Jaqueline Gomes de Jesus fala sobre ativismo intelectual, literatura, transfeminismo e feminicídio trans

Quem pensa, estuda e pesquisa a população trans e negra certamente já se deparou com textos de Jaqueline Gomes de Jesus, 39 anos. Doutora em psicologia pela UnB, com pós-doutorado em Ciências Sociais e História pelo CPDOC/FGV Rio, é professora do IFRJ. A brasiliense é um dos maiores nomes do ativismo intelectual: aquele que pesquisa e produz conhecimento que transforma mentalidades.

Há 20 anos, na Capital Federal, entrou no Instituto de psicologia e também integrou o grupo LGBT Estruturação. No mestrado, abordou o trabalho escravo no Brasil contemporâneo. No doutorado, pesquisou as Paradas do Orgulho LGBT. E no pós-doutorado, correlacionou os temas “trabalho” e “movimentos sociais”.

Pela contribuição em prol dos direitos humanos, artísticos, democráticos e culturais, recebeu uma honraria histórica para a população de mulheres trans negras: a medalha Chiquinha Gonzaga, na Câmara Municipal do RJ. Também recebeu o prêmio Rio Sem Homofobia por coordenar curso sobre diversidade a professores, na UFRJ.

Durante a Flip neste ano, ela lançou a segunda edição dos livros “Transfeminismo: teorias e práticas” e “Homofobia: Identificar e prevenir”, bos ada editora Metanoia. As obras registram a militância intelectual, cria referência (sim, é importante citar e referenciar) e evidencia a importância de trabalhos, pesquisas e textos feito por pessoas trans em língua portuguesa.

Pouco depois, a gente conversou com ela. Confira o bate-papo:

– Nos últimos anos começamos a ter algumas pessoas trans escrevendo as suas próprias biografias e livros, abrindo o espaço além do discurso oral. A que se deve esse momento?

Atualmente, esses blogs e sites fazem com que as pessoas trans construam a própria história e a própria vida a partir do relato. Elas publicizam pelo diário, transpondo isso também para outros tipos de literaturas e livros. Para as pessoas cis é interessante e exótico, mas para as pessoas trans é muito relevante. Esse momento se deve a partir da própria luta do movimento trans, que tornou o assunto mais visível, que iniciou questões na mídia de forma geral. Além disso, o espaço da internet, que é aberto a estes relatos e acessível, também contribue. Mas é preciso dizer que as produções de pessoas trans, para além de “oralituras”, já existem há bastante tempo.

– Me dê alguns exemplos de algumas autoras e autores trans? 

São obras que falam de experiências trans, mas que às vezes não são nomeados como de trans. Como o livro de poemas do Anderson Herzer (1962-1982), que publicou A Queda Para o Alto, que tem o prefácio do Eduardo Suplicy. Ele foi tratado como uma lésbica masculinizada, mas hoje a gente entende como homem trans. O livro fala sobre a vida dele em forma de poemas. Outra é a Ruddy Pinho, que a mídia sempre divulga como cabeleireira, mas que – além disso – é uma escritora premiada. Há várias narrativas de pessoas trans que se perderam e que foram invisibilizadas, ao mesmo tempo em que há novas surgindo como as de Amara Moira, Jordhan Lessa, o próprio João Nery, que se tornou um paradigma para os homens trans no brasil. Mas também conheço livros de homens cis que são muito bons, fantásticos. Como o livro “A Inevitável História de Letícia Diniz”, de Marcelo Pedreira, que fez entrevistas com várias travestis da Lapa e que construiu a história dela contando várias histórias. Sinto falta de outras narrativas de mulheres trans.

– Ao mesmo tempo, você foi a única autora trans que esteve presente na FLIP neste ano. De qual maneira sente que esses espaços recebem o seu trabalho? 

