Homens em crise

Por Fernando Evangelista

Crise no casamento é como dor de dente, um dia você vai enfrentar uma. O problema é que o pessoal anda muito afobado e já vai logo extraindo o dente. Há que ter mais paciência, como diria o meu avô.

Eu tenho um amigo vivendo uma crise no casamento. A mulher pediu um tempo, disse que precisava repensar a vida, daquele jeito eles seriam infelizes para sempre e arrematou: “ou você muda de postura ou muda de casa”. Brigaram feio.

Por conta própria, ele saiu de casa para que a mulher colocasse os pés no chão e a mão na consciência. “Ela vai se arrepender”, disse. Os homens em crise são extremamente ameaçadores, mas só da boca pra fora.

Homens em crise são, para os seus amigos, uma espécie de irmão mais novo, mesmo que você não queria, ele está ao seu lado. Ligam no fim de semana, durante a semana, de madrugada, mandam correntes eletrônicas sentimentais e, claro, eles bebem. Se a crise os atingir em datas festivas, eles ficarão ainda mais próximos.

Homens em crise são bebês chorões. Ficam perdidos, têm ataques prolongados de amnésia, esquecem atos elementares da sobrevivência, como se comunicar com o próximo, fazer um sanduíche ou tomar uma limonada.

Eles, os homens em crise, param de se alimentar, matam o trabalho e passam a agir como adolescentes, porém com mais ímpeto, beirando o vulgar e o ridículo. Eles têm atração pela vulgaridade.

Homens em crise, mesmo os mais céticos, agarram-se a qualquer frase, por mais estúpida que seja, que lhes dê alguma esperança. Eles são presa fácil da ladainha de autojuda. Se, por alguma infelicidade do destino, você for numa palestra de autoajuda, repare na plateia: é formada, basicamente, por homens em crise.

Meu amigo em crise me intimou a acompanhá-lo numa dessas conferências e para convencer-me fez uma série de chantagens emocionais – homens em crise são doutores em chantagens emocionais. Aceitei, mas não deveria.

“Tudo se resolve com diálogo”, sentenciou como um mantra o conceituado palestrante para a plateia, visivelmente encantada com tão profundas e originais palavras. Todos os problemas, ele repetiu, se resolvem com diálogo.

Para dar consistência a sua tese, ele citou Aristóteles e Arquimedes, Cícero e Confúcio, Platão e Fabio Mello, o padre. As pessoas ficaram impressionadas. E se antes da palestra entraram olhando para chão, com ombros arqueados de dor e de desesperança, saíram com peito estufado e olhos rútilos de fé na reconciliação.

Eu não queria estragar a festa, mas uma questão simples me angustiava: o que devem fazer os casais quando o principal problema é exatamente o diálogo? Este é, de acordo com o relato insuspeito de meu amigo, o problema do seu matrimônio. Para ele, isso não é uma consequência, mas a causa de todos os atritos. O resto, ainda segundo a sua versão, vai de vento em popa.

Ele e a mulher se amam, se admiram, mas têm sérios problemas de comunicação. Para eles, o diálogo é a possibilidade de uma Terceira Guerra. Ele diz bom dia, e ela percebe nesse “bom dia” uma acusação qualquer: o bom dia é uma agressão velada, uma vingança em forma de cumprimento, uma espécie de revanche das mágoas antigas.

Na manhã seguinte, para evitar mal-entendido, ele não diz bom dia e então a briga torna-se inevitável: “Tá vendo, eu tinha razão, estamos em crise profunda, você acorda e não me cumprimenta. Estamos no fundo poço”, ela decreta.

Ele, que deveria ter mais paciência, mas não tem, responde acusando-a de doida, descontrolada, maníaca etc. O barraco está feito. As piores brigas são aquelas sem motivo. As brigas com motivo são perdoáveis porque há algo para perdoar. Os desentendimentos banais, aparentemente sem importância, são o que destroem o casamento.

Minha dúvida permanecia e eu a expus ao meu amigo: se todos os problemas se resolvem com diálogo, o que devem fazer os casais vítimas, essencialmente, do diálogo? Ele disse que não sabia, mas faria qualquer sacrifício. “Sacrifícios não salvam casamento, muito pelo contrário”, eu respondi. Seu rosto era só desolação.

Voltei para casa sem esperança de ajudá-lo, peguei uma cerveja na geladeira e me joguei no sofá, em frente à televisão. Estava passando, num destes canais a cabo, o programa Encantador de Cães.

É assim: um sujeito simpático percorre os Estados Unidos, ajudando donos de cães a superarem algum tipo de problema com os seus bichos. E o Encantador de Cães, as duas da manhã de uma sexta-feira, disse algo revelador: “tudo é energia, não importa o que você  fala ao seu cachorro, mas a maneira como fala”.

Bingo! Liguei para o meu amigo e lhe dei esse conselho, como se fosse uma sacada minha. Ele achou muito interessante: “Você tem razão, é verdade, o que importa é como você diz e, principalmente, a energia que você transmite ao dizer tal coisa”. Desligou o telefone e sumiu.

Ele nunca mais ligou. Soube, pelas fotos do Facebook, que ele e a mulher estão ótimos, fazendo uma viagem, há muito sonhada, pelo sul da França. Ela sempre quis ir, mas ele nunca topou porque, argumentava, faltava-lhe tempo e dinheiro.

Homens em crise, para reconquistar a mulher, descobrem que tempo, muitas vezes, é apenas uma questão de prioridade e que o dinheiro, se houver, pode ser gasto com viagens românticas.

Homens em crise, nos primeiros dias da reconciliação, sofrem transformações rápidas e radicais. Tornam-se atenciosos, como na época do namoro, ficam mais generosos e mais sensíveis, aprendem a ouvir e esperam para falar.

Eles ficam mais leves e mais engraçados. Voltam a ter conta na floricultura e, se o homem em crise for rico, abre nova conta na joalheria. Se for pobre, ele pede um financiamento.

O perigo é que com o tempo, depois do susto, depois da possibilidade da separação, a rotina passe por cima das boas intenções e das boas maneiras. Há que ter mais memória, como diria o meu avô. Os homens, entretanto, estejam eles em crise ou em perfeita harmonia conjugal, sofrem graves problemas de memória.

E se outra vez o homem em crise se encontrar encrencado, ele procura um amigo, entra numa palestra de autoajuda e aceita técnicas usadas com os bichos. Como os homens são bichos, os conselhos funcionam.

Porém, diferentemente da maioria dos cães, os homens são mais difíceis de conviver, são menos fieis e muito menos corajosos. Ainda assim, por incrível que pareça, as mulheres gostam. Para muitas delas, quanto mais problemático for o homem, melhor. Talvez seja o instinto materno, talvez seja puro masoquismo ou, quem sabe, seja apenas um medo terrível de extrair o dente.

Fernando Evangelista é jornalista, diretor da Doc Dois Filmes e colaborador do Portal Desacato. Mantém a coluna Revoltas Cotidianas, publicada toda terça-feira.

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