Itália julga ex-militar uruguaio por sumiço de cidadãos europeus durante Operação Condor

Por Janaina Cesar.*

Dos 33 réus da ação que apura rede colaboração entre ditaduras do Cone Sul, ex-tenente Nestor Troccoli é o único a residir na Itália e pode pegar prisão perpétua.

O ex-tenente uruguaio José Fernades Nestor Troccoli, 67 anos, é um dos 33 réus do processo que tramita na Justiça italiana e julga a responsabilidade de ex-militares no sequestro e assassinato de 25 cidadãos latino-americanos com nacionalidade italiana cometidos entre 1973 e 1980, período de atuação da famigerada Operação Condor, uma rede de repressão política e troca de prisioneiros formada pelos serviços de inteligência das ditaduras do Cone Sul: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai.

Militar reponsável pelos interrogatórios da Fusna (Serviço de Inteligência da Marinha do Uruguai), Troccoli é, entretanto, o único entre os acusados que tem chances reais de ser punido pelos crimes — a lista de réus não inclui ex-agentes da ditadura brasileira.

O uruguaio fugiu da América Latina para não ser processado em seu próprio país e reside atualmente em solo italiano, onde as autoridades que julgam o processo têm jurisdição para prendê-lo e privá-lo de liberdade, caso seja efetivamente condenado pela Justiça.

Ex-tenente Nestor Troccoli

Ex-tenente Nestor Troccoli, 67, era o militar responsável pelos interrogatórios da Fusna, o serviço de inteligência uruguaio. Foto: Reprodução

Após quase 15 anos de investigação, a Justiça italiana iniciou em 2015 o julgamento em primeira instância do Processo Condor. A primeira audiência pública aconteceu dia 12 de fevereiro passado, no Tribunal de Roma. Estiveram presentes vários parentes de vítimas do Plano Condor, representantes de associações e de partidos políticos. Nestor Troccoli, de forma inesperada, compareceu à corte.

O processo, que ainda está na fase inicial, quando são realizadas as audiências preliminares, só teve início após familiares dos mortos e desaparecidos das ditaduras latino-americanas terem conseguido se organizar e pressionar por justiça, ainda que passados muitos anos. Desta forma, foi justamente para apurar e revelar o que aconteceu nos regimes de exceção da região que as investigações começaram na Itália.

O procurador Giancarlo Capaldo, responsável pelo caso Condor, conta que o processo teve início a partir de algumas denúncias de parentes das vítimas. “Tivemos o consenso do Ministério da Justiça e começamos a investigar. Estivemos em todos os países envolvidos no Plano Condor. Vasculhamos todos os arquivos daquela época para entender o que tinha acontecido, falamos com pessoas, recolhemos depoimentos de parentes, de outras vítimas que tinham sido presas ou sequestradas, falamos com testemunhas dos crimes ocorridos, juntamos, em uma década, material suficiente para reconstruir os fatos e poder ter provas para as acusações”, detalha Capaldo a Opera Mundi.

Ao todo foram investigados 146 ex-militares que pertenciam às ditaduras dos países do Cone Sul. Eram 61 argentinos, 32 uruguaios, 22 chilenos, 7 bolivianos, 7 paraguaios e 4 peruanos, além de 13 brasileiros — entre os quais estão os dois últimos presidentes do período militar, Ernesto Geisel (1974-1979) e João Baptista Figueiredo (1980-1985) [confira a lista completa dos 13 brasileiros investigados na Itália, mais abaixo].

Mesmo que a fuga de muitos e a morte de alguns ex-militares — como é o caso dos ex-presidentes brasileiros e dos chefes chileno, Augusto Pinochet, e paraguaio, Alfredo Stroessner — tenha dificultado a efetividade do trabalho, o procurador Capaldo afirma que a Justiça tem obrigação de procurar a verdade dos fatos cometidos contra os cidadãos italianos. “É uma questão moral e de princípio, não uma opção, mas uma obrigação. É uma forma de dar paz aos que todos esses anos procuraram por justiça”, sintetiza.

Nos anos 70, Operação Condor construiu rede de colaboração entre serviços de inteligência e repressão política das ditaduras sul-americanas

Vítimas

Especificamente contra o ex-militar uruguaio, os autos em trâmite na Justiça italiana relatam e descrevem inúmeras vítimas de Troccoli. A argentina Aida Celia San Fernandez, por exemplo, foi sequestrada em Buenos Aires na antevéspera do natal de 1977. Grávida, foi torturada com o uso de cabos elétricos e uma colher nas genitais, o que provocou o parto prematuro da filha, Mercedes Carmen Galo, que nasceu na prisão. Aida é mais uma das vítimas que integram a lista de desaparecidos do continente sul-americano: foi assassinada e seu corpo jamais foi encontrado.

No mesmo dia em que Aida deu à luz, uma outra família foi sequestrada e morta em Buenos Aires. O casal Ileana Sara Maria Garcia Ramos de Rossetti e Edmundo Sabino Rossetti Techeira, ambos nascidos em Montevidéu, viviam com a pequena Soledad, de 7 meses, em um apartamento no centro da capital argentina. Eram estudantes e militavam no GAU (Grupo de ação unificada), a resistência sindicalista uruguaia que foi reprimida com violência pela ditadura daquele país. Ao contrário dos pais, Soledad conseguiu ser salva pelo porteiro do prédio. Assim como eles, Yolanda Iris Casco Ghelpi, Julio Cesar D’Elia Pallares, Edgardo Borelli Cattaneo e Raul Gambaro Nunez também foram levados ao centro de detenção e tortura de Banfield, uma cidade próxima a Buenos Aires. Todos são desaparecidos políticos e detinham cidadania italiana. Ao lado de seus nomes, na lista de ingresso da casa dos horrores, constava a sigla DF — deposição final, que significava um tiro na nuca e sepultura em fossa comum.

