Honduras: jornalismo sob a mira de fuzil (4)

Especial em 11 capítulos

Parte 4/11

Por Larissa Cabral

Continuação do capítulo Jornalistas no Alvo

FALAR E FUGIR – A repressão violenta aos jornalistas e profissionais da área da comunicação, em geral, não se limita apenas a Tegucigalpa e ocorre desde o dia do golpe militar, em 28 de junho de 2009. Para o analista político hondurenho, Ricardo Salgado Bonilla, as pessoas que estavam reunidas no dia 28 não estavam agrupadas e mobilizadas por causa de nenhum movimento social específico, mas sim em decorrência da quarta urna que o presidente estava propondo. Antes das 6h, Bonilla se deu conta do acontecimento por meio do canal Telesur. “Chegamos à Casa Presidencial por volta das 6h30 e havia uma imensa quantidade de pessoas, número que só aumentou, no decorrer do dia”, conta ele.

Honduras ficou, desde o momento em que levaram Zelaya, vestido de pijamas, para a Costa Rica até aproximadamente às 14h do dia 28, sem governo. Nesse período, o povo e as forças se avolumaram. No dia seguinte, por volta das 13h, os militares desalojaram as pessoas com muita violência para que Roberto Micheletti pudesse entrar no palácio. As pessoas já estavam cansadas, mas houve uma grande explosão, muita confusão. A energia elétrica foi cortada e colocaram um batalhão inteiro na zona da Casa Presidencial, inclusive com tanques. “Foi a primeira repressão dessa envergadura que conhecemos, desde 1963, quando houve outro golpe [ocorrido em 3 de outubro de 1963, também comandado pelas Forças Armadas, na figura do coronel Oswaldo López]. A partir daí, as coisas ficaram muito mais feias. Províncias e departamentos (como são chamados os estados em Honduras) inteiros do país foram cercados, fizeram atrocidades.”

Bonilla entende que os meios de comunicação golpistas nunca reconheceram toda essa violência. Agora, timidamente, afirmam que há dúvidas se foi uma sucessão constitucional ou golpe de estado. Eles dizem que as mortes são duvidosas, inventadas. De fato, poucos crimes são investigados no país. Muitos deles são crimes políticos, mas tratados como crimes comuns, resultados de acerto de conta entre gangues ou mera delinqüência, por exemplo.

O jornalista Ronnie Huete esteve exilado no Brasil, na casa do colega de profissão Celso Martins, por dois meses e 25 dias. Huete tem 30 anos e já trabalhou em meios tradicionais de Honduras, como o jornal El Heraldo, do qual pediu demissão em 2008 por não concordar com a política editorial. O jovem participou da cobertura do golpe em seu país de maneira independente, muitas vezes veiculando sua produção por meio da Rede FIAN da organização Fian Honduras (sigla em inglês para Rede de Ação e Informação “Alimentação Primeiro”)

“Fazer a cobertura foi uma loucura, um impulso. Hoje penso ‘homem, você estava louco’. Tem coisas que não sei como pude fazer.” Na época, o jornalista usava uma câmera muito pequena e foi para a Casa Presidencial, na noite do dia 28. De madrugada, ouviam-se disparos de armas de fogo, as pessoas se jogavam no chão e procuravam defender-se como era possível. Para Huete, naquele momento havia aproximadamente 600 pessoas lá e no dia seguinte, o número aumentou.

O jovem confirma a dispersão violenta da multidão, no dia seguinte. “Agrediam qualquer pessoa que estivesse lá. Nunca vi nada como aquilo, só na televisão e a única coisa que me ocorreu foi tirar foto.” Huete caiu e foi golpeado nas costas por um militar, mas contou com a defesa de um colega. Nesse dia, ele fez contato com o Prensa Latina e publicou fotos por meio deles e da BBC por dois dias. “Foi incrível. Nem me interessava em saber onde publicavam, queria apenas que fosse publicado”, exalta.

