JN & Época: Pauta requentada e desonestidade jornalística

nosso homemPor Samuel Lima.

Dois veículos das Organizações Globo protagonizaram, no último final de semana, a prática nefasta (e manjada) da pauta casada: Em letras garrafais e vermelhas, a revista Época (ed. 31/08/2015) anunciou em sua reportagem de capa: “Nosso homem em Havana” (sobre uma foto de Lula cumprimentando o presidente cubano Raúl Castro). Prometia mostrar como os “documentos secretos” provariam a participação escusa do ex-presidente Lula na liberação de recursos à construção do porto de Mariel, em Cuba. O assunto repercutiu na edição do Jornal Nacional de sábado (30/08/2015) como uma peça de “museu de grandes novidades”.
Recorrendo ao truque de recortar e descontextualizar informações de supostos “telegramas diplomáticos secretos” – documentos em poder de órgãos de controle e Ministério Público Federal, que jamais poderiam ser assim classificados – o texto abandona o gênero de conhecimento conhecido como “jornalismo” e se transforma, desde sua hipótese de partida nunca provada (a culpabilidade de Lula no caso) num enfadonho discurso ideológico. Jamais se poderia apresentar esse conjunto de coisas requentadas como “informação jornalística”, senão vejamos alguns trechos.
O tratamento jocoso aos líderes cubanos e ao próprio ex-presidente Lula fica patente, desde as primeiras linhas do longo artigo de opinião. Sim, não é uma reportagem. Observemos o lide: “No dia 31 de maio de 2011, meses após deixar o Palácio do Planalto, o petista Luiz Inácio Lula da Silva desembarcou em Cuba pela primeira vez como ex-presidente, ao lado de José Dirceu. O presidente Raúl Castro, autoridade máxima da ditadura cubana desde que seu irmão Fidel vergara-se à velhice, recebeu Lula efusivamente. O ex-presidente estava entre companheiros. Em seus dois mandatos, Lula, com ajuda de Dirceu, fizera de tudo para aproximar o Brasil de Cuba – um esforço diplomático e, sobretudo, comercial. Com dinheiro público do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, o Brasil passara a investir centenas de milhões de dólares nas obras do Porto de Mariel, tocadas pela Odebrecht. Um mês antes da visita, Lula começara a receber dinheiro da empreiteira para dar palestras – e apenas palestras, segundo mantém até hoje” (p. 34-36, com grifos meus).
A acusação esta no segundo parágrafo da “reporcagem”, como se pode conferir: “Naquele dia, porém, Lula pousava em Havana não somente como ex-presidente. Pousava como lobista informal da Odebrecht” (p. 36). No parágrafo seguinte, o jornalista Thiago Bronzatto, que assina o artigo de opinião, é mais direto ao ponto porque não colaria essa categoria de lobista informal: “A visita de Lula aos irmãos Castro, naquele dia 31 de maio de 2011, é de conhecimento público. O que eles conversaram, não – e, se dependesse do governo de Dilma Rousseff, permaneceria em sigilo até 2029. Nas últimas semanas, contudo, ÉPOCA investigou os bastidores da atuação de Lula como lobista da Odebrecht em Havana, o país em que a empreiteira faturou US$ 898 milhões, o correspondente a 98% dos financiamentos do BNDES em Cuba”.
Ao longo de extensas 10 páginas, o leitor é brindado com um arrazoado político que poderia ser assinado, com plena legitimidade, por qualquer parlamentar do bloco de oposição ao governo Dilma Rousseff. Nas páginas de uma revista tida como jornalística se transformam em retórica ideológica chinfrim. Nenhum telegrama citado (que supostamente foi escrito de maneira secreta pelos diplomatas que acompanharam as reuniões de Lula com líderes cubanos) comprova a tese e acusação central: o ex-presidente teria agido como lobista da empreiteira Odebrecht. Logo, teria auferido algum tipo de ganho financeiro e/ou político com isso.