Fui convidada para falar na mesa sobre gênero na literatura pela “Globo na Flip”, sou citada no catálogo intelectuais negras visíveis, que foi organizado pela professora Giovana Xavier e participei enquanto autora da Metanoia. Relancei a segunda edição do Transfeminismo: Teorias e Práticas edo Homofobia: Identificar e Prevenir. Fui a única autoratrans presente nesses três momentos. Outras autoras e autores trans não estavam presentes porque não foram convidados pela programação oficial ou pelas outras programações. Tenho sempre o cuidado de, quando falo do meu trabalho, lembrar que sou uma professora, pesquisadora e que estou trazendo uma produção engajada, porém fundamentada cientificamente, através do meu ativismo, que é intelectual. Umsaber-fazer por meio de pesquisa e reflexão como acadêmica. Na Flip, a discussão foi ótima. Mas as pessoas tendem a personalizar demais a questão, senão transformar em exótico o fato de uma autora trans estar falando ou ter um livro a respeito, sem considerar a produção e a pesquisa. Então tem essa problemática por trás disso, que de forma alguma se restringe a um espaço social, mas a todo um pensamento social sobre a produção de conhecimentos por parte de pessoas trans.

– Essa problemática de ser apontada como uma autora exótica aparece em quais momentos? 

É frequente incluir a presença de pessoas trans, em eventos, como tokens, como símbolos de como se idealiza a própria população trans. E as pessoas vão falar para mim no final: “Que legal a sua história, como você é corajosa”. Quer dizer, é legal as pessoas virem comentar sobre minha coragem, mas a pessoa não leu o que eu escrevi como conteúdo, não viu que tem uma pesquisa por trás. Ela está falando isso porque eu falei em algum momento que eu sou trans. Muitas vezes, a gente não percebe as filigranas dos discursos sobre autoras e autores trans, em que se exotifica a produção da gente, não como uma produção da gente ou sobre a realidade, mas como se fosse uma coisa fantástica nós falarmos sobre nós mesmos. Como se fosse uma coisa estranha e a gente não tivesse condições de refletir de maneira complexa sobre o mundo, não somente acerca de nossas realidades particulares. Isso é muito reducionista.

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 Jaqueline e amigos com os livros Transfeminismo e Homofobia

– Quando participa desses debates, você se apresenta enquanto mulher trans? 

A Flip foi um bom exemplo de quando cabe ou não trazer essa informação. No catálogo não foi colocada a questão de eu ser uma mulher trans, pois o foco era a minha produção enquanto intelectual, em termos dos meus temas principais de pesquisa: trabalho, identidade e movimentos sociais. No debate da Globo na Flip, que versou sobre Gênero na Literatura, não me apresentaram a partir da minha identidade de gênero, com o que concordei: Considerando a discussão de gênero e o posicionamento da prática do olhar feminista, achei que cabia somente a mim falar sobre isso, quando tratamos, particularmente, da diversidade das mulheres. Era importante e relevante colocar-me como mulher trans negra nesse debate. Quem acompanhou o debate, aprendeu muito e teve uma interlocução muito interessante. Acredito (risos).

– Você lançou a segunda edição do seu livro “Transfeminismo: Teorias e Práticas”. O que te motivou a trazer esse tema em livro? 

Tinha a preocupação de registrar em livro uma amostra de toda a enorme produção intelectual que as pessoas trans e cis estavam desenvolvendo sobre feminismo trans, nessa novíssima linha de pensamento e ação. Achei que era importante porque na internet, como ela é uma base muito fluída, as pessoas esquecem os que as outras escreveram antes e não fazem referenciações. A Viviane Vergueiro, por exemplo, pesquisadora do CUS/UFBA, produz muita coisa e não é referenciada. Vejo muita gente falando sobre interdições de banheiro a pessoas trans hoje, mas eu já escrevi sobre isso em 2012, inclusive para uma revista jurídica, a Consulex. Então as pessoas pensam a partir de reflexões que a gente já colocou, mas que na rede se pluralizam, não tem referência e não remetem às origens. Também não considero somente o olhar de pessoas trans, mas também o olhar de pessoas cis, que ouvem, participam e estão pensando juntas com pessoas trans para a construção dessa nossa realidade. Afinal, a gente não fala no livro só de pessoas trans. A gente fala do mundo, pelo olhar transfeminista.

– Quando o movimento Transfeminista surge no mundo e no Brasil? 

O transfeminismo começa a ser discutido nos EUA no final dos anos 80, 90 por Emi KoyamaJulia Serano, entre outras, e esse nome está sendo dado a uma novíssima ação e pensamento feminista. Esse pensamento tem uma ligação muito fortes com as reflexões do movimento negro, sobre intersecção das identidades, não-hierarquia de opressões, confusão conceitual entre gênero e sexo, apagamento da diversidade do ser mulher, que as feministas negras já colocavam. A crítica se dá porque quando se falava de mulher, se falava automaticamente da mulher branca, e não da mulher negra, indígena… Hoje, quando se fala da mulher, pensa-se automaticamente na mulher cis, e não na mulher trans. A discussão no Brasil começou há uns 5 ou 6 anos por meio da Aline FreitasHailey Kaas… Elas trouxeram essa discussão para cá.

