Governo Bolsonaro abandona atendimento médico de indígenas

O governo Bolsonaro abandonou o atendimento médico a indígenas e o número de mortes de bebês acendem alerta. Dos 372 médicos que trabalhavam em terras indígenas, 301 eram cubanos do programa Mais Médicos que foram embora quando Bolsonaro anunciou o fim da parceria. Em meio a ‘apagão médico’ indígena, 3 crianças morrem em 11 dias no Xingu.

Makatu, 23, e Severina Kaiabi, 16, pais da recém-nascida Milena Kaiabi, que morreu em Sinop após esperar 15 dias por uma vaga em UTI neonatal (Foto: Avener Prado/Repórter Brasil)

Por Diego Junqueira, do Parque Indígena do Xingu.

Não havia médicos na manhã de 2 de abril para atender Milena Kaiabi, que nascera na aldeia Paranaíta, no Parque Indígena do Xingu, norte de Mato Grosso. Com 4 dias de vida, a recém-nascida estava chorosa, febril e sem vontade de mamar, mas a enfermeira deslocada até a comunidade disse ser nada grave. A bebê morreria menos de um mês depois na cidade de Sinop, a 200 km de distância, por suspeita de meningite e vítima da “confusão dos brancos”.

A expressão é usada por Mairawê Kaiabi, principal liderança de seu povo no Xingu, para retratar as políticas públicas para saúde indígena no Brasil. O assunto nunca foi prioridade em Brasília, “mas nesse novo governo piorou muito, piorou de vez”, ele diz. A saída dos cubanos do programa Mais Médicos, em novembro do ano passado, e o corte de verbas da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), ambas decisões da gestão do presidente Jair Bolsonaro, agravaram a já precária assistência nos territórios indígenas.

Além de médicos, faltam remédios como antibióticos e anestesias, o que compromete atendimentos básicos e demanda custosos resgates aéreos, fluviais e terrestres até as cidades. O combustível também é insuficiente para as emergências. Por conta dos cortes, funcionários da saúde com salários atrasados abandonaram seus postos – ou trabalham voluntariamente. O caos parece instalado nos territórios indígenas, mas quando eles recorrem à cidade, o SUS pode ser ainda mais cruel.

As mortes de três bebês kaiabis no intervalo de 11 dias em abril revelam como o Brasil cuida da saúde de suas crianças indígenas. Jaqueline Kaiabi, de 2 meses, morreu de pneumonia no Hospital Geral de Cuiabá, mais de um mês após entrar na infinita espera por uma cirurgia cardíaca. Nare Pedro, de 2 anos, morreu após sua luta contra a desnutrição esbarrar em uma pneumonia maltratada. Já Milena viveu por apenas 28 dias. Se no parque indígena não havia médicos para ela, nas ricas cidades mato-grossenses não tinham vagas nos hospitais.

Sentado sobre um saco de castanhas na aldeia onde Milena nasceu e está agora enterrada, Makatu Kaiabi, 23 anos, diz em voz baixa que não entende como perdeu a filha. Seu relato, no idioma kaiabi, é traduzido por um indígena que mora na região. Ao lado da mulher, Severina, 16, e do primogênito Tairu, 2, Makatu conta que a filha continuou “irritada” nos dias seguintes à consulta com a enfermeira.

A prefeitura de Sinop está recusando atendimento à população indígena na rede municipal da saúde pública

A família decidiu então levar a recém-nascida até o polo Diauarum, referência de saúde no médio Xingu. Milena ficou internada por cinco dias, segundo o pai, sem passar por médicos nem por exames mais complexos. Sem diagnóstico.

Uma segunda enfermeira, recém-chegada ao Diauarum com a equipe de vacinação, reavaliou a bebê e pediu sua transferência imediata. Milena chegou a Sinop aos 11 dias de vida em estado grave, com infecção generalizada, segundo boletim médico.