ÉPOCA briga com os fatos
Em defesa do ex-presidente, o Instituto Lula afirma: “Ao contrário do que o texto insinua, maliciosamente, não há, nos trechos reproduzidos, qualquer menção a interferência do ex-presidente em decisões do BNDES, pelo simples fato de que tal interferência jamais existiu nem seria possível, devido aos procedimentos internos de decisão e aos mecanismos prudenciais adotados pela instituição” (Fonte: http://migre.me/rnv6e). Segundo o Instituto, “em maio de 2011, por ocasião da mencionada visita do ex-presidente a Havana, o financiamento do BNDES às obras do Porto de Mariel estava aprovado, havia dois anos, e os desembolsos seguiam o cronograma definido nos contratos, como é a regra da instituição, que nenhum suposto lobista poderia alterar” (Cit.).
O tom jocoso e agressivo percorre todas as linhas do material publicado. A revista autodenominou de “reportagem investigativa”, mas inexiste investigação – apenas o vazamento de documentos supostamente em poder do Ministério Público Federal (no Rio e em Brasília). Uma passagem para ilustrar o estilo grotesco do discurso de Época está nas páginas 37 e 38, quando trata das possíveis garantias ao empréstimo do BNDES: “As garantias são recebíveis da indústria tabagista cubana. Isso significa que, em caso de calote de Cuba, o Brasil levaria fumo. Teria de vender charutos cubanos para cobrir o rombo. Estima-se que o governo cubano fature cerca de US$ 400 milhões por ano com as vendas de charutos – abaixo, portanto, do total desembolsado pelo BNDES para viabilizar a construção do Porto de Mariel, cujo custo chegou a US$ 682 milhões”. Ora, dois anos de produção cobrem a totalidade (com sobras) do empréstimo, logo a garantia seria executável – à luz de qualquer análise financeira minimamente honesta.
Um detalhe altamente relevante para entender a “alma dos negócios entre Cuba, Lula, BNDES e a Odebrecht” é revelado pelo repórter de Época na página 38. A pretexto de comprovar a intimidade do ex-presidente com os irmãos Castro ele revela que estes haviam “obrigado seus cozinheiros particulares a aprender a fazer churrasco para agradar ao ex-presidente brasileiro”. Bingo! Eis o ponto central de toda trama…
Respondendo ao artigo publicado em Época, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), resgata informações básicas: “Na ocasião da visita do ex-presidente Lula a Havana, relatada pela revista, os financiamentos do BNDES para as exportações de bens e serviços na obra de Mariel já estavam em curso. O primeiro crédito foi contratado pelo Banco em fevereiro de 2009”. Igualmente a instituição “repudia a qualificação dada por ‘Época’ de que as condições do empréstimo para as obras no porto de Mariel teriam sido ‘camaradas’. O Banco reitera que os financiamentos a exportações de bens e serviços brasileiros para as obras do Porto de Mariel foram feitos com taxas de juros e garantias adequadas. O relacionamento do BNDES com Cuba foi iniciado ainda no final da década de 1990 (governo FHC), sem qualquer episódio de inadimplemento ou atraso nos pagamentos”.
O BNDES fecha seu consistente contraponto esclarecendo duas questões centrais: o retorno do empréstimo e o alcance de sua atuação como órgão de fomento ao desenvolvimento econômico e aos setores produtivos do país. A organização garante que “o resultado é que, no seu conjunto, os financiamentos do BNDES à exportação de bens e serviços de engenharia geraram um retorno financeiro de R$ 2,4 bilhões entre 2007 e 2014. Este valor é superior ao que seria obtido caso os recursos tivessem sido remunerados pela taxa Selic”. E finaliza: “O BNDES lembra, mais uma vez, que os desembolsos para esse tipo de operação são feitos no Brasil, em reais, e envolvem uma rede de fornecedores. De 2007 a 2014, essa atividade beneficiou diretamente 3.528 empresas — sendo 2.745 micro, pequenas e médias —, que movimentaram, no período, cerca de US$ 2,2 bilhões, gerando emprego e renda para trabalhadores brasileiros”.
