Largo do Paissandu, indo pra a São Bento

Largo do Paissandu. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Por Luciane Recieri, para Desacato.info.

Escrevo antes de qualquer rito, escrevo de minha cama, o lugar em que consigo me aproximar mais da humanidade, isso por estar com os pés descalços, desprovida de documentos, indigente e com fome, perto de minha porção mais humana, assim como ficamos nos hospitais ou quando, na gare, não encontramos o bilhete – é de uma mansidão acolhedora os olhos humanos nessas situações -, perdidos, perdidos. Quarta-feira. Era eu andando no largo do Paissandu, indo pra a São Bento. Era entre corpos adormecidos que pisava e outros eram corpos em estado de assombro, cuidando da tevê, uma planta, roupas ou filhos ou cachorros. Era ali a humanidade, a mesma que parte de mim experimentou numa grande enchente, na roupa emprestada e na dose de pinga pra esquecer um pouco “até baixar a água.” A humanidade da enchente, a humanidade do deslizamento é a mesma que a humanidade do incêndio, aquela no recorte da manhã. Incêndio, velho conhecido, kassabiano ou doriano nesta cidade tão feia e tão bonita de São Paulo. Entre os pombos cinzas da praça muito cinza, crianças negras, muitas negras acordadas com a movimentação em torno de seus berços-chão. Cachorros sobreviventes atados aos donos adormecidos, velam os sonhos de seus senhores e é só. Repórteres disputam os melhores ângulos: ao fundo deve aparecer os escombros, um monturo ainda fumacento e mais cinza do que fora mais um latifúndio vertical da União. Ainda as repórteres, bem maquiadas e com mãos firmes dão lugar de fala àquelas mulheres e algumas repetem um mote ou outro com a incerteza de que a tevê mostrará. Sobrevoam a praça helicópteros tão pesados quanto a atmosfera – de silício e fuligem entre a metodista e a católica -, trabalhadores fazem um segundo de silêncio frente ao local e aceleram para valer o tempo perdido na homenagem incerta feito o voo da pombada. Faz frio de maio esse maio e o prédio jaz fumacendo no lugar que ocupara. Espio a igreja que se ergue no cenário. Não sei que santos ocupam esse prédio ocioso, mas ainda creio nos santos e peço: rogai pelos pobres dessa terra.


Luciane Recieri é cientista social e escritora, em Jacareí /SP

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