SC: Xokleng e a memória perdida, a história que é melhor não contar

india Xokleng

No mês de setembro completaram-se 100 anos que um grupo de indígenas Xokleng resolveu aceitar a proposta de paz levada pelo Estado brasileiro, trata-se do grupo Laklãnõ que atualmente vive no alto vale do Itajaí.

Outros grupos não tiveram a mesma “sorte”. Massacrados por bugreiros, colonos e fazendeiros, foram dizimados, restou um pequeno grupo em Porto União-SC.

Muito se enaltece o Estado brasileiro pela relação estabelecida no momento da “pacificação” e pela atenção dispensada ao longo de 70 anos. Essa história é contada por quem se beneficiou do processo, seja do ponto de vista econômico ou social. É recomendável uma revisão bibliográfica a partir do ponto de vista indígena, um recontar a história para que a paz seja de fato estabelecida e que beneficie também aos indígenas.

As relações que marcaram os indígenas Xokleng com os não indígenas no século XX não podem ser contadas em poucas linhas, tampouco filtradas pela amnésia intencional daqueles que sabem de suas responsabilidades quanto à violência impetrada e preferem o esquecimento.

A alusão aos 100 anos de contato poderia ser marcada pela lembrança de uma nova relação amistosa estabelecida entre indígenas e sociedade regional. No entanto, as marcas da violência continuam porque a história não está concluída, a pacificação está inconclusa.

O Estado brasileiro, envergonhado que estava diante das atrocidades que eram cometidas contra indígenas, criou em 1910 o Serviço de Proteção aos Indígenas (SPI). Uma agência de princípios humanitários e disposta a inovar, criar novas relações com os povos indígenas. Uma das primeiras atribuições  desse serviço foi pacificar , nome cunhado da literatura de guerra que significa restabelecer a paz. Partia-se de um pressuposto que havia uma guerra declarada, na visão das companhias colonizadoras os Xokleng fariam guerra contra os não indígenas, na perspectiva indígena era exatamente o contrário, ou seja, as frentes de colonização invadiram o território indígena e declararam guerra.

O Estado, na figura do SPI, se atribuiu a responsabilidade de mediar a paz. Todavia, o SPI representava uma das partes, não cabia a ele a mediação, a ele cabia sim retirar os invasores e impedir que continuassem invadindo, fez justamente o contrário, legalizou a invasão e reduziu o território do povo invadido a uma minúscula fração do mesmo. E fez mais, criou uma estrutura administrativa, política e ideológica para mantê-los confinados na reserva. A pacificação em seu fim último significou a proteção aos invasores e o reconhecimento das terras roubadas como legítimas. Agrava-se o fato da legislação brasileira, tal como a Lei 601 de 1850, reconhecer o direito indígena sobre seus territórios.

A paz que nunca chegou

A paz proposta pelo SPI aos Xokleng nunca se materializou, ao contrário, a violência continuou, agora de maneira institucional. O século XX pode ser caracterizado como um dos mais violentos contra os povos indígenas no Brasil justamente porque a prática era institucionalizada, era oficializada e legalmente amparada pelo regime tutelar a que eram submetidos os indígenas. A tutela era a extensão da guerra, era a impossibilidade de reação, o sentido mais desumano que se pode aplicar a um povo, tolher a liberdade e impedir que reajam.

Assim se processou por longos 70 anos, impedidos de falar a língua e a manifestar-se culturalmente eram submetidos a severas jornadas de trabalho imposto como disciplina e castigo. Diante do poder opressor do Estado nada podiam.

As poucas terras reservadas como acordo de pacificação, foram sendo reduzidas (dos cerca de 40 mil hectares reservados no início do século restou aos Xokleng menos de 15 mil). Acordos, negociatas e abusos foram marcas no processo de roubo das terras. Em 1963 uma invasão é organizada por empresários regionais com centenas de famílias camponesas. Sozinho e sem apoio, as lideranças indígenas se deslocaram a pé até capital do estado para denunciar e cobrar uma solução. Apenas em 1998 a revisão dos limites com a possível retirada dos invasores começa a ter um fim.

Porém o processo encontra-se em julgamento no Supremo Tribunal Federal – (STF) por uma ação impetrada pelo estado de Santa Catarina, empresas madeireiras e outros ocupantes.

Outra variante da prática abusiva do SPI foi considerar as terras Xokleng como de sua propriedade. Durante os governos militares o órgão indigenista autorizou a construção de uma barragem para contenção de cheias no vale do Itajaí, protegendo as cidades de Ibirama, Indaial, Blumenau e Gaspar das enchentes e deixando aos indígenas um lago lamacento e podre. Mais de mil hectares de terras na várzea do rio ficaram submersas, as melhores e justamente onde se encontravam suas aldeias. Até hoje não foram devidamente indenizados e sofrem com os acessos. Basta um pouco de chuva para a escola e aldeias ficarem ilhadas. Uma aldeia está condenada erosão provada pela variação do nível da água.

Para concluir um processo de paz

A paz é resultado da reconciliação. A reconciliação não se faz pelo esquecimento. A eliminação da prática da tutela e a superação do modelo opressor do estado militar na década de 1980 significaram importante passo na construção da pacificação. No entanto, a paz ainda é um projeto utópico.

A devolução das terras e a reparação dos danos causados pela barragem norte poderão significar um importante passo rumo à consolidação do processo de pacificação. Nesse caso ela deverá ocorrer de acordo com o pensamento indígena, ou seja, os não indígenas devem ser pacificidades.

 O recontar da história a partir da memória indígena, processo que a escola tem relevante papel pelo poder de incidir em crianças e jovens, poderá significar um importante um elemento de revisão dos registros históricos que enaltecem vilões como heróis e falseiam os dados e informações para evitar que a memória cumpra com seu papel de mobilizadora das sociedades.

 

 POEMA PARA O ÍNDIO XOKLENG

Lindolf Bell[i]

Se um índio Xokleng

subjaz

no teu crime branco

limpo depois de lavar as mãos

Se a terra

de um índio xokleng

alimenta teu gado

que alimenta teu grito

de obediência ou morte

Se um índio xokleng

dorme sob a terra

que arrancaste debaixo de seus pés,

sob a mira de tua espingarda

dentro de teus belos olhos azuis

Se um índio xokleng

emudeceu entre castanhas, bagas e conchas

de seus colares de festa

graças a tua força,

armadilha, raça:

cala tua boca de vaidades

e lembra-te de tua raiva, ambição, crueldade

Veste a carapuça

e ensina teu filho

mais que a verdade camuflada

nos livros de história

[i] Lindolf Bell poeta catarinense, falecido em 10 de dezembro de 1998. Retirado na obra “O Código das Águas” de 1984.

Fonte: CIMI.

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