Inaiê e o fusca amarelo. Por Carlos Weinman.

Imagem Ilustrativa, Pixabay.

Por Carlos Weinman, para Desacato. info.

Inaiê estava caminhando na propriedade de seu irmão Isaac enquanto pensava sobre como e quando poderia seguir viagem, precisava de recursos, não sabia se iria de ônibus para a região do Contestado, já que tinha muito interesse em conhecer e ao mesmo tempo buscar novos percursos. Enquanto isso, o filho mais novo de seu irmão fazia ela divagar sobre a condição dos viajantes:

Roni – Minha tia, vejo que todo ser humano carrega consigo a dádiva do percorrer, de viajar, talvez alguns digam que prefiram uma vida sem muitas trajetórias, o que  não contradiz com a condição de viajantes, dado o fato que existem muitas formas e percursos, quem considerar que viajar é apenas sair de um espaço geográfico para outro, tende ter uma visão limitada do ser viajante, já que uma das grandes façanhas humanas é percorrer ao encontro do outro nas relações, o que tende, como diria o filósofo Immanuel Levinas, levar a descoberta de si. Aliás, eu tenho apenas dezessete anos, mas junto como meus outros três irmãos temos uma história difícil, mas com muitas alegrias e tudo isso faz parte de quem sou, ou melhor, faz parte de quem somos.

Inaiê – Roni você tem a metade da minha idade é já é esperto dessa forma, vai me superar rápido! Justamente pelo que você diz, podemos afirmar que a identidade, o conceito filosófico que diz quem somos apresenta uma complexidade, não é possível discorrer sobre a definição de um ser humano apenas pela imagem, pelo nome, pelo tempo, pelos objetivos ou metas, existe a necessidade de ter em vista o conjunto das relações que envolve o ser, cada um dos “eus”. 

Roni – Concordo contigo! No entanto, existe uma tendência reducionista na busca por definições sem considerar as relações, poderíamos dizer que muitos podem afirmar que um ser humano é o resultado das escolhas, o seu sucesso depende apenas de um ato de vontade. Contudo, definições podem ser cruéis e constituírem uma sentença, até mesmo uma forma de violência. Visto que é necessário destrinchar o que seja sucesso e o que está ligado com as consequências das ações.

Inaiê – Muito bem, quando buscamos decifrar a afirmação dada, vejo que temos um problema, pois o sucesso é dado como decorrente de um ato de um indivíduo, ignorando a sua condição social, por exemplo, em uma sociedade desigual, onde a maioria não terá grande capital, será inevitável que grande parte dos indivíduos não alcancem o sucesso.

Roni- Além disso, o conceito de sucesso é questionável, afinal é possível conquistar bens, capital, mas ter uma vida solitária e infeliz, o que não parece ser tão interessante; em contrapartida, alguém pode não ter muitos bens e ser feliz, estabelecer grandes descobertas nas relações com outros seres humanos.

Nesse momento, os dois foram interrompidos pela irmã de Roni que estava ouvindo atentamente:

Nina – Como vocês estão buscando por uma definição de sucesso, mesmo com grandes dificuldades, vejo que os viajantes da ferrugem dos esperançosos tiveram uma forma de sucesso, não enriqueceram, mas conseguiram encontrar o que queriam, isto é, os irmãos, o que representa o ato de encontrar a humanidade que não é apenas um conceito, é uma representação de um conjunto de seres que se definem nas relações com seus semelhantes, com os demais seres vivos, com a natureza. Aliás, vejo que o encontro dos irmãos em São Miguel do Oeste foi apenas o começo de outras jornadas, que tem a grande meta de encontrar a humanidade, o que sugere a necessidade de novos percursos, o que inevitavelmente levará a todos nós à novas relações.

Inaiê- Vocês chegaram a estudar filosofia, sociologia, história? Vocês sabem muito desses conceitos!

Nina – Não, somente o nosso irmão Luriel, o mais velho, começou a estudar história, mas teve que parar devido a doença de nosso pai.

Roni- Voltando ao assunto sobre o sucesso, muitos dizem que o ser humano é o resultado de suas escolhas, pode haver um pouco de verdade, desde que venhamos considerar a coletividade, do contrário será apenas um pouco de verdade ou veracidade. Porém, meias verdades constituem uma forma muita eficiente de manipular e contar grandes mentiras, já que o mentiroso nunca vai convencer alguém se contar algo que já de imediato pareça ser falso. Assim, a mentira tem a necessidade de ter visões parceladas de verdade. Eu acreditava nisso até nosso pai ficar doente.

Inaiê – Vejo que isso tudo faz parte da condição humana, tem muita coisa que não escolhemos, agora existem outras que podemos, o problema é quando universalizamos, buscamos dar unidade a um conceito sólido, para aquilo que está ligado com muitas relações, se observar no seu exemplo existe uma relação do indivíduo, o seu pai, mas também com vocês, com a sociedade e até mesmo com a natureza.

Nina – Lembrei que o tio Ulisses falou sobre uma corrente chamada de positivo.

Inaiê – Positivismo, bem lembrada menina, essa corrente acreditava que a ciência teria um único método, baseado nas ciências na natureza, que os pesquisadores sociais deveriam ser neutros, ser objetivos.