– Qual é a necessidade de se firmar enquanto transfeminista ao invés de feminista?

É engraçado perguntar qual é a necessidade de se firmar transfeminista ao invés de feminista. Porque quando uma feminista negra diz que é feminista negra ela é feminista. Então é óbvio que a transfeminista é feminista, não tem diferença. Quando penso no transfeminismo, eu não estou falando sobre o feminismo que só é feito por pessoas trans, mas de um feminismo que valoriza o olhar de pessoas trans, que temos o nosso olhar numa sociedade majoritariamente cis e transfóbica. E isso traz contribuições, não só para as pessoas trans, mas para as pessoas cis. O transfeminismo é um olhar, é um óculos com se vê outros ângulos do mundo, valorizando a história de luta das travestis, os direitos reprodutivos de mulheres trans e homens trans… Precisamos ser todos feministas, estamos falando sobre opressão de vida, de relações. E o feminismo só empodera as pessoas trans, principalmente nós, mulheres.

– De alguma maneira as mulheres cis que não incluem as travestis e mulheres trans na luta acabam lutando contra a própria causa?

Quando não se reconhece a mulheridade das mulheres trans, a gente não está reconhecendo a diversidade de ser mulher, que é pedra fundamental da ideia de gênero: do que é ser mulher. Reconhecer a multiplicidade das condições de ser mulher é lembrar que somos diversas. Que nenhuma é melhor do que a outra, “mais mulher” ou “mulher de verdade” por causa da sua identidade étnico-racial, classe social, orientação sexual ou identidade de gênero! As mulheres cis não são iguais entre si, porque as mulheres trans têm que ser iguais entre si, ou iguais às mulheres cis? Porque as negras teriam que ser iguais às brancas? Não somos! As experiências são outras, mesmo as experiências biológicas não são iguais entre as mulheres cis, não são iguais nem entre as mulheres trans. Então, quando se luta contra a mulheridade das mulheres trans, está se lutando contra a própria integralidade do ser mulher.

– Como sensibilizar essas pessoas? 

Quando vejo algumas feministas radicais e transfóbicas, existe por trás de toda teorização uma falta de empatia e a própria transfobia, que dificulta o diálogo. Pode soar como psicologização de minha parte, não posso fugir disso (risos), mas há um déficit afetivo a ser resolvido. O trabalho com a discriminação é complexo. Falta muita leitura feminista, mas às vezes a pessoa tem informação, mas não consegue de alguma forma elaborá-la e incluir certos indivíduos no seu ideário de humano, e particularmente no ideário que tem de mulher. E é uma questão só para essas pessoas, é importante dizer, ela não é uma questão para as mulheres trans. Pois as mulheres trans continuam se vendo, reconhecendo-se e sendo mulheres. Nós, mulheres trans, temos a mesma autoridade para falar de mulheridade quanto outras mulheres, porque senão a gente reforça o discurso de que as mulheres trans precisam ser validadas pelas mulheres cis. Ou que os homens trans têm que ser validados pelos homens cis. E isso é um discurso transfóbico de novo. A empatia depende da convivência, envolve principalmente se relacionar com o outro. E temos trabalhado muito mal a questão afetiva na academia, nas consultorias, nas militâncias. Somos uma sociedade que não valoriza o afeto. A falta de empatia é central quando falamos de humanidade das pessoas trans. Porque as pessoas transfóbicas poderiam apontar as mulheres trans como homens, mas elas não apontam como homens completos. Ou seja, a própria humanidade é questionada.

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Jaqueline participa da programação da Globo na Flip

– E em qual momento escreveu o “Homofobia – Identificar e Prevenir”? Você chega a falar sobre a lesbofobia, bifobia e transfobia? 

