Há 38 anos Marlui Miranda foi vaiada por cantar música indígena no Teatro Amazonas

Por Elaíze Farias

A cantora, compositora e pesquisadora Marlui Miranda, uma referência internacional da música indígena do Brasil, se apresentou no show de lançamento do CD “Tchautchiüãne” (“Minha Aldeia” em português) de Djuena Tikuna, no Teatro Amazonas, em Manaus. Depois de interpretar com a artista Djuena Tikuna a canção “Araruna”, do disco “Vozes da Floresta” (de 1996), inspirada na música tradicional dos índios Parakanã (Pará), Marlui lembrou em entrevista à Amazônia Real de uma vaia que recebeu no mesmo palco ao cantar uma canção indígena em 1979.

Na época era a primeira vez que Marlui se apresentava no Teatro Amazonas convidada pelo músico e multinstrumentista Egberto Gismonti. O show foi promovido pelo projeto Pixinguinha, do Ministério da Cultura, uma iniciativa que realizava turnês musicais pelo país de vários artistas brasileiros.

Marlui Miranda disse que, na ocasião, começava a pesquisar a cultura indígena. Para a apresentação no show de Gismonti, ela interpretou uma canção na língua da etnia Suruí, de Rondônia.

“Cantei uma canção Suruí com o jeito Suruí de cantar. E foi um negócio bem violento, foi xingação, palavrão. Bastante agressivo. Mas eu parei no meio da música e falei assim: ‘Quero que levante o primeiro que não tenha sangue indígena’. Ficou um silêncio. Aí parou um pouco”, disse Marlui, contando que após o silêncio, reagiu om lágrimas nos olhos.

“Depois que falei isso, chorei. Entrei num palco que só recebia ópera e músicos conhecidos. Era um lugar proibido para a música indígena”, disse a artista sobre o teatro amazonense, construído no século 19 no apogeu do Ciclo da Borracha.

Marlui Miranda, que vive em São Paulo, é natural de Fortaleza (CE). Morou no Rio de Janeiro,  onde aprendeu violão clássico com professores renomados, entre eles, Turíbio Santos, e estudou no Conservatório Villa-Lobos, e também em Brasília. A artista compôs trilhas para cinema e teatro. Além de Egberto Gismonti, fez parcerias com Hermeto Paschoal, Taiguara, Milton Nascimento e Jards Macalé.

No estudo sobre canções de indígenas na Amazônia, Marlui visitou aldeias dos índios Kraô, Urubu-Ka´Apor, Juruna, entre outros. Desde então, todos os seus discos passaram a ser interpretados apenas nas diferentes línguas indígenas, pois é com eles que estabeleceu uma relação de parceria, vivência e pesquisa.

Um de seus trabalhos mais importantes é “Paiter Merewá” (de 1985), composto por canções de índios Suruí. Seu último álbum é “Fala de Bicho, Fala de Gente”, que conta com canções de ninar do povo Juruna, cuja pesquisa começou em 2010. Leia a entrevista da artista concedida à reportagem abaixo:

 

Amazônia Real – A senhora é reconhecida musicalmente no país e no exterior, mesmo desenvolvendo um trabalho que poderia ser chamado de independente, não-comercial. Como a senhora explica?

Marlui Miranda – Eu sempre andei na periferia da música. Meu assunto sempre foi música indígena, que eu sempre tratei muito bem. Mas é uma música que o público está sendo formado. Quando comecei, não existia esse público. Começou a existir a partir de um trabalho que comecei a fazer.

 

Amazônia Real – Quando a senhora começou a fazer as pesquisas e a trabalhar com música indígena?

Marlui Miranda – Comecei em 1979, quando saiu meu primeiro LP, “Olho D´Água”, que tinha uma música indígena Kraô. Depois gravei o “Rio Acima”, o “Revivência”. Não gravei muito coisa. Sempre coloquei a pesquisa antes de gravação.

 

O grande momento de Marlui no show de Djuena (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Amazônia Real – O que despertou o interesse pela música indígena?

Marlui Miranda – Fazer essa música indígena é meu projeto de vida. Nunca abri mão por nenhuma oferta: “Marlui, grava isso”. Eu sempre fiquei nesse caminho. Não sou uma pessoa de mainstream(tendência musical). Eu sou uma pessoa de fazer as coisas que são corretas. E essas coisas dão trabalho. Para eu fazer um CD com a música Juruna, que foi o “Fala de Bicho, Fala de Gente”, foi um longo processo. Teve pesquisa, teve uma reunião para discutir. Se a comunidade não quer que a gente grave, não vou gravar. E também não vou se a comunidade não combinar. São milhões de fatores que não abro mão. Claro que torna a coisa mais difícil, saio mesmo fora desse esquema pop, comercial. Eu já saí há muito tempo.

