Índios não podem ‘ficar parados no tempo’, diz novo chefe da Funai

Por João Fellet.

Há dois meses e meio na presidência da Funai, principal órgão federal responsável pela política indigenista, o dentista e pastor evangélico Antônio Costa diz que os povos indígenas devem se inserir no “sistema produtivo” nacional.

Em entrevista à BBC Brasil, ele diz que buscará recursos em outros setores do governo para financiar atividades econômicas dentro de terras indígenas, como a plantação de grãos, a criação de peixes e a extração de castanhas.

“Eles têm de participar dessa cadeia. Os não índios já têm essa prerrogativa, por que os índios, não?”

Indicado ao cargo pelo Partido Social Cristão (PSC) e pastor da Primeira Igreja Batista do Guará em Luziânia, cidade goiana vizinha a Brasília, Costa afirma que jamais levou sua “filosofia de vida religiosa” para o trabalho. Mas diz não se opor à pregação religiosa em aldeias e que grupos missionários são importantes parceiros da Funai.

“Muitas das coisas boas que as populações indígenas estão recebendo, estão recebendo dessas missões.”

Especializado em saúde indígena pela Universidade Federal de São Paulo, Costa trabalhou entre 2005 e 2009 na Missão Evangélica Caiuá, associação presbiteriana que presta serviços de saúde a indígenas em Mato Grosso do Sul. Nos últimos anos, passou ainda pela Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) e assessorou o PSC na Câmara dos Deputados.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista, concedida na última terça-feira na sede da Funai, em Brasília.

BBC Brasil – O ministro da Justiça, Osmar Serraglio, a quem a Funai está subordinada, disse em entrevista recente que se deve “parar com essa discussão sobre [demarcação de] terras, porque terra não enche barriga de ninguém”. Este tipo de declaração não enfraquece a Funai?

Antonio Costa – Não. O senhor ministro tem uma visão, que é a nossa visão, de que neste momento devemos trabalhar a questão da sustentabilidade para os povos indígenas, até porque o modelo de assistencialismo se esgota a partir do momento em que o Estado brasileiro passa por uma crise econômica e política.

Queremos que as populações possam caminhar de forma bem tranquila na produção de seus alimentos, na colheita do extrativismo, na produção daquilo que são capazes de produzir.

BBC Brasil – Muitos interpretaram a fala do ministro como um sinal de que a Funai deixará de demarcar terras.

Costa – Pelo contrário. Nada parou por aqui e nem vai parar. Enquanto a legislação assim o permitir, caminharemos com o cumprimento daquilo que a Constituição determina.

BBC Brasil – O senhor disse em entrevista que, em vez de ser um órgão assistencialista, a Funai precisa ensinar a pescar. Como?

Cota – É necessário ensinar as populações indígenas a não depender mais do assistencialismo. Exemplo: índios guaranis são coletores. Temos de dar tecnologia para que eles possam plantar em suas terras e ser cultivadores.

BBC Brasil – Como isso seria feito? De onde viriam os recursos?

Costa – Temos de buscar junto aos ministérios os programas necessários. Por exemplo, vejo a necessidade de criar um Pronaf [Programa Nacional de Agricultura Familiar] indígena. Se o Ministério da Agricultura financia os não índios, por que não financiar também os índios?

Almir Suruí em encontro em 2012 com Rebeca MooreDireito de imagem GETTY IMAGES
Almir Suruí em encontro em 2012 com Rebeca Moore, então gerente do Google Earth, fechando parceria para monitoramento de reserva

Temos de buscar mecanismos de financiamento para promover essas populações que são cultivadoras. Vejo populações indígenas que já fazem isso na produção do café, no Mato Grosso, ou na produção do milho e no extrativismo da castanha, em Rondônia.

Na Amazônia, [precisa haver] projetos que envolvam o pescado, com tecnologias e armazenamento adequado. Outro projeto que está surgindo agora, e já existe na Bahia há muito tempo, é o ecoturismo, desenvolvido pelos pataxós de Coroa Vermelha.

Precisamos aproveitar as terras com qualificação tecnológica, para que os índios possam ter os mesmos recursos que os não índios têm. Para que ocorra competição de mercado e eles venham a vender sua produção.

BBC Brasil – A ideia é inserir os indígenas no sistema capitalista?