Huete sentia desespero por informar. “Minhas mãos coçavam de vontade de escrever sobre isso e contar a todo o mundo porque os meios de comunicação daqui estavam de olhos e bocas fechados”. Em sua opinião, os meios de comunicação hondurenhos foram cúmplices, assassinos indiretos e violadores dos direitos humanos indiretamente, por meio de campanhas midiáticas que fizeram na época e continuam fazendo. “Os meios de comunicação tradicionais são golpistas e fascistas. É uma vergonha. Eu queria mostrar o que estava acontecendo aqui e acho que consegui. Rompemos um cerco midiático, ainda que em pequena escala.”

O trabalho  jornalístico  de  Huete  sobre  a  cobertura  do  golpe em Honduras, contudo, durou apenas um curto período,  do  dia  28  de  junho  até 9 de janeiro de 2010. “Depois disso, nada e não penso em voltar a fazê-lo porque considero muito arriscado. Eu posso ser morto e por isso não vale a pena.” Atualmente, ele não é vinculado a nenhuma organização ou adepto de qualquer movimento social, aparentando certo descrédito em relação ao quadro político e social do pais. “O trem da revolução passou por Honduras no período do dia 28 de junho ao dia 5 de julho e não foi dirigido, necessariamente, por Zelaya ou pelo comando da Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP), era dirigido pelo povo.”

Huete lembra com entusiasmo dos protestos e marchas que participou. “Nunca vou esquecer isso, pois sonhava em ver o povo na rua gritando, desde antes do golpe. O jornalista sempre militou em movimentos sociais, dentre eles a Rede Morazânica [rede de meios informativos alternativos à grande mídia, que abrange, especialmente, Honduras e San Salvador, refletindo informações de caráter progressista e reivindicações da região] e seu sonho era ver as massas na rua. “Foi inacreditável. Fiquei muito contente por ver o povo hondurenho respondendo”, lembra ele. Além de ter sofrido agressões, Ronnie Huete, foi vítima de ameaças e esse foi o motivo de sua vinda ao Brasil.

“As ameaças foram feitas porque eu escrevia denúncias de violações aos direitos humanos, publicava fotografias e porque militava de forma muito radical com a Juventude Morazanista [setor jovem da Rede Morazânica]”. Segundo ele, os jovens estavam sempre na frente, durante as marchas e protestos e por isso foram localizados e começaram a receber ameaças. No dia 31 de dezembro, seqüestraram um colega, Cesar Silva, e nesse mesmo dia, ele também recebeu uma mensagem. Na época, Huete mantinha contato com o jornalista e historiador catarinense, Celso Martins, que ofereceu sua casa como refúgio.

A intenção era ficar apenas algum tempo no Brasil, e voltar após o clima de ameaça passar, mas, o jovem confessa que, quando estava no Brasil, queria estar em Honduras e ficou muito confuso. “Fiquei muito sensível, uma espécie de estresse pós-traumático, eu acho. No meu país, enfrentei tudo e trabalhei tranquilamente, mas no Brasil, fiquei nervoso, triste, deprimido”, lembra. O jornalista Celso Martins, o qual Huete hoje considera como seu pai, também compartilhou suas experiências e de seus colegas, em movimentos e situações semelhantes e com isso o jovem hondurenho percebeu que tinha que voltar ao seu país e enfrentar o que estava acontecendo. “Não sou nenhum delinquente para fugir dessa maneira”.

Ele mandou um e-mail a um organismo hondurenho, que defende os direitos humanos, para tentar conseguir um emprego no país e a resposta foi de que seu dever era político e não era o momento para pensar em emprego. O jornalista afirma que ficou muito chateado e envergonhado por não ter condições de se manter. Depois dessa correspondência, ele decidiu voltar e se desligar de qualquer organização política de Honduras. Atualmente, não está sob nenhuma ameaça por não ter ligação alguma com FNRP ou qualquer outra organização.

RESISTÊNCIA NO RÁDIO – Na primeira semana depois do dia 28 de junho, havia mobilizações em toda Tegucigalpa. No dia 5 de julho, Manuel Zelaya tentou retornar ao país, em um avião venezuelano, que foi impedido de pousar no aeroporto de Tocontín. Houve conflito violento entre pessoas que foram receber o presidente deposto e a polícia. Nesse dia, assassinaram um jovem de 19 anos, que ficou conhecido como o primeiro mártir da resistência hondurenha, Isis Obed Murillo. Na estimativa do analista político, Ricardo Salgado, havia aproximadamente 500 mil pessoas nas ruas. “A partir daí, por 150 dias houve marcha todos os dias, mas a tendência era diminuir”, reconhece.