 

Amazônia Real – Como é seu trabalho de pesquisadora? O que a senhora está fazendo no momento?

Marlui Miranda – Hoje estou fazendo doutorado na Universidade de São Paulo (USP). É um doutorado sobre música indígena, sobre a minha experiência com a música indígena. Vou trabalhar e transformar em alguma que seja para outras pessoas, de uma forma organizada, mais interessante.

 

Amazônia Real – Como conceituar a música indígena? É possível encaixá-la em um gênero?

Marlui Miranda – É impossível [conceituar]. Cada comunidade, cada povo, tem o próprio modo de se exprimir musicalmente. A gente não consegue descrever a música indígena. Agora, do ponto de vista dessa sociedade daqui, essa sociedade fica querendo enquadrar dentro de um campo determinado da música que já existe. A meu ver, a gente só pode descrever a música como música indígena. Não é folclore, não é word music. Sempre batalhei para não colocar a música indígena como música popular, ou música indígena brasileira. Não é música brasileira. É música tikuna, mundurucu, yanomami. São povos, temos que respeitar essas fronteiras. E aceitar a realidade. Chegou a hora de aceitar que existe indígena no Brasil, que está no mercado, os indígenas fazem com sua própria música.

 

Amazônia Real – Como a senhora descreve o trabalho da Djuena Tikuna?

Marlui Miranda – Já mantemos contato há alguns anos. Eu a conhecia do movimento. Ela agora está com projeção muito maior. Naquele tempo, era um pouco menos. Mas eu já achava a voz dela bonita. A Djuena dá continuidade a uma tradição e está inserida no mercado. Não é que a música da Djuena está a serviço de um ritmo popular. Ela se apropria da cultura de seu povo. Quem é o sujeito? É a música indígena.

 

Amazônia Real – Por que decidiu pesquisar música indígena? A senhora tem raízes indígenas?

Marlui Miranda – Sou cearense. Acho que sou uma mistura. Não existe cearense que não tenha sangue indígena. Provavelmente eu seja Cariri. Não sei detectar exatamente. E em meu trabalho eu queria lutar para que a música fosse ouvida, escutada. Tudo que ouvia na década de 70 eu achava maravilhosa. Por que as pessoas não ouviam essa música, não tinham espaço?

Cantora e compositora Marlui Miranda (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Amazônia Real – O que a senhora acha dos artistas indígenas cantarem em seu idioma, e não em português?

Marlui Miranda – Cantar no próprio idioma é fundamental. Se o idioma for esquecido, ficar para trás, como é que as próximas gerações vão dar continuidade à cultura? Se o povo indígena perde a linguagem, ele perde tudo. Ele perde a terra, não vai saber cantar as músicas, compreender como era o passado. Ele fica perdido e fragmentado. Quando decidi cantar música indígena, mesmo não falando as línguas, eu decidi aprender as cantigas muito bem, mas nunca mais cantar em português.

 

Amazônia Real – A senhora se apresentou no Teatro Amazonas há 38 anos. Como foi?

Marlui Miranda – Na época eu só cantava música do povo Suruí. Ninguém conhecia nada de música indígena. Só tinha elite no teatro. Subi ao palco e levei uma vaia. Mas foi uma vaia que foi a coisa melhor que pude receber. Deu-me força.

 

Amazônia Real – Que música cantou?

Marlui Miranda – Cantei uma canção Suruí com o jeito Suruí de cantar. E foi um negócio bem violento, foi xingação, palavrão. Bastante agressivo. Mas eu parei no meio da música e falei assim: “Quero que levante o primeiro que não tenha sangue indígena”. Ficou um silêncio. Aí parou um pouco. Depois que falei isso, chorei. Entrei num palco que só recebia ópera e músicos conhecidos. Era um lugar proibido para a música indígena.

 

Amazônia Real – Depois de todo esse tempo, como a senhora analisa a receptividade para a música indígena?

Marlui Miranda – A minha felicidade é que assisti a uma mesma situação de uma ponta a outra. Estou vendo um momento em que isso [vaia] não existe mais. Aqui os indígenas estão no palco. Naquela época eu não podia cantar uma música indígena. Era um crime no palco desse [teatro]. Só tinha “óóópera” [modulando a voz de canto lírico]. Era totalmente fora de qualquer padrão ocidental.

 

Amazônia Real – Como a senhora acha que o público deveria ouvir a música indígena?

Marlui Miranda – Existe alguém nessa cidade [Manaus], nesse estado [Amazonas], que não tenha sangue indígena? Está na hora de admitir. Muita gente entrou nesse processo, e admitiu [ser indígena]. E isso está tomando um corpo muito grande. A sociedade compreendendo que o indígena é protagonista da cultura e das artes no mesmo patamar de qualquer música que a gente fala que é alta música. Não interessa. Isso aqui, a música indígena, hoje é alta música

Fonte: Amazônia Real

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.