Governo sanciona lei sobre merenda escolar durante pandemia, mas falta regulamentação

ONU estima que 40 milhões de crianças no Brasil não estão recebendo alimentação escolar por conta da pandemia

Escola Parque da 308 Sul, Asa Sul, Brasília, DF, Brasil, 14/6/2017 Foto: Andre Borges/Agência Brasília.

Por Caroline Oliveira.

Cerca de 386 milhões de estudantes recebem merenda escolar no mundo, de acordo com um estudo feito pelo Programa Mundial de Alimentos (PMA), da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2019. Para muitas dessas crianças e adolescentes, a refeição que recebem na escola é a mais importante do dia, quando não a única.

Thalles Gomes, advogado que atua na área de alimentação escolar, explicou ao Brasil de Fato o que as autoridades brasileiras vêm realizado para mitigar o impacto da suspensão da merenda escolar.

Nesta terça-feira (7), o governo de Jair Bolsonaro sancionou uma lei que permite o redirecionamento dos gêneros alimentícios das escolas para as famílias das crianças e adolescentes matriculados em instituições de ensino públicas. Faltam, no entanto, resoluções do Ministério da Educação com diretrizes de como esse redirecionamento deve ser feito.

“A interrupção dessa alimentação escolar num período como o da pandemia, em que não houve uma programação ou um preparo para isso, pode colocar muitas crianças e jovens em situação de insegurança alimentar, por isso que esse é um tema muito importante para ser debatido hoje”, afirma Gomes.

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato: A gente está em uma situação de pandemia no Brasil, em São Paulo, e nisso as escolas foram fechadas e, com isso também, o oferecimento de merenda escolar não está ocorrendo. Qual que é a situação hoje dos alunos sem merenda? Existe alguma alternativa do poder público?

Thalles Gomes: Vamos falar um pouco, se você me permite, sobre o panorama internacional sobre essa situação. Infelizmente esse não é um problema que só o Brasil está enfrentando. Todos os países que tiveram suas aulas suspensas por conta da pandemia, de algum modo estão buscando alternativa para manter a alimentação escolar dos alunos que estão em afastamento temporário ou estão tendo alguma experiência de aprendizagem remota ou de ensino a distância.

Só para você ter uma ideia, segundo um mapeamento feito pelo programa alimentar mundial da ONU, hoje existem mais de 368 milhões de crianças que não estão recebendo alimentação escolar por conta da pandemia da covid-19. Nesse número total, 90 milhões estão na Índia e 40 milhões no Brasil, pelo levantamento da ONU. É um número muito grande no Brasil, porque se você comparar com os Estados Unidos e a própria China que tem população muito maior do que a do Brasil, a China tem 38 milhões de crianças hoje sem receber alimentação escolar, e os Estados Unidos 30 milhões.

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Então países com a população muito maior do que a do Brasil estão com um número menor de crianças sem alimentação escolar. Se você fizer, por exemplo, uma comparação com Indonésia e Paquistão, que são os países que têm uma população semelhante à do Brasil, a Indonésia, pelo levantamento da ONU, possui só 100 mil crianças sem alimentação escolar, e no Paquistão, apenas 2 milhões de alunos estão sem alimentação escolar. A situação do Brasil e da Índia é uma situação muito grave e parece-me que a do Brasil maior ainda, porque em termos populacionais, nós estamos com uma defasagem muito grande.

Como a a situação no Brasil chegou a esse nível de gravidade?

Qual é a situação no Brasil hoje? O Brasil possui um programa relacionado à alimentação escolar, que é o Pnae [Programa Nacional de Alimentação Escolar]. Ele beneficia hoje cerca de 41 milhões de estudantes no Brasil todo. Como funciona o Pnae? Ele é um recurso que é repassado pelo MEC através do FNDE, que é o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. E esses recursos são repassados para estados e municípios para que eles possam fazer a aquisição da merenda escolar e distribuir para as escolas estaduais e municipais.

Esse programa é responsável por garantir alimentação escolar na grande maioria dos municípios brasileiros. Existem estados e municípios de maior porte que precisam complementar esse valor. Mas a alimentação da grande maioria dos estudantes hoje depende do Pnae.

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Essa alimentação escolar é muito importante, porque dos 54 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza, que vivem na extrema pobreza, 14 milhões têm menos de 14 anos. Então muitos dos estudantes nas escolas públicas têm na alimentação escolar, na merenda, a única alimentação garantida do dia.

Então a interrupção dessa alimentação escolar num período como o da pandemia, que não houve uma programação ou um preparo para isso, pode colocar muitas crianças e jovens em situação de insegurança alimentar, por isso que esse é um tema muito importante para ser debatido hoje.

Diante dessa situação, o que as autoridades brasileiras têm feito para mitigar esses impactos? 

O governo federal, como é o gestor desses recursos do Pnae, houve uma iniciativa bastante rápida do Congresso Nacional logo depois do início da quarentena, de fazer uma alteração na lei que regulamenta o Pnae. Essa lei é de 2009 e não havia nenhuma previsão de continuidade, de distribuição da merenda, dos recursos da alimentação escolar, em situações de calamidade pública ou de emergência.

