Investigação sobre massacre de Curuguaty apresenta furos

Por Natália Viana.

Agência Pública.-

Leia as outras partes da reportagem:
1 – Massacre de Curuguaty faz sete meses com irregularidades em processo judicial
2 – Camponeses de Curuguaty relatam truculência policial na desocupação de terreno

Uma cápsula de projétil dourada, feita de latão militar, com 9,50 mm de diâmetro, pode ser a evidência definitiva de que a investigação do fiscal Jalil Rachid está desconsiderando muitos elementos cruciais.

No dia 2 de outubro, em coletiva de imprensa, Rachid divulgou a conclusão da Fiscalia, de que os agentes policiais caíram em emboscada “previamente preparada e planejada” por sem terra armados com rifles, escopetas, foices e machados. Rachid afirmou também que Rubén Villalba é o principal responsável pela tragédia.

Em pouco mais de dois meses de investigação, porém, a Pública teve acesso à cápsula de uma bala 5,56, utilizada em fuzis M16 e carabinas M4 – armas usadas tanto por grupos de elite das forças de segurança do Paraguai como por traficantes que agem na fronteira com o Brasil, onde se transporta de maconha e eletrônicos até agrotóxicos.

Leia a parte 1 do especial Paraguai:
Golpe de Estado contra Fernando Lugo começou a ser tramado em 2008
Queda de ministro da Defesa paraguaio prenunciou destituição de Lugo
O impeachment paraguaio como “lição a futuros governantes”

A cápsula foi, segundo testemunhas, encontrada no terreno de Marina Cué pouco depois do conflito. Trata-se de uma cápsula de bala fabricada em 2007 em Lake City Army Ammunition Plant (LCAAP), um complexo militar pertencente ao governo americano em Salt Lake City, no estado de Utah, administrado pela empresa militar privada Alliant Techsystems (ATK).

A ATK exporta armas e munições para o Paraguai através da empresa SAKE SACI, segundo registros do governo americano compilados pela consultoria Import Genius. A ATK enviou pelo menos 18 carregamentos até 2012, segundo a Import Genius – que, no entanto, não precisou que tipo de materiais foram exportados. Contatada pela Pública, a ATK se negou a dizer se exporta apenas para forças militares no Paraguai ou também para grupos privados. “A ATK não revela essas informações sobre cada um de seus programas”, afirmou a assessoria de imprensa.

Natália Viana/APublica

Cápsula de bala 55,6 de fuzil fabricada nos EUA encontrada pela reportagem

A cápsula de bala 5,56, que permanece em um local seguro no Paraguai, pode ser o único indício de que se utilizaram, no dia do conflito, armas militares – sejam elas pelas forças especiais da polícia ou por francoatiradores contratados. Dezenas de outras cápsulas semelhantes, recolhidas no local, simplesmente desapareceram.

No informe da polícia, ao qual à Pública teve acesso – veja aqui – aparecem apenas dois invólucros de balas 5,56, que não foram periciados porque não foram encontradas as armas correspondentes. No entanto, diante de uma multidão de fotógrafos, o político Julio Colman, detentor de um poderoso vozeirão que todos os dias preenche as ruas de Curuguaty no seu programa de rádio matinal, coletou,e entregou à Fiscalia, diversas cápsulas semelhantes no dia do massacre.

Mesmo assim, o fiscal Rachid continua negando a existência de cápsulas de balas de fuzis automáticos no local, afirmando que “neste caso o número de falecidos teria sido maior”, ao jornal ABC Color. Segundo Rachid, nenhuma arma militar foi utilizada naquela manhã. “Tomei declarações testemunhais dos agentes que intervieram e elas estão anexadas ao relatório fiscal. Todos coincidem em dizer que não utilizaram armas com projéteis reais, nem gás pimenta”,afirmou.

Desde que apresentou suas conclusões em outubro, o fiscal tem sido cada vez mais criticado. Além dos protestos pedindo a libertação dos camponeses, a verdade é que a sua hipótese– de que 70 camponeses teriam emboscado 324 policiais com escopetas de caça – não convenceu ninguém.

O vídeo que desmente o fiscal

A maior pedra no sapato do fiscal é um informe detalhado, publicado em outubro pela organização PEICC (Plataforma de Estudio e Investigación de Conflictos Campesinos) fundada pouco depois da destituição de Lugo pelo político liberal Domingos Laino – um homem calmo, mas de palavras enfáticas, quase dramáticas – com o objetivo explícito de investigar a investigação oficial.

O PEICC de Domingos Laino, que chegou a se exilar no Brasil durante a ditadura de Stroessner, também assumiu a defesa dos camponeses presos, e está pedindo a completa anulação da investigação. “Querem desvirtuar a investigação por motivos políticos”, vocifera o fiscal Rachid. Mas as falhas levantadas pelo relatório do PEICC são eloquentes.

Primeiro, o informe – leia aqui a íntegra – questiona o fato de só terem sido encontradas no local cinco escopetas de caça e um revólver, armas que dificilmente conseguiriam matar tanta gente em tão pouco tempo. Analisando um vídeo gravado pela polícia, o PEICC defende que se ouviu uma rajada de fuzil automático no momento do tiroteio. Para o PEICC, isso demonstra que possivelmente havia francoatiradores profissionais no local. A evidência é descartada pelo fiscal Rachid.

O mesmo vídeo mostra a presença de mulheres e crianças no local do confronto, o que, para o PEICC, desmentiria a versão de uma emboscada. Já na investigação apresentada pela Fiscalía, todos os mais de trinta depoimentos de policiais recolhidos batem na mesma tecla: que não havia, ali, nenhuma mulher ou criança. É mentira. Também dizem que os camponeses estavam fortemente armados. Mais uma vez, o vídeo publicado pelo PEICC desmente essa versão: apenas alguns camponeses que aparecem portam escopetas de caça.

A coisa fica pior. Das cinco escopetas periciadas pela polícia, apenas uma se mostrou capaz de atirar durante os testes de balística. E uma das armas incluídas no informe pela polícia foi, na verdade, roubada no dia 22 de junho, uma semana depois do massacre, da casa do general Roosevelt Cesar Benitez Molinas, e abandonada atrás de uma igreja em Curuguaty (veja o relato aqui e aqui).

Assista abaixo ao vídeo comentado pelo PEICC, traduzido para o português pela Pública:

Nos dias que se seguiram à matança, diz o relatório, o médico forense Pablo Lemir chegou a afirmar que os policiais foram mortos com “disparos de cima para baixo” e que “a maioria dos orifícios de entrada dos corpos dos policiais coincidem com as áreas que estavam desprotegidas pelos coletes antibalas (…) com o que se presume que quem realizou os disparos conhece os lugares que os coletes não cobriam”. Lemir declarou à imprensa que “as características dos disparos – seria apressado dizer agora – mas configuram basicamente uma emboscada”.

A hipótese de que houvesse francoatiradores na área foi, depois, descartada pela Fiscalía, e os resultados dos informes do forense não foram apresentados ao público quando Rachid anunciou suas conclusões.

Também não consta na investigação da Fiscalía o fato de que o helicóptero usado pela polícia, que disparava uma sirene ensurdecedora, atirava durante o confronto. Todos os policiais entrevistados afirmam que o helicópeto não estava sobrevoando a área durante o tiroteio. Masvum vídeo vazado pelo Youtube mostra, de fato, o helicóptero atirando (clique aqui). O camponês Roberto, entrevistado pela Pública, lembra bem deste detalhe. “Os feridos estavam correndo e eles disparavam do helicóptero, que estava muito baixo”.

Fonte: Ópera Mundi.

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