A editora Brasiliense tinha uma coleção chamada Identificar e Prevenir. Como minha tese de doutorado foi sobre a Parada do Orgulho LGBT, eles encomendaram e eu produzi o livro. Mas a editora faliu e eu fiquei naquela situação de não saber o que fazer. Como a Metanoia havia publicado o Transfeminismo, e soube desse meu dilema, a editora Léa Carvalho solicitou o oritinal, que eu encaminhei. A ideia é que o livro seja um guia para que educadores, de forma geral, entendam que homofobia é diferente de lesbofobia, bifobia e transfobia. O título é simples para que dentro as pessoas entendam que tem diferenças, que não dá para chamar todas essas diferentes discriminações por orientação sexual ou por identidade de gênero somente como homofobia. Explico a natureza da lesbofobia, que é marcada pela violência de gênero contra as mulheres. Da bifobia, que tem muita relação com a invisibilização das pessoas bissexuais. E da transfobia, que fala sobre situações de violência sobre a identidade de gênero, contextos de violência e de adoecimento das pessoas trans, que são diferentes e específicos de outros grupos sociais.

– Percebo que há muita dificuldade de as pessoas identificarem o que é LGBTfobia. Isso deve-se ao fato de esse preconceito estar naturalizado no país? 

Tem uma questão de base. A gente tem que lembrar que a cultura do Brasil entende a educação muito mais que uma questão de status que de formação da pessoa e do profissional. Daí vou entrar nesse conceito de LGBTfobia, que eu não uso. É um termo que na militância usam para simplificar quando estão falando das discriminações que envolvem diferentes grupos e que não visa repetir o reducionismo de usar o termo homofobia para tudo. Observo que prevalece uma lógica mais de fetichismo sobre uso da sigla do que de entendimento da natureza desse movimento político, que envolve diferentes identidades que não são iguais, com base em gênero e orientação sexual. É uma discussão que o movimento, no meu entendimento, vai levar até algumas décadas para fazer de maneira radical, ainda mais considerando a visibilidade de novas identidades que a gente tem. O fato de as pessoas não entenderem LGBTfobia tem esses dois níveis: Um é a dificuldade de compreensão, para além do seu horizonte ideológico muito restrito, construído pela cultura, e também do próprio problema de não se falar de conceitos, mas de uma sigla que agrupa vários conceitos, que não são explicados. Outro nível é o da comodidade: as pessoas querem ouvir relatos mas não têm acesso a livros ou paciência para entrar no Google e pesquisar. Elas esperem que alguém explique isso, o que lhes retira autonomia de pensamento

– Por qual motivo o Brasil é considerado um dos países mais transfóbicos do mundo?

A estatística que existe é que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. E quando a gente fala isso a gente tem que frisar que são “pessoas”, genericamente. Na maioria absoluta são travestis e mulheres trans. Participo de um capítulo do livro “Feminicídio: #InvisibilidadeMata”, do Instituto Patrícia Galvão, financiado pela fundação Rosa Luxemburgo, e falo que a transfobia no Brasil e o genocídio de pessoas trans no Brasil é um feminicídio. O Brasil é um país feminicida trans. Essa discussão está presente considerando outros dados levantados por instituições, como o de que mais de 90% de nós só encontra trabalho no mercado sexual; que nossa expectativa de vida mal passa dos 30 anos. Leve-se em consideração que, apesar de legal, a prostituição não é regulamentada no Brasil, fazendo com que muitas vivam em situação de precarização e vulnerabilidade. Temos vários contextos de vulnerabilização envolvidos, pelo fato de não termos legislação que garanta de fato os direitos humanos da população trans, como a retificação do nome e sexo no registro civil sem a necessidade de judicialização, medicalização e psiquiatrização, apenas no cartório, a exemplo da Lei de Identidade de Gênero da Argentina.

– Como avalia o enfrentamento da transfobia no país pelos movimentos organizados e ativismos individuais?

Existem muitas dificuldades, mas não somente no movimento político, também na mobilização social, particularmente do movimentos LGBT oficiais. Eles falham historicamente em desconsiderar as demandas da população trans como prioridade. A gente soube recentemente, pelo advogado Paulo Iotti, que o SupremoTribunal Federal não colocou na pauta de agosto o processo de retificação do nome e sexo do documento das pessoas trans. Fiz um comentário que isso não era uma questão só de transfobia do STF, mas também da falta de mobilização e interesse de associações, principalmente as que já tem história e estrutura. Quando houve a pauta da união civil entre pessoas do mesmo sexo, essas associações se engajaram inteiramente, mas para a pauta do registro civil não há essa mobilização. Obviamente que se devem considerar as diferentes conjunturas políticas e de financiamento de organizações não governamentais, mas essa é outra questão. As frestas que a gente tem se dão pelo ativismo autônimo e pelo ativismo do movimento trans, que tem articulado estratégias como a da política do nome social, frágil, porém empoderadora, nesta nossa realidade de tanto desprezo.

