Livre-se (d)o povo

Por Rafael Reginato, para Desacato.info.

O povo é o Outro ou é nós mesmos? Que grau de empatia, de representação ou de “colocar-se no lugar do outro” é a cada um de nós consciencializado? E quem é “esse Outro”? Longe de uma massa homogênea, uniforme, o povo brasileiro parece viver neste momento uma atroz crise que, política, econômica e ideológica, é também, e talvez acima de tudo, uma grave crise identitária. Há um espelho rachado por um discurso que, embora claramente fabricado por uma elite (e elite é sempre de poucos), encontra um eco letal no imaginário coletivo de muitos que, reverberando ventriloquamente tal discurso exclusivista, colaboram para a iminência de um genocídio de ideais de vida, de condenação ao progressismo e à evolução, quase como a caminhar bovinamente para uma seita de morte ou autoimolação sadomasoquista pensando não sujar as próprias mãos.

Identificar-se com o algoz num cenário de violência e auto-violação, acreditar na salvação individual às custas da maioria sacrificada ao entorno, é utopia maior do que qualquer utopia. É cegamente não compreender que, déspota de si mesmo, pensando estar incólume num cenário como este, emaranha-se cada vez mais numa outra topia (topos): a distopia. Povo somos todos nós, trabalhadores ou desempregados. Nem mesmo a certeza de que alguns possam ser mais subalternos do que outros dentro desta realidade nos exime da subalternidade, do servilismo a caminho do feudal em nosso caso. Se não compreendermos esse aviso no horizonte, não conseguiremos compreender que mulheres negras do Terceiro Mundo estejam ainda mais profundamente na obscuridade existencial do que o sujeito subalterno, como afirma a renomada professora da Columbia University, a indiana Gayatri Spivak. Somos brancos e brancas, loiros e loiras, pardos e pardas em negação e, maioritariamente, não somos atingidos por tal condição feminina negra de Terceiro Mundo. Esquecemos, no entanto, estarmos mais próximos dessa condição do que da de milionários arianos que monopolizam o topo da pirâmide. Do pescoço para baixo, somos todos povo, aleijados da riqueza do cume. As mulheres negras do Terceiro Mundo não estão aos nossos pés, elas gritam emudecidas diante de nós, sendo que somos nós mesmos, mudos diante desse Outro, que ajudamos a emudecê-las e, emudecendo-as, emudecemos duplamente a nós mesmos perante os expropriadores do alto estreito da pirâmide que assistem, sorridentes e sádicos, ao ocaso de um povo inteiro.

Torna-se cada vez mais claro que um povo que não se reconhece individualmente como povo acaba condenado não só à alienação global, mas ao vazio da existência, da identidade, à depressão fácil que não se cura com placebos enquanto nossa consciência infantil não acreditar que podemos mais do que esperar pelo Salvador que, diga-se de passagem, costuma sempre estar nos olhando de cima.

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