“Infiltrado na Klan” é um filme para ver, digerir e aplicar no Brasil

Infiltrado na Klan (Foto: Divulgação)

Por Tiago Barbosa

O racismo ocupa o centro nervoso das aflições históricas dos Estados Unidos e, invariavelmente, é sabatinado pela indústria da TV e do cinema – o divã cultural onde a sociedade norte-americana se atira para encarar os dilemas diários nunca purgados.

Em BlacKKKlansman (Infiltrado na Klan, 2018), filme de Spike Lee em cartaz nos cinemas, o trauma racial é cutucado a partir de reconstituição biográfica sobre Ron Stallworth (John David Wahsington), o primeiro policial negro do Colorado e responsável por investigar e sabotar a movimentação da seita supremacista ariana Ku Klux Klan nos idos da década de 1970.

A obra, claro, reabre a caixa das crueldades perpetradas, ontem e hoje, pelos brancos contra os afrodescendentes ao longo da trajetória do país – sempre escoradas no mix de teses furadas de superioridade da raça com deturpação de dogmas religiosos para disfarçar atos criminosos de puro sadismo.

BlacKKKlansman, no entanto, é mais manifesto e menos inventário. E aqui reside a força narrativa do filme – no estímulo à tomada de consciência para reforçar a luta contra a opressão e pela igualdade de direitos. É um recado eloquente da ficção para uma realidade contemporânea onde a violência do preconceito mata, aliena e acaba inoculada no poder por governantes à frente de discursos fascistas e avessos a minorias.

O chamado à autodescoberta é manejado com sutileza no filme. Burla o óbvio e transborda a perspectiva negra – o que confere peso universal à reflexão sobre a discriminação. O despertar identitário do personagem Flip Zimmerman (Adam Driver), policial branco recrutado para se passar por Ron junto à KKK, é emblemático.

Nos diálogos iniciais com o colega negro, ele minimiza o fato de ser judeu. Após ser pressionado a negar o holocausto e ameaçado de morte por um membro da Klan, tergiversa: “Para você, [a luta racial] é uma cruzada. Para mim, trabalho”.

Por fim, desabrocha diante da sequência de ações racistas. “Nunca pensei muito sobre ser judeu. Eu era apenas um garoto branco. E, agora, estou em um porão negando isso em voz alta. Nunca pensei nisso. Agora, penso o tempo todo”.

A analogia é inequívoca: Flip é a sociedade à espera de se enxergar no mundo e emergir da alienação. E essa transição rumo à consciência, a sugestão narrativa de Spike Lee.

Não para por aí. O filme alerta para a reinvenção do racismo sob disfarce da política. A repaginação passa pela substituição da violência física explícita pela legitimidade do ódio através do vínculo com temas de interesse público, como imigração, crime e reforma tributária.

A mudança personificada no então grão-mestre da seita, David Duke (Tropher Grace), com quem Ron estabelece uma amizade dissimulada e a distância, faz referência subliminar a Donald Trump. O filme, aliás, se revela uma dura crítica política ao presidente dos EUA ao evidenciar como a filosofia racista da KKK encontra eco na postura pública dele.

A identificação vai da subserviência a bordões ufanistas e nostálgicos como “América acima de tudo” (maliciosamente grafada em uma placa da sede da Klan no longa-metragem) e “América grande de novo” a gestos de xenofobia sustentados por fundamentalismo religioso.

Trump é o ponto de chegada do culto a uma intolerância aperfeiçoada anos a fio sob cumplicidade do aparato de estado – responsável, entre outras ações, pela criminalização e pelo encarceramento massivo dos negros, como já bem demonstrou o lancinante documentário A 13ª emenda, da diretora Ava Duvernay, premiado com o Emmy e indicado ao Oscar.

“Os EUA nunca elegeriam alguém como David Duke como presidente”, duvida Ron no filme. “Vindo de um negro, isso é muito ingênuo”, rebate o colega policial. O tempo desmoraliza os incautos, a história comprova.

Não só na América do Norte. Duke e Trump têm em comum o candidato a marionete do imperialismo e presidente eleito do Brasil Jair Bolsonaro, em quem o ex-líder da seita supremacista enxerga semelhanças e de quem o político norte-americano espera a voluntariosa obediência irrestrita. O brasileiro ascende à presidência após exibir musculatura racista sob a chancela de uma população alienada pelo antipetismo.

Essa tensão gerada pelo recrudescimento do racismo e pela urgência de se contrapor é captada com genialidade por Spike Lee ao mostrar o embate dos poderes branco e negro, destrinchados quanto aos dogmas, à organização e à propensão ao confronto.

Mas o equilíbrio de forças, assim como na vida, é ilusório e desconstruído pelo filme.

A organização branca é montada para segregar, oprimir, humilhar e matar, através de um processo de desumanização dos negros legitimado pelo cientificismo barato da eugenia e pelo extremismo católico. A mobilização negra é a reação pela sobrevivência contra atrocidades históricas e a favor da conscientização como instrumento primário de luta.

A discrepância se torna mais nítida com a fantástica acareação cênica das reuniões dos dois grupos. As passagens na tela se alternam entre o batismo de novos integrantes da KKK conduzido por David Duke e o depoimento de um ativista negro – candidamente interpretado pelo cantor Harry Belafonte – sobre o linchamento diante de dez mil pessoas, em 1916, de Jesse Washington, garoto de 17 anos com problemas mentais.

O encadeamento das cenas e dos relatos devasta a hipocrisia racista e expõe seus alicerces como o que de fato são: uma fraude conceitual para sustentar privilégios.

Enquanto brancos deliram coletivamente sobre desígnios divinos, honra, pureza, bons corações, “fé verdadeira” e saboreiam o filme O nascimento de uma nação (1915), marco cultural da glorificação supremacista, os negros se indignam com a barbárie contra o menino: ele teve testículos e dedos cortados e foi torrado em praça pública com o corpo mergulhado e retirado de uma fogueira sucessivas vezes.

O humor ácido de BlaKKKlansman permite a alternância entre cenas densas e passagens esperançosas, sem o idealismo intangível. Os diálogos têm textos precisos e sempre estabelecem uma possível analogia – como comparar a defesa corporativa policial ao comportamento de autoproteção da “família” Klan.

A direção é comedida e foca no tema racial sem concessões, excessos de personagens vitimizados, melodramáticos ou indefesos: os negros sofrem, sim, mas lutam, se articulam, arregimentam força entre os brancos.

Da mobilização ativista liderada pela chefe do grêmio estudantil Patrice Dumas (Laura Harrier) ao trabalho meticuloso do policial Ron, o longa-metragem cotado para levar o Oscar carrega uma mensagem uníssona pelo binômio conscientização e enfrentamento.

“Leva tempo para se libertar das mentiras e seus efeitos humilhantes na mente negra, para rejeitar a mentira mais importante: de que negros não podem fazer as mesmas coisas que brancos”, adverte, no longa, o militante Kwame Ture em inflamado discurso sobre o processo cultural de inferiorização e enganação dos afrodescendentes, instados pela elite branca a se voltar contra os igualmente oprimidos – e qualquer semelhança com o Brasil eleitor de Bolsonaro não é mera coincidência.

BlacKKKlansman é um filme para ver, digerir e aplicar. Ou melhor, acordar.

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