– Do ponto de vista estratégico, é possível levantar várias bandeiras e fazer parte de vários movimentos ao mesmo tempo?

Sim, esse é o grande desafio dos novíssimos movimentos sociais: aprender a lidar, na prática, com a interseccionalidade. Entender que nós somos mulheres trans, negras, de um determinado contexto social, com determinados aspectos físicos, com a necessidade de lidar com algumas realidades. Então, quando a gente fala sobre movimentos de mulheres, é importante que a gente lembre que há mulheres cis, mulheres trans, mulheres brancas, mulheres negras, indígenas, lésbicas, bissexuais, gordas, de periferia… Entender a interseccionalidade. Quando os novos movimentos sociais surgiram, de base identitária, ainda não tinham essa perspectiva.

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– O que representa ser uma mulher transexual e negra no Brasil?

Representa enfrentar transfobia, misoginia e racismo. Também exotificação, assédio e objetificação. A mulher trans negra é mais invisibilizada, pois quando a gente fala sobre a mulher trans, sobretudo nos meios de comunicação, você só vai ver a mulher branca. Inclusive no trabalho sexual: qual é a mais bem paga? É a branca. A negra está excluída. Nós somos um país estruturalmente racista e isso se evidencia mesmo dentro de um contexto de pessoas cis que convivem com pessoas trans, que trabalham com pessoas trans. O racismo que constitui a cultura brasileira é velado, não é verbalizado. A minha produção intelectual, por exemplo, é muito menos visibilizada e divulgada do que o eu acredito que poderia ser, pelo fato de eu ser uma mulher trans e negra. Então isso é muito forte. Quando minha titulação não é referenciada, eu acho que é um sintoma de racismo. Eu tenho essa leitura, que vai dialogar com outras e outros autores negros que já refletiram a respeito. Isso desde Lélia Gonzalez (1935-1994), quando ela afirmou que o negro no Brasil tem que ter nome e sobrenome.

– A reflexão sobre ser uma pessoa negra veio antes de ser uma mulher trans? De qual maneira lidou com essas duas características ao longo da sua história? 

A gente tem que lembrar que qualquer pessoa vive uma diversidade de características que coincidem ao longo da sua vida. Mesmo que seja um homem branco, numa perspectiva de poder, ele vive com uma diversidade de características. Eu vou falar das minhas. As minhas experiências, enquanto negra, vêm de famílias paterna e materna de negros de cor parda antiga, com registros que consegui resgatar até o século 19. Era chamada de famílias de “mullattos”, conforme a grafia arcaica. Eles lidaram, ao longo dos séculos, com essa experiência de ser negro, com dilemas de embranquecimento e de racismo no dia a dia. Tive muita troca com familiares, minha mãe, em especial. E uma experiência muito importante como pessoa negra na universidade, foi quando eu assumi o cargo de assessora de diversidade e apoio aos cotistas e coordenadora do Centro de Convivência Negra da UnB. Isso foi importante para a minha formação de identidade sobre ser negra, sobre o espaço da negritude e da minha forma própria de ser pessoa negra.

O reconhecimento como mulher trans, apesar de ser posterior ao de ser negra, retoma a experiência desde a infância. Quando falei para uma tia que me reconhecia como mulher trans, ela falou que era natural, que desde pequena já tinham percebido a minha forma de ser, que era bem feminina. E que a princípio, com as referências da época, achavam que eu seria um rapaz gay. Mas que pela minha forma de ser ao longo da vida e a minha relação com a orientação sexual homossexual e com a identidade de gênero “homem” (cis), mostrava muita inadequação com essa concepção de ser gay. E ser mulher trans (heterossexual) tinha muito mais a ver com minha identidade.

– Então foi tranquilo dizer ao mundo que é uma mulher trans? 