Costa – Não no sistema capitalista, mas no sistema produtivo, na cadeia produtiva. Precisamos dar a eles condições de cultivo, através de patrulha mecanizada, sementes, adubos, ensinar como plantar e colher melhor. Eles têm de participar dessa cadeia. Os não índios já têm essa prerrogativa, por que os índios não?

BBC Brasil – Isso não entra em conflito com o modo de vida tradicional de muitos povos, que não buscam o excesso de produção, só o necessário à sobrevivência?

Costa – Não interfere na cultura, esses povos querem isso.

Aqueles que querem ser produtores para a subsistência, ótimo, estarão produzindo com qualidade. Claro que algumas áreas remotas continuarão sobrevivendo com seu cultivo e extrativismo [em pequena escala]. Mas não vejo como índios do Mato Grosso do Sul, nem do Mato Grosso, onde as terras são férteis, possam ficar parados no tempo, vendo ao seu redor a produção dos não índios crescendo, sem que eles tenham condições de produzir.

Eles querem produzir, eles querem ter vida própria. O índio quer universidade, quer ser médico, engenheiro, dentista, enfermeiro, advogado, e temos de dar condições a eles de avançar nesse mercado. Porque essa população jovem que está vindo agora é competidora, ela quer ir para o mercado e merece esse espaço.

Os índios americanos são produtivos, têm cassinos. E por que o índio brasileiro não pode produzir? Mas o Estado brasileiro tem de dar condições para eles, e isso nunca foi dado. Eles ficam na clandestinidade.

BBC Brasil – O modelo americano é uma inspiração para o senhor?

Costa – É um modelo de independência, que os índios brasileiros têm de ter.

BBC Brasil – O senhor citou os indígenas em Mato Grosso do Sul. Para muitas comunidades lá, a prioridade é a demarcação de terras. Como resolver esse impasse e concretizar todos esses planos sem que eles tenham terras?

Costa – O governo federal precisa pensar que existem demandas reprimidas de demarcações de terras em Estados importantes, principalmente na Bahia, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina. Elas só vão ser resolvidas quando se pensar dentro do Orçamento brasileiro num fundo especial que possa vir a pagar essas demarcações.

Se você não demarca, cria-se um acúmulo de retomadas [quando indígenas ocupam fazendas em áreas reivindicadas], e a situação fica inviável.

Hoje temos na Funai um passivo de mais de R$ 90 milhões de indenizações que precisam ser pagas a proprietários desalojados, mas elas não fazem parte do orçamento.

Precisamos buscar um diálogo entre as três partes: indígenas, donos da terra e governo federal. Muitas terras em disputa ocupadas por não índios são provenientes da União e não têm nem documentos. Isso só será resolvido quando o governo se comprometer.

[O antropólogo] Darcy Ribeiro dizia da necessidade de três fatos para a política indigenista. Primeiro, ela precisa de recursos financeiros. Segundo, precisa ter força política. Terceiro, precisa ter bons técnicos. Temos bons técnicos, mas não temos recursos financeiros nem força política. Se conseguirmos os três, diminuímos em 100% os conflitos de terra no Brasil.

BBC Brasil – O sr. acha possível que a Funai tenha mais força política num momento em que a bancada ruralista no Congresso é tão influente e tem um integrante inclusive na chefia do Ministério da Justiça?

Costa – Ao longo do tempo, a Funai adotou uma política contrária ao Congresso. Tanto que, pela primeira vez na história, nesses 50 anos da Funai, criou-se uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar a Funai. Se a Funai se fizer presente no Congresso, ela consegue mostrar o que é, qual sua finalidade.

Estamos nos aproximando do Congresso. Já atendemos aqui mais de 40 deputados e senadores de todos os segmentos.

Tribo suruíDireito de imagem MARIA FERNANDA RIBEIRO
Tribo suruí vestia tangas, caçava com arco e flecha e conhecia pouco do Brasil moderno até 1969

A Funai tem de ser tratada como área de segurança nacional. Os empreendimentos hídricos no país se esgotaram, e os grandes mananciais hídricos [restantes] estão nas terras indígenas.

Os grandes mananciais da madeira e da floresta se esgotaram ao redor das terras indígenas, e os restantes estão dentro das terras indígenas. As maiores potências minerais do país estão nas terras indígenas. Isso é uma riqueza muito grande para o país.