JN completa o “serviço”
A veiculação no Jornal Nacional é manobra antiga no meio jornalístico, basta resgatar a cobertura da Lava-Jato na dobradinha do telejornal com a revista “Veja”. Neste caso, trata-se do conhecido “cozidão” de fatos sem nexo histórico, descolados inclusive da repercussão que o assunto já teve nas recentes eleições presidenciais de 2014. A chamada da matéria já indicava todo seu viés: “MP investiga empréstimo do BNDES para construção de porto em Cuba”. E prosseguia o âncora: “Segundo reportagem da revista Época, haveria indícios de tráfico de influência praticado pelo ex-presidente Lula junto ao governo cubano” (sic?). Ou seja, numa completa inversão da lógica e dos fatos – e, portanto, a centenas de milhas da verdade – o ex-presidente praticara “tráfico de influência” junto ao governo cubano para liberar recursos do BNDES em benefício da empreiteira Odebrecht?
A matéria no JN se limita a reproduzir e enfatizar, em linguagem visual, trechos de supostos documentos secretos que comprovariam o eventual ilícito praticado por Lula da Silva. Sem compromisso com nenhum tipo de apuração, o apresentador vai conduzindo a pauta casada na direção de ecoar a munição disparada no veículo impresso, que naquela hora já circulava nas bancas de venda avulsa, e residências de assinantes, em todo país.
Ao final, no velhaco “jogo de faz de conta”, o próprio apresentador garante que o telejornal tentou “ouvir” todas as partes envolvidas e blá-blá-blá… O elementar seria ouvir o próprio setor produtivo, diretamente beneficiado ou não por esse tipo de iniciativa do governo brasileiro. Com efeito, no final de janeiro de 2014, o diretor titular do Departamento de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Derex) da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Thomaz Zanotto afirmava em entrevista ao Jornal da Record News: “A construção do porto cubano é uma oportunidade para o Brasil melhorar a presença econômica na América Central e Caribe” (Fonte:http://migre.me/rnxhG).
Na visão do dirigente da FIESP, o porto de Mariel é interessante para o Brasil não apenas do ponto de vista econômico, mas também do ponto de vista estratégico. “A inserção econômica brasileira no Caribe é pouca, atualmente. O porto pode ajudar a melhorarmos isso (…). Cuba pode ser uma plataforma comercial e ajudar o Brasil a ampliar sua influência no Caribe e América Central” (Assista à entrevista aqui: http://migre.me/rnxnf).
O final do longo artigo de Thiago Bronzatto é altamente revelador dessa mistura de pauta requenta temperada com desonestidade jornalística (e intelectual). Ele escreve candidamente: “Em depoimento à CPI o presidente do banco, Luciano Coutinho, disse que Lula jamais interferiu em qualquer projeto de financiamento. Os documentos obtidos por ÉPOCA mostram uma versão diferente. Caberá ao MPF e à PF apurar os fatos”. Depois de acusar o ex-presidente de ser “lobista da Odebrecht em Havana”, o jornalismo de esgoto da revista global joga no “colo” do Ministério Público e da Polícia Federal o papel de apurar os fatos. Afinal, investigação jornalística não é com eles. A especialidade da revista é publicar vazamentos seletivos.
Quando o jornalismo se reduz a mera ideologia, se for impresso nem para embrulhar peixe serve. Esse é mais um episódio de uma espécie de jornalismo em extinção, que se afasta do interesse público e é fiel apenas ao seu projeto político. A verdade, neste e em outros tantos casos, é reduzida a um mantra ideológico e repetida em dez páginas ou mais, sem o menor pudor. Neste caso, o alvo é a candidatura já anunciada de Luís Inácio Lula da Silva para 2018. O tiro certeiro e mortal, neste instante, é no jornalismo como bem público.
Samuel Lima é professor da Faculdade de Comunicação da UnB; pesquisador do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO/UFSC) e do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS/UFSC).

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