Minha família me deu muito apoio, muita força, desde minhas tias, avó, foi uma coisa fantástica que me fortaleceu bastante. Com amigos mulheres e homens cis héteros nunca tive problema. Eles até incentivavam e comprovam roupas, me davam presente e me fortaleceram no ambiente de trabalho. Foi marcante. O interesse é que as problemáticas ocorreram com os colegas gays cis, que tinham dificuldade de me reconhecerem como mulher trans. Talvez fosse difícil para eles conhecerem uma pessoa, que conheciam com determinada identidade de gênero, apresentar-se com outra, o que redunda numa outra visão sobre a própria orientação sexual. Talvez isso traga muita insegurança, misoginia e, enfim, transfobia. Hoje, eu me sinto muito mais completa como mulher trans e negra. Isso porque só estou focando nessas duas dimensões.

– Fala-se muito sobre a solidão da mulher negra. O que podemos falar sobre o assunto? 

Recentemente, fiz uma reflexão sobre o “eutivismo”. É como algumas pessoas intitulam ativismo a partir dos relatos pessoais, que não passam disso. Eu vejo de forma muito positiva, até como psicóloga social, que as pessoas façam do pessoal político. Porém há falta de ação coletiva nesta perspectiva individualizante. Torna-se um rosário de relatos pessoais que não aprofundam em discussões conjunturais. Penso que o tema da solidão da mulher negra deve ser problematizado, porque a grande questão é que a mulher negra é preterida. O termo que eu usei é significativo. “Preterida”. Eu não usei “rejeitada”. Preterir significa que existe uma outra opção e que então essa mulher negra fica em segundo lugar. Você se sente menor que outra pessoa e a sua inclusão nessa lógica do afeto é sempre marginalizada. É óbvio que a mulher trans negra é preterida em função da mulher trans branca, esta da mulher cis negra, e esta da mulher cis branca.

Tenho olhar atento ao racismo, porque o racismo é, repito, um eixo estruturante da sociedade brasileira. Em qualquer aspecto, mesmo quando não tem nada a ver com pessoas negras, o racismo está presente. E essa lógica de segregação de determinados grupos com a ideia de que existe um grupo de humano ideal, é determinante de nossas relações sociais e nos assujeita em vários níveis. Nós não conseguimos superar o trauma da subalternização do outro que nos persegue, como cultura, desde quando a escravidão moderna dos povos africanos nas Américas. Também o termo “solidão” pode estar sendo usado de maneira enviesada. É preciso dizer que nós, mulheres trans e cis negras, nunca estamos sozinhas. É um pouco falho falar de solidão quando nós temos outras mulheres que nos ajudam, amigas – e amigos – que estão conosco e nos empoderam, mesmo que às vezes só ao nível da auto-percepção, e não no dos relacionamentos afetivos. A mulher negra tem outras mulheres negras junto, seja trans ou cis. O problema é que o homem ainda é colocado como nosso grande referencial de companhia, e esquecemos da parceria afetiva de nossas irmãs e amigos. Nem estou falando de sexualidade, eu me refiro a afeto, que será, exatamente, a base de toda transformação nessas relações interpessoais degradadas. Gosto de usar a linguagem da internet para dar um encaminhamento prático a isso: precisamos “parar de dar biscoito pros ômi”.

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Jaqueline e a vereadora Marielle Franco

– Você acredita que falamos muito sobre a identidade de gênero de pessoas trans e pouco sobre a orientação sexual delas?

A questão da orientação sexual no contexto da trangeneridade não é discutida. O movimento LGBT tem pecado de alguma forma. Não é por acaso que recentemente surgiu um questionamento se mulheres trans que se dizem heterossexuais devem participar do movimento LGBT. Parece uma pergunta boba e até agressiva, para o nosso olhar de agora, mas vem de uma forma antiga de pensar o movimento LGBT, que não considerava os desejos e as particularidades das mulheres trans e das travestis. Há uma limitação histórica e política. A gente liga tanto a pauta da mulher trans com a pauta LGBT que associa muito às identidades homossexuais, o que é um erro, o que não ocorre em outros países. Então, os relacionamentos afetivos, principalmente das mulheres trans heterossexuais, enfrentam a questão de os homens não quererem assumir o interesse. A ridicularização sistemática dos meios de comunicação da imagem da mulher trans como aquela que é risível, que é ridículo se relacionar com ela, contribuem para isso.

– Você participou de capacitações sobre gênero na Globo. O que sente que as pessoas ainda não entenderam sobre as pessoas trans?