Cortes na saúde

Os 7.500 índios das 16 etnias que vivem no Xingu ficaram sem médicos no início de novembro, quando Jair Bolsonaro, então presidente eleito, anunciou o fim da parceria que permitia a atuação de médicos cubanos no Brasil pelo programa Mais Médicos. A decisão do novo governo afetou diretamente o atendimento nas aldeias, pois dos 372 médicos que trabalhavam em terras indígenas, 301 eram cubanos, incluindo os seis do Xingu.

O Ministério da Saúde levou mais de cinco meses para contratar os seis novos médicos para o parque indígena, a maioria brasileiros formados no exterior. A Repórter Brasil apurou que um deles já desistiu da vaga e outro está afastado por licença médica, o que impactou o atendimento em Diauarum no início de abril, quando Milena esteve ali. Questionado, o Ministério da Saúde não confirma se há atualmente um médico no local. A pasta diz que, das 372 vagas, 354 estão ocupadas e 18 foram oferecidas no edital de maio do Mais Médicos.

Para piorar, a Sesai congelou parte dos recursos repassados aos 34 Distritos Sanitários Indígenas do país, responsáveis pela atenção primária aos 900 mil indígenas brasileiros. A justificativa para os cortes são suspeitas de corrupção em contratos de prestação de serviço, como superfaturamento em aluguel de carros e aviões.

As tarefas e os contratos são geridos por oito organizações sociais conveniadas pelo Ministério da Saúde. A pasta não revela o montante bloqueado desde janeiro de 2019, que afetou principalmente o pagamento de trabalhadores da saúde que atendem as comunidades indígenas. Em 2018, o governo brasileiro gastou R$ 1,6 bilhão com o programa de saúde indígena – sendo 45% repassados para as conveniadas. Até 23 de maio deste ano, os gastos somavam R$ 490 milhões – valor 25% abaixo da média mensal do ano passado.

“O atendimento prestado pelos profissionais dentro do território indígena foi o mais prejudicado. Foram 3 meses de salários atrasados, então alguns ficaram sem saber se trabalhavam ou não”, disse Loike Kalapalo, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena do Xingu, que atua na fiscalização do convênio. Os atrasos nos pagamentos voltaram a se repetir em maio.

As organizações indígenas e suas lideranças dizem que há muitos anos denunciam as fraudes nos contratos com as conveniadas. “Isso acontece em razão das indicações políticas para cargos de gestão na saúde indígena. O ministro Luiz Henrique Mandetta tem todos os meios para investigar esses casos. O que ele não pode é prejudicar as comunidades indígenas e sustar contratos e repasses”, diz Eloy Terena, assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Procurado, o Ministério da Saúde diz que passou por “dificuldades jurídicas” para realizar os pagamentos às organizações sociais. “Os recursos destinados às entidades conveniadas já foram autorizados. No entanto, o cronograma de execução financeira dos recursos para as entidades Missão Evangélica Caiuá, SPDM e IMIP está sendo ajustado junto ao Fundo Nacional de Saúde. O pagamento das parcelas deve ser realizado até o fim de maio. É importante ressaltar que não houve interrupção de atividades nos 34 DSEIs”, diz a pasta, em nota enviada à Repórter Brasil (veja o posicionamento completo).

Bebês sob ameaça

Na falta de médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem assumem a linha de frente dos atendimentos, auxiliados por agentes indígenas de saúde. Os AIS, como esses profissionais são chamados, atuam nas comunidades e mantêm comunicação permanente com o polo de saúde, via rádio. São a referência médica no território indígena.

Um deles é Wyrasingi Kaiabi, 34 anos, que enfrentou um surto de pneumonia nas comunidades localizadas nos rios Arraias e Manito, a oeste do rio Xingu. Trazida por indígenas que retornavam de atendimento médico na cidade, a doença se espalhou rapidamente durante o mês abril, atingindo ao menos 35 crianças indígenas.

Infecções respiratórias graves são comuns em terras indígenas da Amazônia, principalmente no início do ano, com a temporada de chuvas. Mas em 2019 a infecção que atingiu essa região parecia mais forte, evoluindo para uma pneumonia grave em um ou dois dias, segundo relatos de indígenas que trabalham na saúde. Apesar disso, as mortes por pneumonia são consideradas “evitáveis”, segundo o médico Clayton Coelho, do Projeto Xingu, programa de saúde da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que trabalha no parque há mais de 50 anos.

