Impactos das eleições municipais sobre o modo de ser e viver dos povos indígenas. Por Roberto Liebgott.

Crédito da foto: Guilherme Cavalli/Cimi.

Por Roberto Antonio Liebgott, para Desacato. info.

No Brasil, a Constituição Federal prevê o respeito às culturas dos povos indígenas, suas crenças, costumes, tradições, suas organizações sociais e políticas. Ou seja, a Lei Maior dá aos povos a possibilidade de viverem autonomamente dentro de seus territórios e neles exercerem suas atividades econômicas, culturais, religiosas e tradicionais. Essas previsões constitucionais não inviabilizam a possibilidade de que pessoas – homens e mulheres – das comunidades indígenas participem de forma ativa nas estruturas dos poderes políticos da sociedade envolvente. Nesse sentido, é legítimo e necessário que os indígenas, dos mais diversos povos, se filiem a partidos políticos e através deles concorram a vagas nas câmaras de vereadores, assembleias legislativas, Câmara dos Deputados, Senado Federal e a cargos no âmbito do Poder Executivo.

Esse é um fato inegável e a cada pleito se mostra mais efetivo, já que a presença indígena, como sujeitos de direitos, consolida-se nas políticas públicas e partidárias. Nas eleições majoritárias de 2018, Sonia Guajajara participou da campanha eleitoral como candidata a vice-presidente da República pelo PSOL, Joênia Wapixana foi eleita deputada federal pela Rede Sustentabilidade, Chirley Pankará elegeu-se pelo PSOL, num mandado coletivo, como deputada estadual no estado de São Paulo e centenas de outros indígenas disputaram, muitos com votações expressivas, a vagas no Congresso Nacional e nas assembleias legislativas.

Nas eleições municipais de 2020, em todo país, foram eleitos 237 representantes de povos originários para os cargos de vereador, vice-prefeito e prefeito; 28% a mais do que na eleição municipal anterior. Os indígenas venceram dez prefeituras. O levantamento é da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Neste ano, os indígenas foram 0,34% de todos os eleitos, contra 0,26% de quatro anos atrás. A cifra pode parecer pequena, mas corresponde ao percentual de pessoas que se declaram indígenas: 0,47% da população brasileira, segundo o último censo, de 2010. Diante da população nacional e do Estado, porém, os povos indígenas estão longe de encontrarem na via institucional um lugar de protagonismo para que façam valer seus direitos.

Por outro lado, a política partidária torna-se uma ferramenta ou um instrumento de inserção dos indígenas nas demandas, questões e relações sociais e econômicas nos estados, municípios e União. Obviamente, temos de levar em conta as diferenças regionais, geográficas, étnicas e de contato dos povos com a sociedade envolvente, para que essas relações sejam mais ou menos intensas. Salienta-se que no Brasil há povos livres, ou seja, que optaram pelo isolamento voluntário e não estabeleceram nenhum contato com a sociedade envolvente. Ao Estado compete, nestes casos, através dos órgãos de assistência e fiscalização, estabelecer políticas de demarcação e proteção dos territórios onde eles vivem.

O Brasil é um país privilegiado pela extraordinária possibilidade de existir no seu espaço territorial mais de 305 povos indígenas, falantes de 240 línguas e cada um deles com suas culturas, crenças, tradições e costumes. Compõe-se, nesse sentido, um grande mosaico das diferenças tanto culturais, étnicas como geográficas. São múltiplas as realidades, onde cada povo vive e interage. Nesse sentido, a inserção indígena na política partidária, em âmbito nacional, também é diversa. Evidenciou-se em 2020 a amplificação dessa participação nas eleições municipais e esse fato nos aponta pelo menos seis eixos de análise e reflexão. O primeiro deles refere-se ao contexto de urbanização a cada dia mais intenso, ou seja, as comunidades encontram-se muito próximas das cidades e consequentemente são influenciadas pelas dinâmicas culturais, políticas, econômicas, pelo consumo e pela necessidade de estabelecer conexões de compra e venda, inclusive de seus produtos.

O segundo vincula-se aos interesses pessoais, ou seja, o indígena acredita ser viável sua candidatura e, em função de seus contatos com algum político, acaba sendo convidado a filiar-se num partido que o acolhe e depois o lança para a disputa eleitoral. O terceiro refere-se às necessidades e expectativas das comunidades de participação na política partidária para, com isso, elegerem seus representantes que farão a defesa de suas causas. O quarto eixo de análise perpassa a busca, individual ou coletiva, pelo fortalecimento de poder interno e externo, ou seja, pessoas das comunidades, em geral de um mesmo grupo ou clã familiar, concorrem às eleições tendo em vista sua projeção nas relações políticas e econômicas no âmbito dos munícipes e dentro da terra indígena.