Salgado entende que Honduras viveu um estado de sítio histórico, por três dias. O objetivo dessa ação era evitar que as pessoas fossem às ruas e que as mobilizações se estendessem por mais tempo. “Os militares se justificavam, dizendo que aquilo estava acontecendo para o bem das pessoas e seus bens. Mas, nenhum dos mortos foi assassinado pelas mãos da resistência, nem destruíram propriedade alguma. As ações violentas não partiam ou partem da gente”, completa.

A seu modo, cada um reagia de maneira diferente. “O golpe me sacudiu. Me fez pensar que poderia fazer muito pouco como jornalista, quase nada, no meu cômodo cargo de consultor da Organização do Trabalho (OIT). A rua me chamava e os acontecimentos me provocavam”. Foi dessa maneira que o jornalista Felix Antonio Molina, com 25 anos de experiência na área, apresentou-se à FNRP. Ele conta que ficou cerca de duas semanas caminhando pelas ruas, todos os dias, protestando como cidadão e jornalista. “Estava na rua e me ligavam da radio pública do Equador, da Venezuela, rádios cubanas, da rede de rádios de El Salvador, Guatemala. Saia de uma chamada para outra, contando o que estava acontecendo nas ruas de Honduras”.

Felix Molina sentiu que precisava formalizar sua cobertura nesse período e começou a trabalhar como correspondente da Radio Progreso (San Pedro Sula), em Tegucigalpa, integrando essa equipe por aproximadamente dois anos. Depois, ele propôs à direção da Frente que criassem um espaço da FNRP em algum veículo de comunicação, devido à constante procura de outros meios. “Vamos à Radio Globo e perguntemos quando custa”, decidiu. Com isso, recebeu autorização para organizar o processo, definir a estrutura do programa e buscar o dinheiro para financiá-lo.

O primeiro programa da Frente na Radio Globo, chamado Resistencia, foi ao ar no dia 3 de julho de 2009, quatro dias depois do golpe. “Entre junho de 2009 e dezembro de 2010 era mais fácil mantê-lo. Fazia-o praticamente todo da rua porque sempre havia mais de uma mobilização diária”, explica o jornalista. Molina conta que foi várias vezes a San José, onde estava localizada a sede do processo de diálogo para resolver a crise hondurenha e a casa do presidente da Costa Rica, Oscar Arias, que encabeçava a negociação entre o governo hondurenho e Manuel Zelaya. De lá, transmitia o programa via Skype.

Resistencia, apresentado todos os dias, das 20 às 21h por Felix Molina, tem um perfil conhecido no país como callejero (rueiro), com muito ruído e participação popular. “Apresentávamos a Resistência indignada, os estudantes enfrentando a polícia, o som das bombas de gás lacrimogêneo, disparos, diálogos com jornalistas internacionais, professores, mulheres”. Molina conta que nesse período, a capital recebia gente de todo o país e nesse programa, essas pessoas tinham voz, assim como a dirigência popular, buscando prezar pela diversidade de expressão. Além disso, o projeto servia como um canal de comunicação entre o presidente deposto e a população hondurenha.

Para o jornalista, em 2010 teve início uma nova fase, muito bonita e importante, que foi o levantamento de assinaturas, numa consulta popular, para exigir o retorno do presidente deposto, formulando uma auto-convocatória constituinte. A meta mínima era de 1,25 milhão de assinaturas para comparar com 1,25 milhão de votos que, supostamente, foram depositados nas eleições militarizadas de novembro de 2009. “Vi que isso não seria possível ficando somente em Tegucigalpa, então, achei que deveria levar a rádio às ruas, onde estão as pessoas e assim levantar as assinaturas.” De onde quer que fossem realizar um ato da resistência, em qualquer lugar do país, para levantar assinaturas, Molina ia fazer o programa de lá, com transmissão ao vivo. “As pessoas gostavam de ouvir que, em locais distintos de Honduras, estavam fazendo algo criativo e bonito, com música e diferentes recursos, para cumprir a meta.” Atualmente, o programa é retransmitido por 20 emissoras locais, indígenas, comunitárias e negras.

