Lava Jato: impasse no abismo

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Por Carlos Drummond

A OAS foi fundada em 1976 por três sócios, um deles, César de Araújo Mata Pires, 65 anos, genro do falecido cacique político da Bahia, Antônio Carlos Magalhães. Uma das maiores doadoras de campanhas políticas, obteve contratos no Brasil e no exterior para a construção de plataformas de petróleooffshore, rodovias e estádios para a Copa do Mundo. A fortuna de Mata Pires caiu de 7 bilhões para 1 bilhão de dólares depois da investigação da Polícia Federal, na Operação Lava Jato, na sede do grupo em São Paulo, no ano passado, com a prisão de vários executivos por suposta participação em um cartel de pagamento de funcionários da Petrobras para fraudar licitações e obter contratos. Para garantir os pagamentos devidos aos detentores de títulos no exterior, com queda de 88%, para 12 centavos de dólar, desde as prisões, a Justiça decidiu no dia 19 expropriar a sua fatia de 25% na Invepar, controladora do aeroporto de Guarulhos, do metrô do Rio de Janeiro e de seis rodovias. No dia seguinte, o Ministério Público Federal acusou a OAS e cinco outras empresas de desvio de fundos públicos no valor de 4,5 bilhões de reais e exigiu a proibição da sua participação nas concorrências públicas.

A construtora baiana não deve ser a única a seguir esse caminho. Rumores insistentes davam conta de que duas construtoras de médio porte igualmente optariam pela recuperação judicial. A situação é preocupante.

O cancelamento, pela Petrobras, da encomenda no exterior de quatro sondas para extração de petróleo; a declaração, pelo Estaleiro Atlântico Sul, sociedade entre Camargo Corrêa, Queiroz Galvão e investidores japoneses, de rompimento do contrato de produção de sondas de prospecção de petróleo à Sete Brasil, principal fornecedora do pré-sal, por falta de pagamento; a paralização das obras da Construtora Galvão na BR-153, entre Tocantins e Goiás, pela dificuldade em obter financiamento do BNDES; e a busca de um acordo de leniência pela Construtora Engevix para escapar da extinção são outras evidências de uma crise de solvência com risco de se transformar rapidamente em uma crise de crédito. Reforça essa possibilidade o rebaixamento da classificação de risco da Petrobras e das construtoras OAS, Andrade Gutierrez Queiroz Galvão, Galvão Participações, Galvão Engenharia e Mendes Júnior pelas agências internacionais, por implicar redução e encarecimento do crédito nos bancos e virtual fechamento do acesso ao mercado de capitais internacional. O rebaixamento da Petrobras, anunciado na terça-feira 24 pela agência Moody’s, aumentou os receios de perda do grau de investimento pelo Brasil.

Imbuídos da republicana missão de sufocar um dos históricos e talvez maior canal de corrupção do País, o elo entre a licitação de grandes obras e a irrigação de campanhas eleitorais e dos cofres particulares de políticos de vários matizes, os investigadores e juízes na linha de frente da apuração estão diante de um enorme dilema: é possível levar a cabo a limpeza ética sem jogar por terra a economia e inviabilizar o Brasil por um período razoavelmente longo?

Os desafios da retomada do crescimento não são poucos e estão diretamente ligados aos serviços prestados pelas construtoras. Para crescer, o País necessita de vultosos investimentos em infraestrutura. O levantamento mais recente do Banco de Desenvolvimento Econômico e Social calcula o tamanho desse esforço. Até 2018 serão necessários 509 bilhões de reais na área de petróleo e gás e 598 bilhões em infraestrutura de logística, os impulsionadores dos investimentos, segundo um estudo publicado pelo BNDES em dezembro. A infraestrutura de logística inclui investimentos nos segmentos elétrico (192 bilhões), de telecomunicações (141 bilhões), infraestrutura social (87 bilhões), rodovias (80 bilhões), ferrovias (45 bilhões), portos (36 bilhões) e aeroportos (16 bilhões).

Na melhor das hipóteses, a crise deverá durar até 2016, mas pode estender-se a 2019, avaliam grandes construtoras que, desde o início da Lava Jato, trocam avaliações com frequência sobre as perspectivas dos negócios e da economia. Se a operação impedir ou dificultar os acordos de leniência defendidos pela presidenta Dilma e pelo advogado-geral da União Luís Adams, haverá uma quebradeira geral, muito além do setor de construtoras e da cadeia produtiva da Petrobras, dizem.

Há risco de um grande impacto na estrutura de capital das construtoras. Todos os grupos empresariais de porte normalmente tomam dívidas para investir, mas os grandes fundos não querem mais emprestar para o setor. Nos bancos, a relutância em realizar operações no segmento é crescente.