O quinto diz respeito aos interesses dos partidos políticos, que se aproximam das comunidades onde buscam fomentar as candidaturas indígenas, pois com elas os partidos se fortalecem dado que acabam obtendo a adesão, se não total ao menos parcial, dos eleitores indígenas. E o sexto eixo de análise e reflexão relaciona-se a ambições de igrejas de matriz cristã fundamentalistas que, em geral, adentram os territórios indígenas, especialmente aqueles próximos às cidades, mas também estão vinculadas a partidos de direita ou extrema direita e, por isso, ocupam papel determinante nas eleições, porque ajudam no convencimento dos eleitores e, não raras vezes determinam em quem se deve votar.

Há, nestes contextos eleitorais, relações harmoniosas dos povos indígenas com a sociedade envolvente e suas estruturas organizacionais, mas há também graves conflitos que impactam, de forma negativa, as comunidades, suas dinâmicas de vida, suas relações e organizações internas, tradições, costumes e crenças. No Rio Grande do Sul, alguns conflitos desencadeados depois das eleições municipais chamaram a atenção de lideranças indígenas, indigenistas e da sociedade em geral pela subida dos tensionamentos internos. Parece ter havido desentendimentos pelo fato de as pessoas seguirem, na hora de votar, sua autonomia e liberdade de escolha. A partidarização municipal foi transferida para dentro das terras ocasionando um desequilíbrio nas regras próprias dos indígenas e nos seus modos de ser. Levou-se para o ambiente comunitário os conflitos e disputas que não – necessariamente – compunham o cotidiano das famílias, muitas delas ausentes dos ambientes partidários.

As disputas externas, que deveriam ser saneadas nos municípios, foram transferidas para pessoas ou grupos que exercem o controle sobre a posse, domínio e usufruto das terras, que fortalecem as chefias clânicas dentro dos territórios e que realizam o controle religioso, através de igrejas fundamentalistas associadas aos partidos políticos. Esse conjunto de fatores acabou sendo anexado ao ambiente das eleições municipais, mesmo à revelia da vontade de uma significativa parcela da população, que, sem querer, acabou envolvida nos conflitos eleitorais e, no curso do processo, obrigada a assumir a posição dada pelos comandos internos, porque, ao contrário disso, sofrem, como alguns sofreram, o banimento ou expulsão da terra.

O sistema político hegemônico causa danos, muitos deles irreversíveis, em todas as sociedades em função das práticas partidárias que se sustentam ambicionando o poder, beneficiando-se financeiramente dos bens públicos e privados, difundindo falsas promessas e enganando as pessoas, projetando mentiras como se fossem verdades e visando sempre a destruição dos adversários.

Dados esses apontamentos questiona-se, portanto, até que ponto o sistema dominante pode ajudar nas lutas dos povos indígenas, visto que com sua assimilação, até o momento, trouxe divisionismo, autoritarismo, individualismo e desconstitui as normas organizacionais de cada povo.

No Rio Grande do Sul o resultado das eleições municipais – ano de 2020 – passam para a história como o período onde os indígenas, em maior número, disputaram cargos às câmaras de vereadores, através de partidos de diferentes tendências ideológicas, mas também se registrou, de forma preocupante, fatos graves, chegando-se a conflitos físicos e a outras violações aos direitos humanos, tais como as iniciativas de controlar o voto das pessoas – a liberdade de escolha – e a expulsão de famílias pelo fato de optarem por candidaturas de partidos que não passaram pelas indicações das lideranças ou pastores.

Diante de um contexto de expansão das relações sociais, políticas e culturais, os povos indígenas, sem perder sua autonomia e protagonismo, vão precisar lidar, a cada dia, com maior cuidado e prudência com esse sistema dominante, para que exemplos como os citados não continuem se repetindo. Há que se direcionar, na participação política, os interesses dos povos e comunidades, tendo em vista o fortalecimento das culturas, de suas organizações sociais, das ações em saúde, educação e atividades produtivas, que elas sejam executadas de forma diferenciada, respeitando os saberes de cada povo. E, por fim, deve haver máxima atenção quanto às demandas fundiárias e exigir a demarcação, proteção e fiscalização das terras, tendo em vista o seu usufruto comunitário e exclusivo.

As lutas futuras dos povos e comunidades relacionam-se também à política partidária, mas há que se ter uma priorização nestes próximos dois anos, a garantia dos direitos constitucionais expressos nos artigos 231 e 232 (CF 1988). O governo federal e seus apoiadores atuam de forma incessante para desconstituir os direitos indígenas, inviabilizar as demarcações, restringir a posse e usufruto das terras pelas comunidades e promover, no âmbito das políticas públicas, a integração forçada dos povos na sociedade envolvente.

O período não é propício para disputas e conflitos internos. Tais divisões são o que os opositores dos povos querem e promovem, ou seja, que as pessoas dentro das comunidades se vejam como inimigas umas das outras. Parece que a política partidária, nas últimas eleições, fez esquecer que os algozes, genocidas, invasores, violentadores, os verdadeiros inimigos dos povos indígenas estão do lado de fora das terras indígenas e querendo, desesperadamente, acessá-las para explorar, lotear e devastar o meio ambiente.

Porto Alegre, 12 de dezembro de 2020.

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Roberto Antônio Liebgott é Missionário do Conselho Indigenista Missionário/CIMI. Formado em Filosofia e Direito.

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