Leonardo Padura e uma singular literatura policial

Ao lançar no Brasil “Paisagem de outono”, escritor afirma que busca, nos romances, enxergar realidade cubana. Tambem revela: às vezes, confunde suas lembranças com as de seu personagem

A mesma data de aniversário, o mesmo bairro da mesma cidade, a mesma visão de mundo… Ele jura que não, mas é cada vez mais difícil separar o escritor cubano Leonardo Padura de sua principal criação, o investigador Mario Conde. Ainda mais agora que a criatura resolveu assombrar a mente de seu criador: “É algo doido: por tê-lo tão perto de mim durante tantos anos, às vezes confundo as minhas recordações e experiências com as dele”, confessa o autor de 61 anos, em entrevista por e-mail ao Estado de Minas.

A Boitempo Editorial lança no Brasil Paisagem de outono, romance de 1998 que traz um dos primeiros casos de Mario Conde — os três anteriores (Passado perfeito, Ventos de quaresma e Máscaras), editados anteriormente pela Companhia da Letras, formam a série Estações Havana e estão sendo relançados também pela Boitempo.

Padura estabelece paralelos entre Brasil e Cuba: “Temos um histórico que resultou em muitas semelhanças, que inclui a beleza das mulheres e uma cultura maravilhosa, resultante de todas as mesclas possíveis. Tudo que vi no Brasil eu gosto: o Rio, a feijoada, o ritmo louco de São Paulo, a carne do Rio Grande (do Sul), o mar de Pernambuco… Mas sei que é um país com grandes problemas sociais e econômicos, com muitas dívidas com sua gente mais desfavorecida”.

A seguir, Padura comenta sobre o lançamento de Paisagem de outono, reflete sobre a sua literatura — que inclui o best-seller O homem que amava os cachorros (2013), impressionante recriação dos últimos anos de vida de Trotsky — como vai além do gênero policial e revela que seus personagens são movidos a música, inclusive as de Maria Bethânia e Chico Buarque.

O que representa Paisagem de outono na trajetória do personagem Mario Conde?

É o romance que encerra o primeiro ciclo dos romances com ele (Conde), que denominei As quatro estações (no Brasil, Estações Havana). É um livro muito importante porque ele deixa de ser policial e decide começar uma vida nova que, naquele momento, eu não sabia qual seria. É um romance apocalíptico — com um furacão que, no final, chega a Havana — e de encerramento: nele eu me despeço de um estilo que mantive ao longo desses quatro romances, para que todos tivessem unidade conceitual e formal. Depois de Paisagem de outono, minha forma de escrever mudou muito e a vida de Conde também mudou bastante, ao menos no aspecto profissional. Porque, como eu, ele muda ao envelhecer, mas sem grandes mudanças nas coisas essenciais da vida.

Em artigo recente na Folha de S. Paulo, ao comentar o Nobel atribuído a Bob Dylan, você citou Milan Kundera, que disse certa vez que o autor que começa a escrever um livro é diferente do que termina. Quais são as diferenças entre o autor dos quatro volumes da série Estações Havana e o autor que escreve estas respostas?

Muitas… e nenhuma! Sou o mesmo de sempre; mas, às vezes, não. Basta lembrar que comecei a escrever esses livros com 35 anos e acabo de completar 61. A Cuba dos anos 1990 é muito diferente da de hoje e tudo isso influi. Tenho mais cabelos grisalhos, mais quilos, mais dores, mais experiências, mais desencantos. Mas, ao mesmo tempo, sinto a mesma paixão pelo ato de escrever, pelo mistério da criação, o mesmo amor pelo meu país, meu bairro, minha casa, minha mulher. Sou mais profissional escrevendo, mas continuo com a dúvida se o que eu escrevo é o melhor que posso escrever. Sou mais livre, mais independente, tenho menos medo de muitas coisas, mas sigo refém das minhas obsessões. E tenho muitas obsessões…

Em Passado perfeito, com Strawberry fields forever (Beatles), e em Paisagem de outono, na citação de Proud Mary (Creedence), as músicas funcionam como alavanca de lembranças e/ou símbolo de cumplicidade entre personagens. Como a música influencia a sua literatura?

A música é inseparável da minha vida. Por isso, é tão importante na vida dos meus personagens, que escutam rock, boleros cubanos, salsa, Maria Bethânia e Chico Buarque. Eles se identificam com essas músicas. Na minha educação sentimental, a música dos Beatles e Creedence é fundamental e por isso sempre rendo homenagem a elas nos romances da série de Mario Conde. Mas vou confessar algo: apesar de ser cubano… não sei dançar.

Você também procura a cadência e o ritmo das palavras? Que gênero musical escuta ao escrever ou prefere o silêncio?

Posso escrever em um ambiente barulhento, mas não consigo escrever escutando música. O ritmo me distrai. Claro que, quando escrevo, tento que haja ritmo e música na minha prosa, porque tenho a sorte de escrever em um idioma tão musical quanto o espanhol. Seria lamentável não utilizar a sua cadência.

O escritor brasileiro Luiz Alfredo Garcia-Roza, em Um lugar perigoso, escreveu que a memória pode representar perigo “como uma estrada malconservada, com quantidade de buracos o que a torna, em certos trechos, intransitável”. Qual a função da memória na sua literatura?