Formado pelo projeto, Wyrasingi é capacitado para reconhecer a pneumonia e iniciar o tratamento ainda na aldeia. Em meados de abril, porém, não havia o antibiótico mais adequado para combater a doença em crianças, a amoxicilina. “Tinha muita gente doente e o remédio acabou”, diz ele, que atua na aldeia Sobradinho, a maior da região, com 150 moradores. Ali há um improvisado posto de saúde, que serve como ponto de apoio por sua localização estratégica: está a quatro horas de carro do município de Marcelândia.

A distribuição de medicamentos nas aldeias é responsabilidade do Ministério da Saúde, por meio dos distritos sanitários indígenas. Com os cortes de verbas neste ano, diminuiu também a remessa de remédios. Os lotes que chegam ao Diauarum não são suficientes para abastecer as comunidades, desfalcando o Sobradinho de anestesias e antibióticos.

Sem o tratamento adequado, o pequeno Nare Pedro Kaiabi, de 2 anos, piorou na aldeia. Com histórico de baixo peso e frágil condição de saúde, ele foi transferido para Marcelândia e depois para Colíder, mas não resistiu à pneumonia. Morreu em 18 de abril, véspera do Dia do Índio.

Dos 461 bebês que nasceram no Xingu nos últimos quatro anos, 20 morreram antes de completarem um ano. A taxa de mortalidade infantil no período, de 43 óbitos por mil habitantes, é três vezes maior do que a média brasileira, de 13. A taxa geral das terras indígenas no Brasil é de 30, segundo dados do Ministério da Saúde.

As causas mais frequentes para as mortes são infecções respiratórias, desnutrição, diarreia, má alimentação, falta de saneamento e a precária assistência à saúde, explica Coelho.

O Ministério da Saúde diz que “tem intensificado a vigilância do óbito em todos os DSEIs, com o objetivo de promover a redução da mortalidade materno-infantil”, e que “realiza uma série de ações voltadas ao combate da mortalidade infantil indígena, como a vigilância alimentar e nutricional, além da imunização das crianças”. A pasta afirma ainda que enviou o antibiótico amoxicilina até o polo Diauarum. Os funcionários da saúde na aldeia Sobradinho, no entanto, alegam que o medicamento não havia chegado até a aldeia, no início de abril, quando Nare Pedro pegou a pneumonia.

“O ministro Luiz Henrique Mandetta tem todos os meios para investigar as suspeitas de fraude. O que ele não pode é prejudicar as comunidades indígenas e sustar contratos e repasses”, diz Eloy Terena, da Apib

Outro grupo sensível nas aldeias são as gestantes. Numa tarde quente de domingo, Naiara Kaiabi, de 33 anos, começou a sentir fortes dores no baixo ventre e dificuldades para caminhar. Com 32 semanas de gestação do quarto filho e risco de parto prematuro, ela encarou três horas de barco à noite até Sobradinho, em viagem guiada por um indígena voluntário, já que o barqueiro oficial abandonou o posto após três meses de salários atrasados.

Depois foram mais 130 km de terra até Marcelândia. Numa caminhonete do Ministério da Saúde, o motorista voluntário levou quatro horas para superar a estrada encharcada e esburacada. O resgate, acompanhado pela reportagem, terminou às 4h da madrugada na emergência do Hospital Municipal Maria Zélia. “Eu fiquei enjoada na viagem de carro, mas agora estou me sentindo bem”, disse Naiara no dia seguinte, já sem dores e com um sorriso no rosto.

Na cidade, o caos

O apagão médico nas aldeias obriga os indígenas do Xingu a procurar assistência nas áreas urbanas, onde prefeituras e o governo de Mato Grosso também enfrentam uma situação caótica. Em algumas cidades, as prefeituras proíbem o atendimento de saúde a indígenas. “Antigamente tínhamos um mini-hospital dentro do Xingu e a população não saía tanto. Agora sai muito para a cidade, mas não está adiantando. As pessoas estão morrendo”, diz o cacique Sirawê Kaiabi, 69 anos.

