Livro de passatempos apresenta cientistas negras para crianças

Lançado por acadêmicas da Universidade Federal do Paraná, livro quer dar visibilidade a pesquisadoras negras, e estimular meninas a seguir carreira nas ciências

Foto de topo: divulgação

Por Rafael Ciscati. 

Quando Enedina Marques se formou engenheira, em 1945, ela era uma dupla excessão. Na sua turma da Universidade Federal do Paraná (UFPR), era a única mulher. Dentre as engenheiras formadas no Brasil até aquela data, era a única negra. Nascida em família pobre, Enedina era filha de uma empregada doméstica, e teve parte dos estudos custeada pelo patrão da mãe. “Enedina, até hoje, é uma referência para todo mundo que faz ciência no Paraná. E sua importância extrapola esses limites”, conta a professora Camila Silveira, do departamento de química da UFPR.

A história de Enedina é uma das 14 contadas no livro de passatempos Cientistas Negras Brasileiras, lançado por Camila e suas colegas em novembro passado. De maneira lúdica, por meio de cruzadinhas e desenhos para colorir, o livro narra a vida e as pesquisas conduzidas por intelectuais negras que cruzam o século XX, e cujos trabalhos vão da engenharia à linguística.

Estão lá a ex-ministra Luiza Bairros, nome fundamental na luta antirracista no Brasil; a escritora Conceição Evaristo; e a citotecnologista — uma especialista no estudo das células — Simone Maia Evaristo.

A obra é resultado do projeto de extensão coordenado por Camila na UFPR, o Mulheres e Meninas na Ciência. Em atividade desde começo de 2020, o grupo organiza materiais de divulgação científica, jogos e (nos tempos pré-pandemia) atividades em escolas de ensino fundamental. O objetivo é  dar visibilidade ao trabalho de mulheres acadêmicas, e estimular o interesse de meninas por carreiras nas ciências.

A tarefa é árdua. Hoje, as carreiras científicas são um campo dominado por homens. “Vivemos uma cultura que não ensina às meninas que elas podem ser boas em matemática ou química, por exemplo”, avalia Camila. O quadro é mais grave justamente no campo das chamadas ciências duras, apelidadas, em inglês, de STEM (sigla para ciência, tecnologia, engenharia e matemática). De acordo com dados levantados pela Unesco, as mulheres correspondem a somente 30% dos pesquisadores dessas disciplinas. O número diminui conforme avançam na carreira. Em 2015, dados do CNPQ indicavam que, dos cientistas seniores que receberam bolsas de pesquisa naquele ano, 76% eram homens. No topo das carreiras científicas, mulheres são minoria.

Antes de escrever o livro, Camila e as colegas levantaram dados para mensurar o desequilíbrio de gênero na própria instituição de ensino. O levantamento foi acompanhado por entrevistas com cientistas em diferentes pontos da carreira. O objetivo era mapear “trajetórias impossíveis”: “Aquelas trajetórias que as mulheres planejavam trilhar, mas foram impedidas de seguir”, explica Camila.

Os relatos narram uma sucessão de obstáculos e violências. Há casos de cientistas que mudaram a forma de se vestir, temendo chamar atenção em um ambiente masculino. Outras, que mudaram o jeito de falar, receando ser vistas como femininas demais. Para a maioria delas, a maternidade era apontada como um complicador. “A carreira acadêmica cobra produtividade, disponibilidade para viagens e intercâmbios”, diz Camila. Essas demandas entram em conflito com a necessidade de cuidar das crianças em casa — tarefa ainda assumida, na maioria dos casos relatados, pelas mulheres. “No fim, a carreira é estruturada para os homens”, conclui a professora.

O cenário é pior para as mulheres negras. Além das agressões de gênero e o preconceito racial, pesa contra elas uma perene sensação de solidão. “Elas nos diziam sentir, o tempo todo, não pertencer àquele lugar. Porque não havia, ali, outras pessoas como elas”, lembra Camila.

O livro de passatempos surgiu como um desdobramento dessa pesquisa inicial. Com ele, o grupo pretende prestar tributo, e visibilizar as contribuições dessas pesquisadoras negras à ciência nacional.

A excessão de Camila, as demais cinco autoras da obra são  negras. O grande dilema do trabalho, conta ela, foi justamente selecionar quais nomes seriam perfilados. De início, o material fora pensado para ser usado em escolas, e lido por crianças. Por isso, era importante que fosse sintético. “Começamos com uma seleção preliminar de 50 mulheres, que viraram uma lista de 14”, lembra Camila.

No fim, para surpresa das autoras, o publico leitor se provou mais amplo que o previsto. “Recebemos relatos de pessoas idosas que gostaram de fazer os passatempos. E o livro foi usado no programa de treinamento de uma multinacional”, diz a professora. Elas também encontraram uma solução para driblar os limites do espaço reduzido: decidiram transformar a obra em uma série de publicações. O segundo volume do Cientistas Negras Brasileiras deve ser lançado em 2021.

Camila conta que, embora o objetivo central do projeto seja estimular o interesse de meninas por ciência, essa é uma missão importante para toda a sociedade. “Com os nossos materiais, queremos falar com meninas, meninos, e com os homens”, afirma. Toda a sociedade ganha conforme aumenta a diversidade das equipes de cientistas. Uma pesquisa da editora Elsevier, especializada na publicação de periódicos científicos, mostrou que pesquisas lideradas por mulheres costumam ser mais interdisciplinares: olhar para problemas a partir de diferentes perspectivas. Em 1945, quando se formou em engenharia, a pioneira Enedina Marques era uma excessão. É preciso trabalhar para que histórias como a dela se tornem coisa corriqueira.

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