BBC Brasil – O senhor acha que as reservas de minérios, de madeira e o potencial hidrelétrico das terras indígenas devem ser explorados?

Costa – A questão da mineração em terras indígenas se arrasta no Congresso há muito tempo. Enquanto isso não se resolve, temos assistido à invasão de garimpeiros, que, aproveitando da falta de legislação específica, acabam criando nas reservas indígenas um verdadeiro caos. Levam doenças, poluição, violência.

É preciso que o governo brasileiro e o Congresso deem uma solução rápida a essa questão, regulamentando a mineração em terras indígenas e dando maior poder de vigilância aos órgãos fiscalizadores.

BBC Brasil – Quem teria a palavra final sobre esses empreendimentos de mineração? Seria necessária a autorização dos indígenas?

Costa – Não, porque as terras são da União. Mas eles deveriam ter uma participação no produto, e com isso haveria uma forma de amenizar os problemas sociais que eles vivem.

BBC Brasil – Não haveria um crescimento dos conflitos, já que esses empreendimentos poderiam ser concretizados sem a autorização dos grupos?

Costa – A falta de regularização é que tem permitido isso acontecer. Se não houver regulamentação, o garimpo continua existindo. Algumas populações indígenas usam desses garimpos, mas na soma não ficam com nada, só com o produto da garimpagem: a miséria, a fome e a doença.

BBC Brasil – A Funai também não se afastou do Congresso porque nos últimos anos se radicalizou ali o discurso contra os indígenas e as demarcações?

Costa – Estou tendo um diálogo muito bom com todas as bancadas, inclusive a ruralista. Não vejo no ruralista aquele sentimento contra o índio. Ele tem um sentimento de defesa da sua terra, como o índio também tem. Mas ele quer que a cadeia produtiva chegue também aos índios.

Somos irmãos brasileiros e, num momento em que o país está passando por dificuldades financeiras e políticas, não podemos ter essa guerra entre irmãos.

Temos mais de um milhão de indígenas, população que em grande parte ainda vive da subsistência da floresta, do extrativismo. São brasileiros que precisam participar da conjuntura do país.

BBC Brasil – Nos trabalhos da CPI da Funai, vários congressistas ruralistas – entre os quais o deputado Alceu Moreira (PMDB-RS) – disseram que o órgão tem uma atuação ideológica. Como encara a crítica?

Costa – Respeito a opinião do deputado, que é um excelente parlamentar. Vejo que em alguns momentos a Funai passou por esse momento ideológico.

A ideologia é muito perigosa. Ela deve ser defendida nas ruas, não dentro das instituições. Mas agora, com o novo olhar que temos na administração, vemos que isso foi um período temporário.

BBC Brasil – Refere-se ao último governo, do PT?

Costa – É. Justamente por essa falta de relação com o Congresso. Um dos grandes erros do partido foi localizar a administração num só segmento. Não houve abertura a outros partidos não só em termos de cargos, mas de relacionamentos e diálogo.

BBC Brasil – O senhor é pastor evangélico. Qual a sua posição sobre a pregação religiosa nas aldeias?

Costa – Vejo com a maior naturalidade. Há um preconceito muito grande com evangélicos, mas ninguém fala nada do Cimi (Conselho Indigenista Missionário, órgão ligado à Igreja Católica).

BBC Brasil – O Cimi diz que abandonou a pregação há muito tempo.

Costa – Será? É o Conselho Indigenista Missionário. Então, não abandonou. Ele tem prestado um bom serviço, é um bom parceiro. Todos os segmentos que quiserem ajudar as populações indígenas são bem vindos, desde que seja com a concordância dos povos.

Muitas das coisas boas que as populações indígenas estão recebendo, estão recebendo dessas missões. Não tenho nada contra.

BBC Brasil – Há denúncias de indígenas de que algumas igrejas condenam práticas tradicionais, de que algumas delas tratam xamãs como se fossem adoradores do demônio, por exemplo. Isso não é nocivo?

Tribo isolada no AcreDireito de imagem RICARDO STUCKERT
Tribo isolada foi identificada e fotografada no Acre

Costa – Essas incidências são insignificantes. Dou o exemplo da Missão Caiuá (agência missionária presbiteriana), que tem um hospital dentro da aldeia em Dourados (MS). Se tirar esse hospital de lá, como ficaria a assistência desses povos?