Nascido em uma aldeia que não existe mais, nos arredores da cidade de Sinop, Sirawê e sua família foram levados de suas terras há mais de 50 anos para viver no oeste do Xingu, em razão de conflitos com os seringalistas que ocupavam a fronteira mato-grossense da Amazônia.

Conhecida como “a capital do Nortão”, Sinop é uma das cidades agrícolas mais ricas do país. Criada nos anos 1970 no rastro da BR-163 (Cuiabá-Santarém), a cidade de vocação madeireira viu a Amazônia do entorno ser transformada em enormes fazendas de gado e plantações de soja e milho.

A riqueza, porém, não alcança os serviços públicos de saúde. Desde janeiro, a prefeitura local proíbe os pacientes indígenas de serem atendidos na UBS e no centro médico da cidade, onde até o ano passado cerca de 40 índios faziam exames e passavam por médicos especialistas todos os meses. “Isso vai explodir em óbitos lá na frente”, diz uma funcionária da saúde indígena, que prefere não ser identificada por temer represálias.

O secretário de saúde de Sinop, Gerson Danzer, admite o fim dos atendimentos na rede municipal e diz que um dos motivos é o fato de a cidade não contar com terras indígenas em seu perímetro. “Hoje, Sinop não recebe recursos do Estado nem da esfera federal para atender os indígenas, nem dos municípios ao qual os indígenas pertencem.”, diz. O líder Mairawê Kaiabi reconhece a falta de financiamento ao município, mas lembra que os limites de Sinop têm presença indígena desde muito antes do surgimento da cidade.

O atendimento médico se agrava no momento em que o Ministério da Saúde está rediscutindo o modelo da saúde indígena. Decreto assinado por Bolsonaro no último dia 17 de maio extinguiu cargos da Sesai e aboliu o departamento de gestão da secretaria. A decisão abre caminho para a polêmica “municipalização da saúde indígena”, que prevê transferir a gestão do serviço da União para os municípios. O movimento indígena tem saído às ruas desde fevereiro para criticar a proposta. “A municipalização será o fim do nosso povo”, diz Matari Kaiabi, coordenador do posto de saúde da aldeia Sobradinho.

Procurado, o Ministério da Saúde não se manifestou sobre os cortes de verbas, a municipalização, as mortes das crianças no Xingu e o apagão médico na saúde indígena.

No meio da “confusão dos brancos”, restou a Unidade de Pronto Atendimento de Sinop para receber a recém-nascida Milena, de 11 dias. Ela passou por médico, realizou exames e começou o tratamento contra a meningite. Com infecção generalizada, a bebê precisava de avaliação neurológica e um leito em UTI neonatal.

O pedido feito pela UPA, no entanto, foi negado pela Secretaria Estadual de Saúde por falta de vagas. “A dificuldade por leitos de UTI é uma questão latente em Mato Grosso, estado que, nos últimos meses, passa por uma situação atípica envolvendo o fechamento de um hospital filantrópico, que contava com 30 leitos de UTI”, diz a secretaria em nota enviada à Repórter Brasil. O Ministério da Saúde diz que o óbito ainda está em investigação e que a meningite não pôde ser confirmada porque não foi colhido o líquor da bebê em Sinop, procedimento padrão em casos de suspeita da doença.

Milena passou seus últimos 15 dias de vida internada na UPA. Exames revelaram aumento na pressão dentro do crânio. A criança apresentava reflexos diminuídos e sofria fortes espasmos. Uma liminar da Justiça obrigava o governo estadual a internar a bebê. Mas de nada adiantou. Nem os hospitais particulares do Mato Grosso abriram as portas para a pequena índia brasileira. Quando Goiânia acenou para o pedido, era tarde demais. Milena morreu em 23 de abril, cinco dias antes de completar um mês.

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