Foram feitas algumas atividades, eu tive diálogo com o pessoal do Amor e Sexo, participei de capacitação interna da equipe de criativos e convidados da Globo, publiquei artigo no Caderno Globo sobre gênero, conheci brevemente a Glória Perez e teve alguns pontos que me chamaram atenção em nossa rápida conversa. Ela tinha reclamado que o movimento de artistas trans a estava criticando por não haver um homem trans representando o personagem de Ivana, na novela A Força do Querer, que felizmente já e reconheceu como homem trans. O que coloquei para ela é que é natural que os grupos questionem, porque querem se ver representados. Não é uma questão de exclusividade, mas de se verem representados, ante a um histórico de estereótipo e de negação de protagonismo, inclusive humano, dentro dos meios de comunicação e entretenimento que representam pessoas trans.

Disse que ao longo de quase toda representação ficcional ou documental de mulheres trans, esta tem sido protagonizada por homens cis, raramente por mulheres cis, só recentemente por algumas mulheres trans. Fiz um paralelo com o black face, que é como representavam personagens negros do final do século 19 até meados do século 20. Abdias Nascimento questionava não só a ausência de personagens negros no teatro, mas a prática de atores negros serem substituídos por atores brancos. Era dito que não havia atores negros capacitados e gabaritados. O que o Abdias fez foi criar o Teatro Experimental do Negro. São referências. A gente tem que olhar para esse passado e pegar como referência, já que estão questionando a capacitação de pessoas trans. E também questionarmos qual é a fundamentação desse discurso. Consideramos que temos, sim, atores e atrizes trans capacitados. Temos que formar mais gente nessa área, não só atores e atrizes, mas toda uma cadeia produtiva ligada à economia criativa da arte e do entretenimento. Vejo que a Globo está dando essa abertura, as pessoas deveriam questionar mais as outras emissoras, que não estão fazendo.

– O que tem achado dessa polêmica em torno das identidades travesti, transexual e transgênero da novela A Força do Querer? 

Compreendo uma novela como uma narrativa extremamente complexa, que decorre da interação de vários temas, textos e roteiristas. Não sei afirmar o que foi lido por quem escreve a novela. Tem que se ver, ainda, com quem os redatores estão tendo contato. A pessoa que não discute a fundo a transfobia tende a achar que, pelo fato de a pessoa ser trans, ela vai ser professora de gênero. Que vai definir de forma refinada essas questões e as diferencias que a cultura brasileira constrói sobre ser travesti, transexual e transgênero. A conceituação dessas identidades não é consensual nem mesmo dentro da população trans. Mas você vê como a novela é importante no imaginário brasileiro. Ela move essa discussão. Falei para a Glória Perez que é importante que as pessoas trans falem, que a população ouça e que argumente. Faz parte do aprendizado. Ela tem trazido a discussão principalmente de ser homem trans e que pode ser o começo de uma discussão profunda de outros conceitos

– Por fim, gostaria de saber o que as pessoas cis aliadas podem fazer pela causa trans?

A partir do aprendizado com os estudos étnico-raciais, que entendo trazerem elementos que cabem para a cidadanização das pessoas trans, defendo que pessoas cis aliadas devem primeiro valorizar a fala e a produção de conhecimento de pessoas trans, reconhecendo-as como sujeitas e sujeitos que produzem conhecimento, não só como pessoas que têm saberes. Existe uma tokenização de pessoas trans, um olhar paternalista e uma infantilização das pessoas trans que precisa ser abolido. E quando pessoas cis falarem, que é importantíssimo que falem, sim, não silenciem pessoas trans e que tenham ouvido pessoas trans. É fundamental. Porque é estratégico que pessoas cis aliadas falem sobre pessoas trans. As aliadas não apenas falam sobre, elas falam positivamente sobre as pessoas trans (demonstrando o básico: pessoas trans são humanas, mulheres trans são mulheres e homens trans são homens), e são ouvidas pelas pessoas cis que ainda não questionaram sua própria transfobia. Por identificação. A pessoa cis vai ser ouvida. A pessoa trans, tipicamente vista com menosprezo, não é ouvida. Por isso as pessoas cis aliadas podem e devem fazer muito. Mas que não percam o horizonte de fazer referências, que indiquem, e que empoderem as pessoas trans nas suas falas.

Fonte: NLucon

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