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Ex-militares acusados na Argentina durante sessão de julgamento por crimes contra a humanidade

“Os crimes contra a humanidade não podem ficar impunes, a justiça pode e deve intervir sucessivamente e trazer a verdade do que aconteceu à tona. É muito importante conseguir estabelecer a verdade sobre o sistema Condor”, afirma o procurador Giancarlo Capaldo, ressalvando que seria importante que os países do Cone Sul, eles próprios, abrissem investigações para esclarecer as violações. Para ele, a mensagem é clara: “Ditadores, atenção, a justiça poderá sempre alcançá-los, seja a de seu país como a de um outro”.
Tortura, ‘condição de rigor’

Nas 24 páginas de seu depoimento à Justiça italiana, cujo acesso Opera Mundi obteve com exclusividade, o que se vê é uma lista com nomes de vítimas. No documento, o réu se declara inocente e diz não aceitar as acusações. “Não sabia da existência do Plano Condor, fazia o que meu comandante pedia”, diz. Já a tortura, para ele, era somente uma “condição de rigor”.

Eu sabia das torturas, sabia que nas Forças Armadas havia tortura. Sabia, assim como todos sabiam. A tortura era um procedimento normal na Fusna. Consistia em manter por várias horas os prisioneiros em pé, encapuzados, sem beber e sem comer. Mas torturar sadicamente e perversamente, não. A tortura era uma condição de rigor.

Segundo Adolfo Domingo Scarano, seu antigo advogado, Troccoli era somente um jovem tenente que obedecia ordens dos superiores. “Me explique que coisa ele poderia ter feito. Desobedecer o próprio país? Ok, ele comandava aquela unidade e interrogava os presos. Mas nunca torturou ninguém. Ele mesmo admitiu que deixava os prisioneiros acusados de terrorismo em pé, encapuzados, sem água e sem comida. Mas isto é tortura?”, questiona o antigo defensor. No entanto, quando ainda vivia no Uruguai, Troccoli escreveu e publicou A ira de leviatã, livro em que, além de reivindicar seus crimes e pretender ser reconhecido como um homem a serviço do Estado, tenta justificar a repressão e a tortura.

A equipe atual de defesa do ex-militar uruguaio, formada por Anna Cifuni e Francesco Guzzo, afirma que será capaz de demonstrar que Troccoli “não sabia dos fatos”. Os advogados argumentam que o uruguaio é somente um aposentado, que vive na Itália e que leva uma vida tranquila. “Ele foi colocado no processo somente porque trabalhava na Fusna, mas não significa que fez o que dizem ter feito.”

Na terra da Camorra

Se, no Uruguai, Troccoli era conhecido como o Torturador, em Battipaglia, o chamam George. A pequena cidade que o ex-militar escolheu para viver, a uma hora de Nápoles, é terra da máfia Camorra — a junta comunal local foi destituída em 2014 por infiltração camorrista e hoje vive sob governo comissariado.

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Complexo residencial onde Troccoli vive atualmente, na cidade de Battipaglia, reduto da máfia italiana Camorra. Reprodução/GoogleMaps

A reportagem de Opera Mundi tentou contatá-lo, mas não obteve resposta. Já seu advogado atual, Francesco Guzzo, pediu €15 mil para uma conversa exclusiva com o uruguaio. Ele disse ser como “uma puta, velha e mercenária” e, ainda, terminou a frase em português: “Sem grana, nada feito”.
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* Abaixo, a lista dos 13 ex-agentes da ditadura brasileira que foram investigados pela Justiça italiana; nenhum deles foi indiciado no processo da Operação Condor:

Ernesto Geisel, presidente (1974-1979);
João Baptista Figueiredo, presidente (1980-1985);
Antonio Bandeira, general, ex comandante do III Exército;
Marco Aurelio da Silva Reis, delegado, ex-diretor do Dops-RS;
Agnello de Araújo Brito, coronel, ex-agente da Polícia Federal do RJ;
Luis Macksen de Castro Rodrigues, coronel ex-agente da Polícia Federal do RS;
Octávio Aguiar de Medeiros, general, ex-chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações);
Euclydes de Oliveira Figueiredo Filho, comandante do Exército;
Henrique Domingues, general;
João Osvaldo Laivas Job, coronal, ex-secretário de Segurança Pública do RS;
Edmundo Adolfo Murgel, general, ex-secretário de Segurança Pública do RJ;
Carlos Alberto Ponzi, coronel, ex-chefe do SNI em Porto Alegre; e,
Átila Rohrsetzer, coronel, ex-chefe da Divisão Central de Informações do RS.

* Leia, em italiano, a íntegra do depoimento de Nestor Troccoli à Justiça italiana:
Depoimento de Nestor Troccoli a Justic?a italiana

Fonte: Opera Mundi

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