Hasta siempre, maestro

Por Carmen Susana Fava Tornquist[1], para Desacato.info

Conheci Miguel Obrer há exatos quatro anos atrás, em um ciclo de filmes sobre as últimas ditaduras do Cone Sul, no Cinearth, projeto de extensão universitária da UDESC. Minha amiga e cantante Dulce Pinheiro topou o desafio de trazer um pouco de música e leveza a este tema tão difícil de ser rememorado no Brasil e, ao compor o repertório, junto com o violonista Julio Córdoba,  solicitou a Miguel apoio na tradução da canção  La maza,. Ele aceitou de bom grado a missão, mas “sugerindo” a inclusão no repertório a canção Hasta siempre, comandante, de Carlos Puebla, dedicada a Che Guevara.  Digo “sugerindo” entre aspas porque certamente Miguel, com a veemência que lhe era característica, praticamente exigiu dos músicos que tocassem esta canção, o que foi obediente e lindamente cumprido, viabilizando assim, a escuta do saudoso hino revolucionário no pequeno auditório do Museu da Escola Catarinense. Naqueles dias de memórias e conversas sobre as últimas ditaduras, sua presença foi marcante: Miguel não hesitou em compartilhar com franqueza e sem arrependimento – não  sem a presença de lágrimas  –  sua   dura experiência na prisão, as torturas  de que foi alvo no Uruguai, quando ainda era professor de uma escola pública na fronteira com o Brasil. Enquanto maestro , comprometeu-se profundamente com as lutas sindicais do magistério uruguaio, que   na época  opunha-se ao capital-imperialismo que avançava no continente,  buscando garantir  a todas as crianças  educação de qualidade  e afinada com a realidade latino-americana. Em 1972, Miguel foi preso por fazer parte do movimento Tupamaro, foi torturado, e após sua liberação, exonerado de seu cargo, vendo a ditadura extirpar também  a possibilidade de exercitar a profissão com a qual se entregava de corpo e alma. Conseguiu retornar ao mundo do trabalho, vendendo doces – cozinheiro de mão cheia que era – por alguns anos:  Expulso com armas, retorna com doces – mas não de cabeça baixa nem muito menos arrependido. Somente quando o regime democrático foi  reinstaurado, em 1984,  voltou ao oficio de professor, na mesma escola,  desta vez como  diretor O ex-comunista que se tornou anarquista não tinha meias palavras nem gostava de ficar “ em cima do muro”. Segundo a sua filha, “no seas columna del medio, dále la plancha con todo” era um frase cotidiana,que  mediou todas as relações que manteve em vida.

“Ele só tinha ódio dos milicos!” “Quando via a polícia batendo nas pessoas, na televisão ou na rua, ficava com o corpo inteiro contraído e tenso, os pelos dos braços ficavam literalmente  arrepiados toda vez que presenciava  situações  deste tipo (que se repetem  na chamada “democracia”). É o que nos conta Terezinha, sua vizinha, que compartilhou nos últimos tempos – com carinho, e muito atenta – cada detalhe de suas teimosias cotidianas, entre as quais, na hora do sol mais quente, sair da sombra, pegar na enxada para limpar os canteiros da horta ou varrer o pátio, ou ainda., debochar dos cardápios “saudáveis” por ela preparados, considerados por ele “apenas mato”. Os pratos apolíneos certamente não eram os seus preferidos: os prazeres da vida estavam à frente na ordem das preferências; além da cozinha, as danças, os amores, a música. Miguel sem dúvida  fez jus  a sua carta natal: sol e ascendente em Áries, lua em Leão. Dias antes de falecer, compartilhara com amigos um poema de Saramago que fala da idade eterna da vida: “os anos que tenho são os necessários para fazer o que desejo e sinto”,declamou em espanhol para seus companheiros brasileiros. Por ser incrédulo em deuses, e fiel a sua utopia, Miguel não quis culto,velório ou enterro: seu desejo era contribuir também após sua morte, com a educação pública e com o avanço da ciência. Seu corpo foi doado para a Universidade Federal de Santa Catarina, para auxiliar as novas gerações de estudantes das ciências naturais em seus saberes de anatomia. Tal procedimento – a doação de seu corpo – não foi nada simples: várias burocracias,  dúvidas e questionamentos se impuseram às dolorosas horas de despedida. É que  praticamente inexistem  casos de ateísmo convicto em nosso religioso  país. Talvez por este ineditismo, Miguel foi considerado, pateticamente, pelo obituário local como indigente. Porém, estou segura de que o jornalista errou a palavra, num óbvio ato falho, passível de correção: a palavra correta, a que  o autor queria ter escrito, era outra: Miguel Obrer, insurgente. Feita a retificação, as novas gerações estarão aptas a recuperar sua trajetória e contribuir para com o avanço das ciências humanas.E o país que escolheu para viver poderá, então, ainda que tardiamente, beneficiar-se  de verdade de su querida presencia.

 Foto: arquivo familiar.



[1] Com a  colaboração de Doris J. Obrer

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