BBC Brasil – O Estado não deveria assumir essa função?

Costa – Mas quando o Estado não assume, as parcerias têm de assumir. No Mato Grosso do Sul, 95% da população terena é evangélica. Temos pataxós evangélicos na Bahia, com igrejas e tudo. O país está crescendo, mudando. Geralmente a iniciativa de buscar as igrejas parte dos indígenas.

BBC Brasil – Existem igrejas – batistas, por exemplo – que pregam abertamente a necessidade de ir às aldeias para catequizar os povos e ampliar seu rebanho.

Costa – Não só as batistas. Todas as instituições religiosas que seguem a palavra de Deus têm de buscar pessoas que venham a conhecer a palavra de Deus. Por que os índios não, se é a vontade deles? Eles preservam a cultura, mas estão louvando a seu Deus.

Poderiam procurar outras coisas piores. Para nós, não é interferência. A Funai, hoje, diante da dificuldade que tem, não pode ser dar ao luxo de não querer parcerias.

BBC Brasil – O senhor foi indicado à Funai pelo Partido Social Cristão (PSC). Qual é sua relação com o PSC e qual o interesse do partido no órgão?

Costa- É ótima. Eu dei assistência ao partido durante muitos anos. Tenho na Funai uma função técnica. O partido me escolheu para tentar mostrar que poderia ter um técnico capaz de desenvolver a política indigenista.

Tenho procurado mostrar que é possível respeitar a indicação, não a encarando pela ótica do programa do partido, mas pela responsabilidade de cumprir uma missão, tendo em vista que quem me nomeou foi o presidente da República, e (que) hoje pertenço ao governo do presidente Michel Temer.

BBC Brasil – O senhor sente algum preconceito na Funai por ser evangélico?

Costa – Não, até porque procuro mostrar minha crença com meu testemunho de vida, com o cumprimento do meu dever, no trato com as pessoas da casa.

Sempre fui evangélico, desde 2005. Nunca levei para o meu trabalho a minha filosofia de vida religiosa.

BBC Brasil – Nunca pregou em aldeias?

Costa – Não. Procuro pregar com minha postura, o meu olhar, a minha maneira de atender as pessoas. E com isso creio que estou seguindo o exemplo do Deus que eu sigo: amar ao próximo como a mim mesmo. Eu me amo muito, e quero que meu próximo tenho esse amor da minha parte.

BBC Brasil –No fim de março, o presidente Michel Temer e o ministro da Justiça assinaram um decreto que extingue 87 cargos na Funai. Como os cortes afetam o órgão?

Fórum de caciques do Mato Grosso do Sul tem encontro com presidente da FunaiDireito de imagem FUNAI
‘Procuro pregar com minha postura, o meu olhar, a minha maneira de atender as pessoas’, diz Costa

Costa – É muito preocupante, porque a Funai já vinha passando por dificuldades operacionais na ponta, onde estão nossos maiores usuários, que são os indígenas nas aldeias.

Estamos levantando junto às coordenações regionais as necessidades de cada uma e, dentro das que sobraram, vamos fazer um arranjo. Isso vai requerer da nossa parte um orçamento melhor, um equipamento melhor, com veículos e combustível, para que essas áreas não fiquem desassistidas.

BBC Brasil – Para muitos que acompanham o órgão, a Funai vive um processo de desmonte, de esvaziamento.

Costa – Não acredito nisso, até porque todos os ministérios sofreram cortes. No governo, 5 mil cargos foram extintos. Na Funai, atinge mais porque já vinha sendo fragilizada a instituição.

BBC Brasil – Como os cortes recentes afetam o licenciamento de obras pela Funai?

Costa – Temos uma coordenação de licenciamento ambiental, e dentro dessa coordenação tínhamos oito técnicos especializados. Infelizmente houve cortes nas funções desses oito técnicos.

Já havia nessa coordenação uma necessidade enorme de mão de obra, tendo em vista o crescimento dos empreendimentos no Brasil, especialmente nas terras indígenas.

Tenho uma reunião no Ministério do Planejamento para colocar a situação que a instituição está passando e estamos trabalhando com o chamamento de 220 concursados.

Creio que, ao chamá-los, poderemos em parte recompor a coordenação para que ela venha minimamente a cumprir sua missão nos licenciamentos ambientais.

Fonte: BBC

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