A situação abre espaço para estrangeiras como a francesa Vinci, que disputa com a GP Investments e a Advent os 25% de participação da OAS na Invepar. A chegada de uma empresa estrangeira, entretanto, nem sempre significa bom negócio para o País. O governo de São Paulo anunciou a rescisão de contratos de 560 milhões de reais com o consórcio espanhol Isolux-Córsan-Corviam, responsável pelas obras na Linha 4 do metrô, por atraso na entrega de quatro estações na capital. Mais de mil ações por descumprimento de contratos, protesto de dívidas, cobranças de tributos e ações de despejo por falta de pagamento foram movidas na Justiça brasileira contra as empreiteiras espanholas Abengoa, Acciona, Essentium e OHL, esta concessionária da BR-116 no trecho São Paulo-Curitiba, recordista em acidentes principalmente por causa da não duplicação em 15 quilômetros da pista na altura da Serra do Cafezal.  O Consórcio Teles Pires, construtor da hidrelétrica de mesmo nome, na divisa de Mato Grosso e Pará, concluiu 98% das obras, mas não gerou energia porque o Consórcio Matrinchã, pertencente à chinesa State Grid (51%), não concluiu a linha de transmissão. O atraso é de 19 meses.

O futuro das empreiteiras poderá ser decidido também no governo federal, de forma talvez mais rápida. Com base nas apurações da Lava Jato, a Controladoria-Geral da União abriu em dezembro processos contra a Camargo Corrêa, Mendes Júnior, OAS, Galvão Engenharia, Engevix, Queiroz Galvão, Iesa e UTC-Contran. Os processos baseiam-se na Lei Anticorrupção, de 2013, e não têm prazo de conclusão. O chefe da Controladoria-Geral da União, Valdir Simão, enxerga, porém, uma “grande probabilidade” de as empreiteiras serem consideradas inidôneas.

Não é o interesse do Palácio do Planalto. “O governo defende a manutenção dos empregos e da atividade econômica. E hoje só o que pode evitar o fechamento das empresas são os acordos de leniência”, disse Adams a CartaCapital. Para o advogado-geral, não há esperança de as construtoras sobreviverem se forem excluídas das obras e do crédito públicos, como demonstra o caso da Construtora Delta. Declarada inidônea há três anos e quase extinta, pode ser adquirida por um grupo espanhol.

Os acordos precisam, no entanto, ser propostos pelas empresas. Das oito processadas na CGU, só a Engevix e mais uma, com o nome não revelado, sondaram a Controladoria sobre essa possibilidade. No Cade, a legislação só admite acordo de delação premiada para o primeiro interessado em denunciar um cartel, como fez a Toyo Setal, em novembro. Se o acordo vingar, a empresa conseguirá afastar o risco de prisão dos seus dirigentes, possibilidade inexistente na Lei Anticorrupção. A publicação do balanço da Petrobras com a estimativa dos prejuízos causados pelo esquema de corrupção, prometida para março pelo novo presidente da estatal, Aldemir Bendine, deverá contribuir para a mensuração das perdas.

Previsto na Lei Anticorrupção, o acordo de leniência já foi utilizado em 49 casos no Brasil, na esfera da defesa da concorrência. No mundo, é prática corriqueira. Os Estados Unidos foram os primeiros a adotá-lo, em 1978. A Comissão Europeia utiliza-o desde 1996. Entre 2000 e 2006, o caminho foi seguido por Alemanha, França, Irlanda, Holanda, Reino Unido, Áustria, Grécia, Portugal e Japão. O Canadá e outros países da Europa e da América Latina preparam suas regulamentações.

O acordo exige das empresas colaboração nas investigações, ressarcimento integral ao Erário pelos desvios, apuração de responsabilidades e adoção de medidas para evitar novos delitos. “É uma solução para a punição administrativa, não tem nenhuma função na área penal, portanto, não isenta o criminoso e não impede a produção de provas”, acrescenta Adams.

A resistência é grande. Procuradores da República ligados à Lava Jato pediram ao Tribunal de Contas da União impedir a Controladoria-Geral da União de fechar os acordos com empreiteiras envolvidas na Lava Jato, por recearem a obtenção do benefício em troca de informações já prestadas em delações premiadas e a omissão dessas informações à CGU. Os procuradores desejam que eventuais acordos sejam conduzidos pelo Ministério Público, “para que as investigações possam avançar”. Alguns ministros do Tribunal de Contas da União defendem os acordos de leniência e argumentam que, se o MP não os aceita, deveria contestá-los na Justiça em vez de pedir ao TCU para impedi-los.

“Dizer que a proposta do advogado-geral da União geraria impunidade e as empresas envolvidas na Lava Jato ficariam livres das sanções penais é um absurdo completo. O sistema de leis da defesa da concorrência inclui as pessoas físicas no acordo e aí, sim, há efeitos na esfera penal, sobre esses indivíduos. Mas a lei anticorrupção não tem essa previsão”, explica o advogado Rafael Valim, presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos da Infraestrutura.

A Lei Anticorrupção visa responsabilizar administrativa e civilmente (portanto, não na área penal) empresas por atos contra a administração pública. O artigo 3º diz, explicitamente, que “a responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual dos seus dirigentes ou administradores ou qualquer pessoa natural autora, coautora ou partícipe do ato ilícito. O texto da lei não dá sustentação, portanto, à alegação de risco de impunidade de dirigentes das empreiteiras. A pessoa jurídica será responsabilizada independentemente da responsabilidade individual. O acordo de leniência, tratado no artigo 16, é celebrado pelas autoridades descritas na lei e pela pessoa jurídica, não envolve pessoas físicas. “Então, cai por terra a alegação dessa turma que assinou o manifesto, de que esse acordo teria repercussão na esfera penal”, explica Valim. E acrescenta: “Não livra os indivíduos, não liberta os executivos presos, não tem nada a ver”.