VOZES MARGINAIS – Levar um veículo noticioso às ruas não foi o único fenômeno da área da Comunicação que teve destaque nesse período em Honduras. Rádios comunitárias desempenharam um papel de extrema importância na denúncia de crimes, conscientização e desenvolvimento de certas comunidades. Um exemplo é a rádio Faluma Bimetu (Coco Doce, em português), projeto de comunicação da Organização Fraternal Negra de Honduras (Ofraneh), primeira organização fundada para defender os direitos humanos do povo garífuna (grupo étnico cafuzo formado pela miscigenação de índios caraíbas e aruaques com escravos africanos) no país. Alfredo Lopes, de 58 anos, é coordenador e vice-presidente da rádio comunitária, localizada na comunidade garífuna de Triunfo de la Cruz, no município de Tela, departamento Atlantida.

As rádios garífunas também são alvo de repressão do Estado. Lopes registra que a Faluma Bimetu, por ser a mais consolidada, é a que mais sofre perseguição. “Depois do golpe de estado, a gente assumiu uma posição, que eles chamam de radical, mas para nós, foi quebrado um Estado de Direito e exigimos que esse estado seja restabelecido.” A equipe da rádio lançou uma campanha contra as eleições de novembro de 2009 e como resultado, incendiaram suas instalaçoes, no dia 6 de janeiro. Com o empenho da comunidade, felizmente, um mês depois, conseguiram restaurar as operações. “Essa rádio tem muitos amigos, no mundo inteiro, mas também temos inimigos.”

A idéia da Faluma Bimetu nasceu em 1995, mas a transmissão teve início apenas em 10 de maio de 1997. De acordo com o vice-presidente, a rádio foi criada porque havia um conflito causado por um mega projeto turístico em Tela e a comunidade era contra, devido aos danos principalmente ambientais que o projeto causaria. A denúncia foi feita, mas, segundo Lopes, os mesmos donos dos meios de comunicação, eram acionistas do projeto e por isso ela não era veiculada. “Então, nos reunimos um dia e decidimos que tínhamos que buscar nosso próprio meio de comunicação, independente das dificuldades. É uma iniciativa local, que logo foi apoiada pela Ofraeh”.

Lopes relata que a rádio da comunidade garífuna enfrentou dificuldades, a partir do golpe de estado no país. Houve alguns problemas de sabotagem local. “Uma vez, roubaram todos os nossos equipamentos e o que não conseguiram roubar, estragaram com um alicate, de maneira que nos deixaram fora do ar por um ano.” Ele tem orgulho em dizer que na Faluma Bimetu as denúncias são feitas com nome e sobrenome e, por isso, sofrem repressão e ameaças. “A dinâmica da comunidade mudou totalmente porque a informação é veiculada, no momento em que está acontecendo”.

O problema de interferência na rádio por parte do Estado não acontece de forma oficial porque a concessão da freqüência para essa rádio comunitária não é cedida pelo governo. Ainda assim, o vice-presidente da rádio afirma que as ameaças são constantes, permanentes, por telefone ou pessoalmente. “A polícia até chegou a vir aqui, querendo agredir, sobretudo, por causa dos programas de notícias, que abordam temas políticos”, explica ele.

O boicote local é muito comum, quase diário nesse veículo de comunicação da comunidade de Triunfo de la Cruz. Lopes confirma que alguns empresários da cidade interferem na freqüência da rádio, mas eles conseguem facilmente alterá-la para voltar ao ar. “Além disso, estamos aumentando cada vez mais nossa potência”, conta orgulhoso. O transmissor inicial tinha 22W de potência, mas atualmente, eles transmitem com um de 600W.

A idéia e o ruído dos meios de comunicação alternativos e comunitários estão crescendo e se multiplicando em Honduras. “Antes éramos nós e a Radio Progreso, agora somos 12 e cada vez mais recebemos solicitações de pessoas que querem abrir suas rádios”, comemora Lopes, com um grande sorriso estampado no rosto.

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Cap 1

Cap 2

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