Nina – Verdade, lembrei que Ulisses falou que o positivismo não era apenas uma corrente filosófica, mas o último estágio de evolução da sociedade.

Roni – Vejo que é complicado se considerar melhores que outros, pois nessa lógica poderíamos ver pessoas menos importantes que outras, por considerá-las menos evoluídas.

Inaiê – Exatamente, nesse sentido poderíamos justificar a exploração e escravidão, como algo legal, pois mais evoluídos deveriam dominar. Aliás, a sociologia seria a ciência capaz de resolver os problemas sociais das sociedades mais evoluídas, não primitivas.

Nina – Acho isso um absurdo! Visto que não existe apenas uma forma de ver as coisas, a própria ciência deve ter formas diferentes, métodos distintos de acordo com a área.

Inaiê – Nem mesmo a ciência deixa de cometer erros quando universaliza as respostas, o que faz o conhecimento e a humanidade melhores está na sua capacidade de indagar, de pensar e não apenas adotar soluções.

Roni – Não seria o mesmo que esperar que um líder seja perfeito, sem questionar?

Inaiê – Claro, pois a condição humana está ligada a capacidade de cometer erros, os problemas surgem e muitas vezes queremos universalizar, tornar soluções absolutas, fazendo determinadas práticas e formas de ser as únicas válidas, um dogma, uma verdade válida por si mesma, que não pode ser questionada.

Nina- Seria como ir à igreja e achar que a pessoal lá na frente não possa errar, justamente por isso, tivemos muitas injustiças na história, mulheres foram condenadas por bruxaria por homens santos, isso é revoltante!

Inaiê – Por isso, é importante considerar que a fé em si não é um problema, mas o dogmatismo, fanatismo sim, não podemos idolatrar um rei ou líder, trata-se de um humano como nós capaz de cometer injustiças e de não estar preparado para a sua função, o complicado é quando criamos um ambiente hostil ao exercício do pensamento, ao questionamento.

Roni- Lembrei que Roberto falou antes de ir que havia a religião positiva, que faz parte das discussões de Comte. Ele disse que o termo religião, isso chamou muito a minha atenção, vem do latim, re-ligare, que significa unir ou ligar. No caso das religiões em geral a ideia e ligar o ser humano a Deus, já a religião positivista tinha uma visão um pouco diferente, defendia que o grande Ser era a humanidade, que era necessário desenvolver um sentimento de unidade, de pertencimento, promovendo uma junção, uma unidade.

Inaiê – É interessante, agora imagine ter uma visão de ciência que prega a neutralidade e uma religião que busca promover a unidade, uniformizar os indivíduos, os comportamentos, sem questionamento, será que serve para uma forma de exercício de poder muito autoritária.

Roni – Realmente é complicado, já que o grande Ser (para os positivistas) ou  Deus pode corresponder, nesse caso,  aos interesses do “eu”, de alguns pelo poder e não ao divino, muitos poderão pedir um voto de confiança  para exercer a vontade de Deus, mas no final nunca é  a vontade divina, que por sinal, no meu modo de ver é deixada para trás, apenas se transforma em um joguete para manipulação e manutenção do poder de determinadas pessoas, acredito que aquele que realmente tem fé não cultua, idolatra a própria imagem ou de outro , como representante de Deus e muito menos teme o questionamento, já que o exercício do pensamento é uma habilidade dada ao ser humano.

Nesse momento Luriel chegou junto dos três transpirando e disse que deveriam ir para casa. Quando chegaram perto da casa de Isaac, para surpresa de Inaiê, Kauê estava esperando, muito sorridente, os dois se abraçaram, em seguida Inaiê questionou o irmão:

Inaiê- O que está fazendo aqui?

Kauê – Vim fazer um entrega, combinei com nossa cunhada e com nossos sobrinhos em manter você entretida, pois sei que gosta de um boa conversa, aposto que nem ouviu o barulho desse fusca que eu e Ulisses consertamos. Ele estava em um ferro velho, não valia muita coisa, mas como Ulisses é mecânico e com um pouco de ajuda entre todos, o arrumamos para sua viagem, mas terás que levar Roni junto, pois ele também quer conhecer e quem sabe achar um trabalho na região do contestado.

Nesse momento, as lágrimas brotaram do rosto de Inaiê, que abraçou a todos e disse para os sobrinhos:

Inaiê- Eu que achei que vocês gostavam da minha conversa, mas estavam apenas com segundas intenções, seus engraçadinhos!

Na manhã seguinte, Kauê foi para sua casa no Rio Grande do Sul, enquanto Inaiê e Roni começaram novas aventuras para a região do Contestado, estavam no interior de um  fusca amarelo, não era um veículo mais moderno ou confortável, não tinha ar condicionado, entretanto estava carregado de sentimentos, de anseios pelas possibilidades para encontrar um pouco mais de humanidade, por isso, o fusca amarelo parecia reluzir o ouro, tinha um brilho capaz de ofuscar até mesmo os carros mais luxuosos, pois era movido pela capacidade de significar, de perceber nas relações  um pouco de humanidade.

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Carlos WeinmanPossui graduação em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Rede Pública do Estado de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.

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