Já ouviu falar de Antonieta de Barros, a primeira mulher negra eleita deputada no Brasil?

Imagem: Reprodução

Por Vitor Paiva.

Para que possamos superar nossos pobres hábitos e irmos além de vícios e preconceitos, é sempre preciso que alguém tenha a coragem do primeiro gesto – para enfrentar, muitas vezes na solidão do próprio destemor, aqueles que insistem em querer manter o mundo em um passado excludente que não cabe mais, não pode mais caber, em tempo algum. Para alguém que não é de Santa Catarina, o nome Antonieta de Barros pode soar completamente inédito. Mas se temos qualquer apresso por igualdade de gêneros, racial, liberdade de expressão, pela educação como um meio de mudar e melhorar nossa realidade, conhecendo-a ou não ela também é nossa heroína.

Nascida em 11 de julho de 1901, Antonieta surgiu junto com um novo século, em que as desigualdades de oportunidade e de direitos teriam de ser revistas e transformadas a qualquer custo. E não foram poucas as barreiras superadas: mulher, negra, jornalista, fundadora e diretora do jornal A Semana (entre 1922 e 1927), Antonieta teve de impor seu lugar e sua fala em um contexto nada afeito às opiniões e à força feminina – coragem essa que viria lhe catapultar à condição de primeira mulher deputada do estado de Santa Catarina, e à primeira deputada estadual negra do Brasil.

Florianópolis no início do século XXFlorianópolis no início do século XX

Filha de uma lavadeira e escrava liberta com um jardineiro, Antonieta nasceu 13 anos somente após o fim da escravidão no Brasil. Muito cedo se tornou órfã de pai, e sua mãe então, para ampliar o orçamento, transformou a casa em uma pensão para estudantes em Florianópolis. Foi através dessa convivência que Antonieta se alfabetizou, e assim começou a entender que, para se libertar do destino nada generoso reservado às jovens negras, seria preciso o extraordinário, e assim conseguir escavar um outro caminho para si. E, na época como ainda hoje, o extraordinário reside na instrução. Pela educação que Antonieta pôde libertar-se também da escravidão social que naturalmente lhe era imposta, apesar da abolição. Cursou regularmente a escola e o curso normal até se formar professora.

Antonieta entre colegas intelectuais e acadêmicos

Antonieta entre colegas intelectuais e acadêmicos

Em 1922 fundou o curso de alfabetização Antonieta de Barros, em sua própria casa. O curso seria dirigido por ela, com austeridade e dedicação que lhe faria conquistar respeito até entre as mais tradicionais famílias brancas da ilha, até o fim da sua vida, em 1952. Por mais de 20 anos colaborou com os principais jornais de Santa Catarina. Seus ideias foram compilados no livro Farrapos de Ideias, que assinou com o pseudônimo de Maria da Ilha. Antonieta nunca se casou.

As alunas do curso de Antonieta, com a professora em destaque

O Brasil em que Antonieta se formou educadora, fundou um jornal e ministrou um curso alfabetizante era um país em que mulheres não podiam sequer votar – direito que só se tornou universal por aqui em 1932. Supor a coragem exigida para que, em contexto como esse, uma mulher negra publicasse o seguinte parágrafo assombra e inspira: “A alma feminina se tem deixado estagnar, por milhares de anos, numa inércia criminosa. Enclausurada por preconceitos odiosos, destinada a uma ignorância ímpar, resignando-se santamente, candidamente, ao deus Destino e a sua congênere Fatalidade, a Mulher tem sido, de verdade, a mais sacrificada metade do gênero humano. Tutelada tradicional, irresponsável pelos seus atos, boneca-bibelot de todos os tempos”.

Antonieta sentada entre seus colegas parlamentares, no dia de sua posse em 1935 Antonieta sentada entre seus colegas parlamentares, no dia de sua posse em 1935

É também espantoso e profundamente sintomático sobre o próprio Brasil que as três causas da vida e luta de Antonieta (e, nesse caso, vida e luta são uma coisa só) permaneçam pautas centrais, ainda a serem alcançadas: educação para todos, valorização da cultura negra e emancipação da mulher. A própria campanha de Antonieta, em 1934, mostrava claramente com quem falava a candidata, e o tipo de enfrentamento exigido para que uma mulher negra pudesse sonhar em ser aquilo que, para os homens brancos, era oferecido como um futuro acessível: “Eleitora. Tens em Antonieta de Barros a nossa candidata, o símbolo das mulheres catarinenses, queiram ou não os aristocratas de ontem”. A ditadura do Estado Novo viria a interromper seu mandato como deputada, em 1937. Dez anos depois, em 1947, porém, ela seria novamente eleita.

Reconhecimento

Mesmo que já se tenha ouvido falar em Antonieta, a verdade é que o próprio cabimento de tal questão aponta certo absurdo ainda fatal sobre a natureza do Brasil como um todo. Pois para um Brasil livre e igualitário, Antonieta de Barros tem de ser nome tão comum e repetido quanto (ou muito mais do que) Duque de Caxias, Marechal Rondon, Tiradentes ou todos os presidentes ditatoriais que seguem batizando ruas e escolas pelo país.

Peguemos o exemplo de Rosa Parks, a ativista norte-americana que, em 1955, recusou-se a ceder o lugar para um passageiro branco no ainda segregado estado do Alabama. Rosa foi presa, mas seu gesto terminou por disparar uma sucessão de revoltas e resistências por parte do movimento negro que levaria ao grande levante pelos direitos civis (conquistando o fim da segregação e a igualdade de direitos no país) e tornaria seu nome imortal.

A quantidade de prêmios e homenagens recebidas pela ativista (assim como de ruas, prédios públicos e monumentos batizados com seu nome) é incalculável, e não só nos EUA; o esforço por torna-la símbolo incontornável do movimento social e da luta pela igualdade de direitos é, em certa medida, um mea culpa possível, realizado pelos próprios EUA, a fim de reparar um pouco ao menos o horror capitaneado pelo governo contra a população negra, apesar da ainda intensa desigualdade que reina por lá (e que a possível eleição de um Donald Trump não venha a contrariar essa impressão).

Pois o país que pretendemos construir no futuro é proporcional ao lugar em que colocamos nosso verdadeiros heróis e heroínas do passado – ou nem isso: o futuro do país é equivalente à qualidade de quem consideramos herói ou heroína em nossa história. Antonieta não viveu para ver um país melhor redimir sua luta e o próprio valor da educação, do negro e da mulher na sociedade brasileira.

A voz de uma mulher como Antonieta precisa em muito ser elevada. Toda e qualquer conquista civil, desde então e para o futuro, serão também necessariamente frutos de sua luta, pois, em suas próprias palavras, “Não será a tristeza do deserto presente que nos roube as perspectivas dum futuro melhor (..), onde as conquistas da inteligência não se degenerem, em armas de destruição, de aniquilamento; onde os homens, enfim, se reconheçam fraternalmente. Será, contudo, quando houver bastante cultura e sólida independência entre as mulheres para que se considerem indivíduos. Só então, cremos existir uma civilização melhor.”

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