Lis. Por Flávio Carvalho.

 

Foto: Reprodução

Por Flávio Carvalho.

Importante é aquele sofrimento com que a gente procura buscar e achar… O que me interessa mesmo é criar.”

(Chico Buarque. Entrevista.)

Sentia-se uma merda. Naqueles dias, só queria escrever e escrever. E escrever.

De fato, não se sentia mulher, gente, ser humano ou bicho. Era somente um livro. Incompleto. Um quase livro.  

Para distrair-se, observou, por minutos que pareciam uma eternidade, a velha Winchester 1971 na parede, bem em cima da falsa lareira. Uma daquelas muitas cadeiras, naquela sala empestada de tantas cadeiras (“mas, pra que tantas cadeiras?!”), foi suficiente para alcançá-la. Para tirar a poeira da Winchester, um bom sopro e pronto. Não: melhor aquele pano de amarrar cortina. Agora sim. Limpinha, limpinha. Pronta para profanar toda a sala ampla e alva. Branquinha, daquele branco tão diplomático.

Nunca soube como aprendeu a matar, com arma velha e ainda útil.

O primeiro alvo, já sem o casaco de pele, foi a mulher do vice-cônsul, colega de trabalho do seu marido. Havia odiado mais o casaco que a mulher, logo que a viu chegar. O próximo tiro destinou-se a espantar o próprio consorte. Que, por certo, deveria ter sido o primeiro. Tudo era questão de sentimentos. Não somente o espantou (mais o seu que os outros maridos presentes), como lhe abriu o pescoço, de tão perto que estava. Aumentou, mais do que pensava, a vontade de seguir disparando. Havia sangue, então, em todos os brancos. Em todas as cortinas do século passado. Em todos os guardanapos bordados. E em todas as toalhas de crochê.

Foi na exata hora que seu marido, centro das atenções, propôs o brinde. Todos ergueram meias taças de champanhe. Até mesmo os que não bebiam, cumprindo ritual.

Tudo – infelizmente, para ela – voltou ao normal.

O êxito nunca foi, para Clarice, algo surpreendente. A falta de êxito sim, até então. Abalava-lhe de verdade a autoestima. Como somente ela sabia.

Um segredo menor, entre tantos.

Precisava urgente voltar a estar só, a escrever. Nem que fosse metade de um conto, meio livro ou até mesmo um começo, só o comecinho, de uma frágil poesia.

Mas como nada era verdade absoluta em tudo que imaginava (e imaginava…!), decidiu voltar à sala. Antes que notassem sua falta, no meio de toda aquela hipocrisia.

Na volta, sabendo como ninguém de onde saíam todos aqueles garçons, atacou a primeira taça. Sem que ninguém percebesse, virou-a de um só gole, bebendo somente pelo não gostar de beber.

Quando queria, possuía incomum capacidade de não ser percebida. Por outro lado, tampouco compreendia a naturalidade como, sem querer, chamava tanta atenção. Principalmente quando ela menos queria. E somente ela sabia o quanto era mais de não querer, que de querer.

Não lhe saía da memória os primeiros anos de chegada ao Brasil. Quando o padrinho, que concentrava boa parte dos seus piores sentimentos, decidiu reduzir-lhe nome e sobrenome a pronunciar mais que alta a letra i daquele diminutivo carinhoso e, (para ela) nojento: Liiiiis.

Naquela noite mais que nunca, em todos os seus até então poucos anos, sentia-se odiosa, aquela tal de Liiiiis, coisinha tão bonitiiinha do padrinho.

Adorava a Rua do Hospício.

Odiava a Praça Maciel Pinheiro, Praça dos Judeus.

Passaram-se os anos e o desprezo por aquelas recepções oficiais somente aumentava. Entre inúmeras imposturas do ofício conjugal.

O diplomata sabia. Mas como péssimo marido, desde a segunda noite de lua de mel, aprendeu a disfarçar suas más vontades e seguiu convocando todas aquelas pessoas que ela, solenemente e com exitoso fingimento, repugnava.

Clarice entendia que o objetivo seria transformar tudo em obra literária, no final da festa, vomitando todas aquelas taças de champanhe em forma de palavras soltas no papel em branco. Junto com cada palavra nunca bebida naquela noite. E que sabia que, ainda assim, as vomitaria.

Tudo que ela necessitava: ler, ler-se, e escrever, escrever-se.

Gritava o diplomata:

– Clariiinha, meu amor, vem cá. Venha logo escutar o apreciado compositor.

Outra vez, aquelas desgraçadas letras is.

Passaram-se anos até que ela sentisse novamente cada letra dessa palavra, Compositor. Duas vezes na sua vida esteve tão carregada de significados. Primeiro na atividade social antes mencionada, quando sentiu o imenso desprazer em escutar o – para ela, nada apreciado – compositor. E como tudo na sua vida era mal e bem, nessa respectiva ordem, naquela noite descobriu ainda mais sangue nas veias. Mais sangue que veias, aliás.

Naquela noite, imaginando-se assassina, descobriu-se definitivamente como escritora.

Clarinha, Liiiis, ou em qualquer pseudônimo pensado e nunca utilizado, foi pura raiva no papel. E, ao acabar, amor. O mais puro, peneirado afeto.

Para ela tudo era um trâmite, rumo ao definitivo amor.

Depois, pensou no jantar inexistente, com o filho do amigo Sérgio, escritor como ela. E que ultimamente, o filho, andava acompanhado do seu amigo poeta. Novo compositor na sua vida (olha aí essa marcante palavra novamente: Compositor). De nome simples, Francisco. Chico. Jovem cantor, além de compositor.  