O acordo não exime a Engevix, por exemplo, de pagar os 538 milhões de reais cobrados pelo Ministério Público Federal por danos à Petrobras (a empresa faturou cerca de 3 bilhões de reais em 2013). Mas tem um impacto na economia e pode representar alternativa para evitar o agravamento dos problemas nas empresas, com repercussões no nível de emprego e no PIB. Mais importante do que possibilitar a redução da multa prevista (a cobertura pecuniária dos danos ao Erário é mantida) em troca da delação, “é o ponto em que AGU busca uma saída. Diz o seu artigo 17: “A administração pública poderá celebrar acordo de leniência com a pessoa jurídica responsável pela prática de ilícitos previstos pela Lei nº 8.666, de licitações e contratos, com vistas à isenção ou atenuação das sanções administrativas estabelecidas nos seus artigos 86, 87 e 88, a saber, advertência, multa, suspensão temporária de participação em licitação e declaração de inidoneidade”, observa Valim. “O maior temor é a declaração de suspensão temporária ou de inidoneidade, com proibição de contratos com o setor público por cinco anos. Uma empresa declarada inidônea está sepultada. São firmas cujo faturamento está alicerçado nas contratações públicas. Não há só o lado da empresa. Para o País é uma coisa trágica.”

Há outros riscos. “A Operação Lava Jato é uma das mais relevantes dos últimos anos, apontando para condutas criminosas em quase todos os rincões da República, mas quaisquer diligências, apreensões, suposições e possíveis provas são veiculadas de pronto, com feições de escândalo. A afobação causa falhas no processo, joga todo suspeito no tribunal das redes sociais e pode invalidar as investigações”, alerta o advogado Pedro Estevam Serrano. Como aconteceu com a Operação Castelo de Areia.

Uma reformulação necessária, evidenciada pela crise, é a do sistema de contratações públicas, com a adoção de processos de pré-qualificação adequados e definição de indicadores econômico-financeiros apropriados. Não é aceitável dar 30% de desconto em uma obra com qualidade discutível e depois arrancar do governo aditivos por conta de alegações quanto a problemas de desapropriações e de projetos. Nas obras do Rodoanel, com prazos estourados e problemas de toda ordem, o desconto médio oferecido é de 24%, informa um consultor do setor.

No caso da Petrobras, ela tem uma lei própria, que vem do tempo de FHC. Ela faz compras internacionais, tem grandes investimentos, e como a Lei nº 8.666 determina diversos passos e ritos, isso demora muito tempo. Era para permitir que a Petrobras fizesse as contratações mais rapidamente”, diz José Roberto Bernasconi, presidente do Sindicato da Engenharia e da Arquitetura. “Mas na hora que você afrouxa, abre as porteiras, pode acontecer tudo, como vemos no presente momento. A saída é ter um projeto bem definido. Defendemos o condicionamento da contratação de obras com dinheiro público a partir do projeto executivo ou projeto completo pronto, com definição precisa do que está sendo pedido. Quem é contratado sabe o que terá de entregar e com que qualidade, o custo está estimado com critério e o prazo, definido.”

O rebaixamento da Petrobras levou o governo a temer a perda do grau de investimento do próprio País. Não é o perigo principal. Depreende-se da leitura de alguns editoriais um interesse cada vez mais explícito em mudar o sistema de partilha do pré-sal e sua substituição, eventualmente, pelo modelo vigente na década de 1990, muito mais favorável às empresas estrangeiras. Na mesma toada de explicitação crescente, o ex-ministro do governo FHC Luiz Carlos Mendonça de Barros, elemento central no escândalo da privatização das empresas de telecomunicações, defendeu em artigo recente a privatização da Petrobras, uma continuação do serviço iniciado naquela época.

Uma ação forte do governo em defesa das empresas e da economia brasileiras, sem qualquer concessão quanto às punições devidas, seria uma sinalização importante, mas Dilma Rousseff, neste momento, não parece ter uma agenda capaz de liberá-la de uma mera tática defensiva.

Por ora, quem tomou a frente da reação foi o ex-presidente Lula. Na terça 24, o petista participou, ao lado de sindicalistas e intelectuais, de um ato a favor da Petrobras. Na quarta 25, reuniu-se em Brasília com a cúpula do PMDB. O partido reclama mais poder de decisão no governo. No dia seguinte, iria ao ar a propaganda eleitoral da legenda. Pelo tom, o PMDB se oferece como o garantidor da governabilidade em qualquer hipótese. Ou seja, até se o impeachment de Dilma Rousseff se tornar uma probabilidade viável.

O Brasil parece caminhar, neste momento, sobre um fio de náilon esticado acima do abismo. A crise das empreiteiras pode precipitar uma queda livre da economia, que parecia um pesadelo distante no passado.

Fonte: Carta Capital 

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