Então o Congresso Nacional elaborou um projeto de lei que foi sancionado pelo presidente da República. Infelizmente com uma demora muito grande, o projeto de lei foi para a sanção presidencial no dia 30 da semana passada e só foi publicada hoje. E esse projeto, que virou lei, prevê que em situações de emergência ou de calamidade pública como a de agora, fica autorizada a distribuição de recursos diretamente para os pais ou responsáveis dos alunos.

Então, diante da impossibilidade de oferecer a merenda escolar nas escolas por conta da suspensão, essa lei prevê e autoriza essa distribuição imediata aos pais ou e responsáveis dos alunos de gêneros alimentícios adquiridos com os recursos do Pnae.

Esse é um avanço muito importante, porque ainda não é suficiente, porque além da lei existem resoluções que o MEC solta que regulamentam como isso deve acontecer. Sem essas regulamentações, os estados e municípios ficam sem um norte de como fazer a distribuição desses alimentos.

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Uma possibilidade é esses recursos, ao invés de serem repassados monetariamente, para os pais e alunos, serem distribuídos em kits de alimentação que respeitem os princípios nutricionais previstos no Pnae para que cada aluno tenha acesso à alimentação adequada, e que possam ser distribuídos individualmente para os responsáveis dos alunos.

Antes dessa lei e da regulação que ainda não existe do MEC, muitos governos estaduais, muitas secretarias municipais, já estão realizando a distribuição desses kits alimentares por conta própria. Mas é importante hoje, que exista uma regulamentação do MEC, que coloque de forma clara como isso pode ser feito para que os municípios, principalmente os de pequeno porte que são de maioria do Brasil, consigam ter uma diretriz de como fazer a distribuição desses alimentos.

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Levando em consideração experiências internacionais, o Reino Unido, inclusive, lançou uma guia específico para isso que prevê a possibilidade preferencialmente de distribuir kits de alimentação para os pais e quando isso não for possível, pensar a distribuição de recursos financeiros direto para os pais ou responsáveis, via cartão de alimentação ou cupom a ser utilizado em supermercados.

No caso do Brasil, há pessoas que defendem que isso possa ser feito como complemento ao Bolsa Família, porque muitas dessas pessoas já utilizam o cartão do programa para acessar recursos do governo federal. Então, resumindo, existe uma movimentação legal , mas ainda não há uma diretriz, uma política nacional, capitaneada pelo MEC, para garantir que a alimentação escolar seja continuada nesse período.

Então você diria que, para além dessa lei, a Lei 13.987, também deveria haver uma regulamentação do Ministério da Educação com relação à distribuição desse recurso, seja em forma de kits de alimentação ou recursos financeiros. Nesse caso, qual é a movimentação do Ministério para realizar essa regulamentação? 

Antes de responder essa pergunta, eu vou dar um exemplo de como é necessária a regulamentação nesse sentido, porque só a lei é muito abrangente. Pela resolução que existe hoje do MEC que regulamenta como deve ser feito esse repasse, existe um cálculo de valor per capita por aluno.

Então o cálculo é feito da seguinte maneira: por aluno que estuda em determinado nível de ensino, por exemplo o ensino fundamental, pela resolução do MEC, é pago R$ 0,36 por dia letivo. Então cada município do estado recebe R$ 0,36 por aluno matriculado nas suas escolas a cada dia letivo.

Esse cálculo é feito para o repasse que é realizado a cada ano. Quando você pensa em larga escala, esse é um valor considerável. Se você multiplicar isso por 100 mil estudantes, você vai ter um valor considerável.

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Agora se você for utilizar essa referência para distribuir diretamente para os pais ou responsáveis, você vai ter um valor irrisório de R$ 7,20 por aluno por mês, porque você pega 20 dias letivos, que é a média do mês, vezes R$ 0,36, você chega a R$ 7,20, o que é algo que não vai garantir em nada a segurança alimentar desses alunos. Por isso que é preciso uma regulamentação do MEC para identificar, deixar muito claro qual é o cálculo que vai ser realizado para a redistribuição desses valores ou, ao invés disso, identificar o que vai estar presente em cada kit.

Existem diálogos feitos a partir desse projeto de lei que tramitou no Congresso, eu já ouvi algumas entrevistas de técnicos do MEC e de entidades que têm um diálogo mais forte com o MEC exigindo que essa regulação seja feita. Eu não tenho pessoalmente a informação de que isso já está andamento, mas todo mundo enquanto sociedade civil precisa cobrar que, se isso já está em andamento, seja colocado o mais rápido possível, para que todos os estados e municípios tenham a informação sobre essa possibilidade.

O projeto de lei foi enviado para a Presidência da República no dia 30 de março. É bastante plausível que o MEC e o FNDE durante esse período tenha trabalhado nessa resolução ou em algum documento seja um norte para os estados e municípios. Eu acho que enquanto sociedade civil a gente tem que continuar cobrando para que isso seja publicado o mais rápido possível.

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