A memória é tudo para o escritor, mas estou de acordo com Garcia-Roza: pode ser perigosa. Na minha literatura, a memória é o ponto de partida da observação e do ajuizamento do presente: isso ocorre em todos os meus romances, não apenas nos de Mario Conde. Sou uma pessoa bastante obcecada pela memória, com a sua preservação e com os embates do esquecimento, que podem ser por causas naturais ou podem ser induzidos por certos poderes. Acredito que a conservação e a produção da memória fazem parte do trabalho dos romancistas, e eu assumo essa tarefa com muita seriedade, apesar dos perigos…

A exemplo de autores como Dennis Lehane, que produzem livros com os mesmos personagens (Patrick Kenzie e Angela Gennaro), e histórias isoladas (Naquele dia, Sobre meninos e lobos), você escreve livros protagonizados por Mario Conde e também romances históricos sem o personagem, como O homem que amava os cachorros. Você se sente mais confortável com a possibilidade de trafegar em duas estradas?

Toda vez eu escrevo o romance que eu preciso escrever e dou graças ao “Deus dos ateus” por poder fazê-lo. Sempre que termino um romance, não sei qual será o próximo que escreverei, nem se conseguirei escrevê-lo. Por isso, quando surge uma ideia para um romance, avanço para cima dela como um cão de guarda. A verdade é que sou um autor com muito pouca imaginação e não tenho um cofre cheio de ideias para romances… E, em alguns casos, pode ser que o romance peça a presença de Conde, mesmo sem ser o protagonista, como em Hereges, e em outros posso me virar sem ele, porque o assunto não está na esfera de ação ou interesse de Conde. Mas me movo igual pelas duas estradas. O importante é me mover. Escrever.

Ao tentar definir o ponto de partida de O nome da rosa, Umberto Eco resumiu: “Eu queria envenenar um monge”. Quais os pontos de partida para os seus romances? Imagens, frases ou fatos?

Bem, eu escrevi um romance (O homem que amava os cachorros) porque queria ressuscitar Trotsky… Agora falando sério: os pontos de partida podem ser diversos; vêm de algum lugar misterioso que não conheço bem. Às vezes vejo um filme, leio um livro, ouço uma história de vida e dali sai algo que, misteriosamente, pode chegar a ser converter em uma ideia para um romance. Mas isso não acontece comigo todos os dias, nem sequer todos os anos. Felizmente, até agora essa caixa misteriosa não deixou de se abrir. Depois de terminar um romance, surgiu a ideia de outro. Não sei até quando isso vai acontecer, espero que por muitos anos mais.

Como você empresta suas lembranças e vivências ao personagem Mario Conde? E o que pertence somente a ele?

Por causa do personagem Mario Conde está acontecendo comigo algo muito, muito estranho: por tê-lo tão perto durante tantos anos, às vezes confundo as minhas recordações e experiências com as dele, algo meio doido. Conde não sou eu: é Mario Conde, um ex-policial, com sua própria história pessoal. Mas é alguém que pertence à minha geração, que vive a minha época e nos mesmos lugares que eu, que enxerga as coisas principais da vida da mesma forma que eu. Por isso, para mim é fácil passar para ele algumas de minhas preocupações, obsessões, pensamentos, gostos… Isso pode ser tão parecido que me leva à confusão. Acho que essa é uma das razões pelas quais muita gente pensa que Mario Conde existe na realidade, quando é apenas um personagem de ficção que nem sequer é meu alter ego.

No posfácio de Paisagem de outono, ao detalhar o processo de criação de Mario Conde, você afirma que um romance policial pode “não apenas investigar um crime, mas revelar uma realidade”. O que você acredita que tem revelado da vida cotidiana cubana por meio de seus romances?

Não sei se tenho conseguido, mas o que me propus a fazer é que esses romances formem, juntos, uma espécie de crônica do que foi a vida cubana durante todos estes anos, tanto no presente como no passado próximo e mais distante. Essa é minha proposta e, por meio dela, quero ir além dos recursos habituais do gênero policial para fazer uma espécie de literatura social na qual a observação do contexto cubano seja muito mais importante do que o possível mistério que organiza o argumento. Se conseguir esse objetivo, fico feliz. E acredito que tenho conseguido, pois muita gente me diz que conheceu melhor Cuba depois de ler os meus romances.

O que é mais difícil na adaptação da série Estações Havana para cinema e tevê? O que mudou na sua percepção de escritor depois de começar a escrever roteiros?

O mais difícil foi assimilar que meus romances, ao contrário do que todo mundo acha, inclusive o que eu mesmo achava, não são nada cinematográficos. É que são muito verbais, a palavra tem muito peso. E, por outro lado, quase tudo ocorre na cabeça de Conde, ou é visto pelos olhos dele ou percebido com a sensibilidade dele. Por isso, foi decisiva a participação de minha esposa, Lucía López Coll, como roteirista principal da série. Coube a ela assumir o trabalho de converter o material literário em texto dramático, sem perder a essência dos romances: o mundo de Conde, o contexto cubano. Ela fez um grande trabalho e eu fiz retoques, discutindo muito e aceitando as soluções que ela criou. E escrever estes roteiros voltou a me lembrar algo que já sabia, porque não é a primeira vez que escrevo para cinema: quando aceita esse trabalho, o romancista perde sua vantagem máxima, que é a de ser dono de todas as decisões. Perde a sua independência.

Mario Conde é um grande leitor que se define também como “meio escritor”. Quais os livros de cabeceira do seu personagem? Que livros ele gostaria de ter escrito?

Há vários mencionados algumas vezes nos romances: Poesías completas, de José María Heredia, os romances e contos de Salinger, Hemingway, Carpentier, Vargas Llosa — os mesmos autores que eu leio e releio! E obviamente, Conde teria gostado de escrever As quatro estações. E, por isso, Conde escreve uma parte muito importante da novela que estou escrevendo agora…Deixo o suspense para que os leitores descubram. E para que comprem o livro, claro.

No UAI

Fonte: Outras Palavras

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