Justiça social e ambiental, duas rotas em intersecção

Porto Príncipe (Haiti) – Cité Gerard, zona da grande Cité Soleil, o símbolo da miséria no Haiti é um biscoito feito de barro, água e manteiga. Batizado de “Té”, a receita serve para tapear a fome. Mulheres desesperadas coletam restos de construção e misturam com água e manteiga em tinas de plástico e metal velhas e sujas. Foto: Marcello Casal Jr./ABr

Por Elissandro Santana, para Desacato.info.

As injustiças ambientais se materializam em racismo ambiental e condenam as minorias sociais (maiorias) como populações negras, mulheres, indígenas, quilombolas, sem terra, sem teto e outras categorias sociais não privilegiadas socioeconomicamente às geografias inóspitas da (in)existência. A estes grupos lhes são negados direitos como o acesso a territórios ambientalmente sadios, condições de sobrevivência e, consequentemente, a possibilidade de desenvolvimento em sentido lato sensu. Em decorrência dessa realidade, que no caso brasileiro é construída, desde os primeiros momentos de constituição da nacionalidade, com vantagens para as minorias elitizadas, aqueles segmentos sociais privilegiados historicamente no que tange aos bens materiais, o retrato das injustiças foi e segue sendo pintado com sangue e suor das classes desfavorecidas e desassistidas pelo Estado a serviço dos donos do capital.

Em meio ao quadro de injustiças e de desigualdades, movimentos sociais, ao redor de todo o planeta, há décadas, se fortalecem e lutam (o que é deveras positivo e necessário) por justiça social, pela inserção do pobre no mercado de trabalho, por melhorias na educação e por outras questões para a vivência planetária. No entanto, muitas vezes, por falta de conhecimento, esses movimentos não conseguem associar a luta por justiça social à necessidade de justiça ambiental, ou quando isto se faz, ainda ocorre de forma desordenada. Esta incapacidade, infelizmente, impossibilita que certas conquistas alcançadas ao longo da história sejam efetivas, de fato, pois na dissociação dessas duas frentes, a justiça social torna-se frágil, pois a justiça ambiental não se concretiza e uma está relacionada à outra. Diante disso, de uma vez por todas, em especial, aqueles e aquelas que lutam por um mundo justo sócio ambientalmente, precisam compreender que não haverá justiça social se não houver justiça ambiental, pois esse é o primeiro passo para o fortalecimento da luta contra os opressores no campo da política e da economia alicerçada nos moldes clássico-tradicionais da espoliação e da exploração da existência.

É importante destacar que a partir de meados e do final do século XX, discussões em âmbito global começaram a ser feitas em grandes eventos governamentais e não governamentais, mas a história tem demonstrado que dessas instâncias oficiosas não se pode esperar muito, haja vista que elas estão dominadas pela lógica perversa do lucro e, consequentemente, da exploração da Terra.

As grandes conferências mundiais corroboram, a partir de tratados e de documentos de compromisso ambiental, assinados por várias nações, que as discussões sobre sustentabilidade já são reais desde a conferência de Estocolmo, mas esta palavra virou moda nos discursos estatais e empresariais, já que na maior parte dos casos, só se transformou em outra faceta de exploração e de hipocrisia. Nesse bojo, as indústrias, comércios, fábricas e outros lócus de produção e de consumo encontraram um jeito de se pintarem de verde, de ecológicas.

Esta situação nos leva a pensar o que Guattari nos traz em “As três ecologias”, que as formações políticas e as instâncias executivas parecem totalmente incapazes de apreender essa problemática no conjunto de suas implicações. Apesar de estarem começando a tomar uma consciência parcial dos perigos mais evidentes que ameaçam o meio ambiente natural de nossas sociedades, elas geralmente se contentam em abordar o campo dos danos industriais e, ainda assim, unicamente numa perspectiva tecnocrática, ao passo que só uma articulação ético-política — a que chamo ecosofia — entre os três registros ecológicos (o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana) é que poderia esclarecer convenientemente tais questões.

A grande questão é que no decorrer das últimas décadas todo o discurso acerca do que é e representa a sustentabilidade não saiu da lógica do mercado e, por isso, não alcançou campos que poderiam ter transformado a vida de muitos.

No mais, toda a humanidade precisa acordar para aquilo que Guattari, no livro indaga, de forma contundente e simples: “O que está em questão é a maneira de viver daqui em diante sobre o planeta, no contexto da aceleração das mutações técnico-científicas e do considerável crescimento demográfico. Em virtude do contínuo desenvolvimento do trabalho maquínico, redobrado pela revolução informática, as forças produtivas vão tornar disponível uma quantidade cada vez maior do tempo de atividade humana potencial. Mas com que finalidade? A do desemprego, da marginalidade opressiva, da solidão, da ociosidade, da angústia, da neurose, ou a da cultura, da criação, da pesquisa, da reinvenção do meio ambiente, do enriquecimento dos modos de vida e de sensibilidade?”.

Ao refletir acerca da condição ambiental na qual a Terra se encontra, consequentemente e obrigatoriamente, cada ser é convidado a não perder de vista que a raiz de nossos dilemas, desde a Primeira Revolução Industrial à realidade técnico-científica no qual nos encontramos, não pode ser compreendida à luz de análises simplistas. Para o estudo da crise ambiental, faz-se imprescindível que a humanidade consiga ultrapassar os projetos analíticos positivista-cartesianos alcançando outro nível de observação e de entendimento dos fatos.

O quadro atual exige das sociedades, em todos os seus construtos, redirecionamentos de paradigmas, de epistemologias e de concepções. É tempo de complexidade, de pesquisas e de práxis em rede, da noção de que tudo está interligado político-social-histórico-cultural-econômico-ambientalmente e que reverter esta crise ambiental que provocamos através de nossa arquitetura antiecológica de produção e de consumo só será possível se as organizações humanas encontrarem a rota que nos conduza por e para outros sendeiros rumo às justiças social e ambiental.

Por falar em complexidade, é interessante recorrer às discussões de Edgar Morin para compreender que apreender em conjunto o ser e seu meio ambiente, o local e o global, o multidimensional, em suma, o complexo, isto é, as condições do comportamento humano, são cruciais para um saber ambiental transformador.

Por fim, diante do cenário planetário de crise ambiental e dos problemas de ordem socioeconômica, textos como este (sem pretensão ou arrogância) despontam como botões de alerta para que, desta forma, cada vez mais, membros da sociedade planetária tomem consciência de que, de fato, o maior desafio deste século é o ambiental, entrave que descamba no social, resultante de políticas e de designs econômico-societários equivocados e insustentáveis de relação com a nossa Casa Comum. Frente a estas situacionalidades, encontrar a rota convergente entre justiça social e ambiental para que novas experiências do sensível possam ser construídas, concebidas e projetadas no Brasil e no mundo é mais que necessário, é crucial para que as desigualdades sociais desapareçam e uma justiça ambiental perene seja construída.

Elissandro Santana é professor da Faculdade Nossa Senhora de Lourdes, membro do Grupo de Estudos da Teoria da Dependência – GETD, coordenado pela Professora Doutora Luisa Maria Nunes de Moura e Silva, revisor da Revista Latinoamérica, membro do Conselho Editorial da Revista Letrando, colunista da área socioambiental, latino-americanicista e tradutor do Portal Desacato.

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