Antes da hora de jantar, tudo era pergunta: quem entrevistava? Questão de olhos? Pra que tudo isso? E porque não? Ficas para o jantar? Defines o amor? Eu também não sei nada sobre o amor… Que bom! Não é?

Mas, então… Não poderia ser ela a perguntar-lhe todas aquelas coisas: explica-me melhor tudo isso de música e letra aflorando juntas. Porque se fixam tanto nos nossos olhos? Onde nascem os mistérios desse desencontro? Porque tanta insistência? Mas é claro que poderíamos ser bons amantes! Como não?!

Escute garoto”, disse ela, de onde sabia onde era e diante de quem estava.

E foi assim que começou intensa amizade.

Mais que isso! Naquele dia, jantando sozinha (afinal), descobriu que sentia nas verdadeiras amizades a mais digna forma de amor.

Para ela, tudo não passava de uma circunstância, em direção ao que realmente importava. Tudo era questão de sentimentos. E o imperador de todos os sentimentos era ele, o amor.

Esqueçam então, por favor, graças a ela, tudo o que já haviam associado a essa malgastada palavra (amor).

O ouvido de dentro.

A chave de tudo.

O ouvido de dentro não fala, não escuta. É ele, de novo: puro sentimento.

Escrevia-se, ela mesma, por dentro.

Entendeu ou sentiu?

Ela não escrevia para ser entendida.

O entrevistado foi “decidido” por aquele acompanhante, o poeta Vinícius de Moraes, a convidar-se para voltar à casa dela. Vinícius insistiu para acompanhá-lo, dizendo-se – mentira! – apaixonado, ele sim, pela escritora. E recomendou que nesse retorno se oferecessem para ficar ao jantar: “nada mais que retomando aquele convite do outro dia; ouro de oportunidade”.

Três problemas condicionaram o desencontro. Por mais vocação artística que o poeta – aquele mero acompanhante -se apresentasse, provocava-lhe (nela) lembranças diplomáticas. Como que também o era, ele, Vinícius, de ofício. Primeiro desagrado.

Logo, conhecedores das repulsas alcoólicas da anfitriã e de que nada encontrariam nesse sentido – nada de bebidas que não fosse água em sua residência – prepararam-se, bebendo e bebendo cerveja durante toda aquela tarde, no bar quase em frente ao apartamento da escritora.

Além disso, terceiro problema, ela já não era mulher: era lua, em fase diferente. Melhor para eles, pois Clarice nunca foi mulher de respeitar ciclos.

– Eu te disse Chico. Eu bem que te avisei. Deverias ter aproveitado naquele dia. Ah, se fosse eu… Aqui, agora, morrendo de fome! E sequer fez qualquer menção a que ficássemos pra jantar, viu? Mas, Chiquinho, você viu o mesmo que eu, nos olhos dela? Lembra o que eu te disse? Ao bar. Vamos lá! Voltemos ao bar. Eu necessito comer algo. E beber um pouco mais, por favor…

Depois de tantos anos a perguntar-se, revolvendo os próprios sentimentos – sem jamais querer entendê-los-, ela decidiu dedicar-se menos a dizer coisas e encontrou-se, redescobrindo-se como entrevistadora. Ou melhor, como perguntadora, como preferia definir-se, inaugurou nova fase de cara ao público. Elaborou aos outros, aos que pareciam merecer-lhe, todas aquelas perguntas que a eles só restavam devolvê-las. Nunca foi de respostas, ela, por certo…

E veio então, repentinamente, sua mais recente e definitiva morte.

Pois apesar de chamar-se vida, havia sido assassinada inúmeras vezes. Incendiada, brutalmente discriminada, violentada por soldados russos, em Berna, em Nápoles na Segunda Guerra Mundial, nos sete anos em Washington, atropelada por um caminhão Mercedes Benz. Até mesmo mordida no rosto por Ulisses, seu cachorro infiel. E agora essa nova e ignota morte. Na cama, inerte, assim como havia predestinado a sua cartomante.

Lembrou-se da vez anterior, quando decidiu morrer somente para não mais falar: haviam violentado seu sotaque, sua língua plresa, o seu nordestês e cada letra r que pronunciava. Pouco importa, pois o idioma esse, o de Portugal, ressignificado, devolveu-lhe cada declaração de amor. E uma especial: “amo a língua portuguesa”.

Novamente encontrou saída em escrever-se, com todas as letras erres e consoantes a que tinha direito. Sem importar-se com as escutas alheias. Essas eram suas duas únicas condições. Que todas as palavras estivessem bem colocadas, com acurácia: exatidão mais precisão. E, ao mesmo tempo, como ao jovem compositor, que letra e música aflorassem juntas. Naturalmente. Sem histrionismos.

Naquela noite, véspera do seu quase derradeiro aniversário, decidiu ser, ela mesma, o cirurgião que não salvaria a vida da sua mãe.

Saiu da escola, do Ginásio Pernambucano com uma bolsa carregada de livros, nenhum deles recomendado por qualquer professor. Rua da Aurora, Conde da Boa Vista, Rua do Hospício, a preferida, por ser a rua do Teatro do Parque… Entrou no velho sobrado da Praça Maciel Pinheiro, onde morava. Novamente pensou na mãe. E ao piano, então, compôs sua única e última, triste canção.

Há hiatos em que a vida se torna intolerável. Quando eu não escrevo eu estou morta. A impressão é que estou por nascer e não consigo. Vamos ver se eu renasço de novo; por enquanto eu estou morta”.

Por enquanto, Clarice. Por enquanto.

Livre inspiração.

Flávio Carvalho é sociólogo, participante da FIBRA e do Coletivo Brasil Catalunya @1flaviocarvalho 

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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