nos chamam de comunistas. As pessoas pedem prisão pra quem exerce a prostituição, mas não dizem nada contra quem usufrui dessa prostituição nem pensam em porque existe a prostituição. Para muitas pessoas, mulheres, homens e travestis, a única possibilidade de subsistência é a prostituição. As pessoas não pensam em defender os direitos de quem se prostitui nem em buscar alternativas para que se abandone a prostituição. O castigo não é nenhuma forma de redenção. Os mesmos homens que, em carros muito caros, vão procurar os travestis à noite, no outro dia pedem quem nos encarcerem. É um jogo hipócrita. Por que o homem vai buscar o prazer em um excluído e não namora, vive publicamente e vai tomar um café e passear com ele?”

“Um dos maiores problemas que enfrentamos com as próprias travestis é que elas não reconhecem o travestismo como sua identidade. Temos muito poucos elementos para trabalhar com o tema identidade. Procuramos estimulá-las a viver com dignidade para que passem por um processo interno, reclamem seus direitos. Sou a pessoa mais feliz do mundo, amo ser travesti, amo meu corpo e o que sou. Vou aonde quer que seja e não sinto que sou um monstro. É isso que dizemos às companheiras: que vão a uma praça, à praia, que saiam à rua, que se mostrem.”

O EXÍLIO

“Milhares de companheiras brasileiras, argentinas, peruanas, latino-americanas vão viver na Europa, escapando da repressão em seus países. Muitas nunca mais voltam. Morrem no anonimato. Além de viver o exílio de gênero, vivem também o exílio da terra.”

A IDENTIDADE

“A sociedade tem amnésia em relação os travestis. Nenhum governo tem programas específicos para os travestis. Na educação, nem se fala de gênero. Existe invisibilidade, temos que construir um mundo próprio que nos reconheça e a nossos direito. As igrejas também nos condenam. Acredito em Deus, mas eum DFeus de amor, divertido, que me criou, não num Deus castigador. A igreja não tem nenhuma misericórdia para conosco, castiga e culpa o tempo todo. Então, a pergunta que sempre me faço é como se constrói uma pessoa do nada, sem referentes? Os travestis não têm referentes. No Brasil, a única referência é Roberta Close. Não há uma referência deputada, enfermeira, jornalista, política. A única referência é a prostituição.”

 

“ACREDITO NUM MUNDO DIFERENTE ONDE TODOS TEREMOS ACESSO E DIREITO A TUDO, UM MUNDO SEM ESSA BURGUESIA HIPÓCRITA.”

Lohana 2

O SOCIALISMO

“Acredito que, originariamente, vivo à esquerda da sociedade porque sou pobre, vivo excluída porque não posso trabalhar, não posso nada. Sou de esquerda e acredito muito no socialismo. Luto pelas pessoas sem terra, contra a opressão à mulher. Um dos grandes males deste mundo é o imperialismo, o autoritarismo das ditaduras militares que arrasaram a América Latina. Acredito firmemente na criação de um novo sujeito, uma nova sujeita. Acredito num mundo diferente onde todos teremos acesso e direito a tudo, um mundo sem essa burguesia hipócrita. Uma sociedade com liberdade, que começa com a liberdade de exercer a minha sexualidade como eu quiser.”

Até dois anos atrás, Lohana Berkins sobreviveu se prostituindo nas ruas de Buenos Aires. Atualmente trabalha como secretária no gabinete do deputado de esquerda Patricio Echegaray e é assessora de direitos humanos da força política Esquerda Unida. Durante o período que trabalhou nas ruas, foi presa inúmeras vezes. Quando pediu sua folha corrida para obter passaporte, percebeu que, somadas todas as prisões, esteve encarcerada por sete anos. Pergunto como se manteve firme na prisão e resistiu à violência. “Sou uma pessoa alegre e fantasiava sempre”, me respondeu. Numa das vezes em que foi presa, teve a cabeça raspada.

    -Coronel, pode me vestir de gaúcho, que você não vai matar a Lohana que eu tenho aqui dentro – disse, apontando para o próprio peito.

   Somente no ano 2000, Lohana participou de discussões sobre travestis e transexuais em várias províncias da Argentina e viajou para o Brasil, Chile, Bolívia, Paraguai, Peru, México e Estados Unidos para trocar informações. Em todos os lugares tem questionado o padrão que a sociedade machista estabelece tanto para os travestis como para as mulheres. Também tem apontado as três principais causas da morte dos travestis: cirurgias clandestinas, AIDS e violência policial.

  Enquanto se prostituía, Lohana teve um parceiro fixo por dezesseis anos. No entanto, à medida que se dedicava à militância política, acabava o relacionamento. No final de 2000, Lohana concluiu o curso secundário na Argentina e começa a se preparar para cursar a universidade: quer estudar direito.

 – Quando eu era adolescente, me tiraram da escola. Diziam “Bicha! Bicha!” Agora eu me sinto forte, assumo a minha identidade.

O DOCUMENTO

 

Segundo Lohana, a organização dos travestis e transexuais na Argentina – que começou com pequenas reuniões e foi se ampliando por meio de encontros sempre maiores, trezentas, quatrocentas pessoas cada vez – buscou enfrentar a repressão estatal com a permanente denúncia da violência contra as chamadas minorias:

– Vivemos dois tipos de opressão: a social e a do Estado. A nossa sociedade celebra a violência do Estado, quando este mata a diferença, os pobres, os travestis.

De acordo com documento Informe Preliminar sobre la Situación de las Travestis em La Ciudad de Buenos Aires (1999), divulgado por Lohana no seminário realizado em São paulo, os maus tratos físicos e psicológicos aparecem como os principais atos de violência mencionados por travestis que responderam a uma pesquisa sobre a sua própria condição. O mesmo documento revela que essa violência ocorre tanto nas delegacias e prisões quanto nas ruas públicas. 

Lohana 3

Fotos enviadas pela autora.

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