Geração ritalina

Por Roseli Fischmann.

aumento do consumo de ritalina e congêneres sinaliza como a medicalização de crianças e adolescentes, em substituição a processos educacionais mais plenos, tem sido um caminho “confortável” para famílias, escolas e sociedade, apesar de ser apenas aparente solução para situações vividas.

Em nada auxilia o trabalho educativo dos pais, o que se verifica nas estruturas domésticas, qual seja, a passagem dos sistemas tribais (em que todos são responsáveis por todas as crianças do clã, vivendo em amplos espaços compartilhados) para sistemas de unidades familiares (alojadas em imóveis urbanos exíguos). Mesmo se não pensarmos em clãs, há o fato de essas famílias nucleares serem cada vez menores, contrapondo-se ao tempo não tão remoto em que a família era maior, com ascendentes convivendo proximamente, assim como agregados diversos.

O aumento da expectativa de vida e a ampliação das possibilidades de participação socioeconômica trazem situações novas. Avôs e avós estão no mercado de trabalho, sendo muitas vezes responsáveis pelo sustento familiar. Não há mais a figura da vovó velhinha contando histórias e fazendo bolinhos de chuva para os netos, sendo assim um apoio afetivo e emocional à formação.

A criação e a educação dos filhos sobre os efeitos dos diversos tipos de pressão que vivem os pais, em ambientes cada vez mais competitivos, extrapolam o âmbito profissional. São pressões que se espraiam pela imagem propiciada por bens de consumo e usufruto de serviços, somadas ao ritmo acelerado pelo uso das tecnologias de informação, que também reformulam o conceito de tempo, agora composto com um espaço desdobrado em muitos (o presencial, o virtual instantâneo, o virtual latente, etc.).

Toda essa agitação em que vivem os adultos reposiciona as crianças na vida familiar. Espera-se que a criança seja responsável por resultados e por compor parte da imagem de perfeição. É quando se insinua a tentação de lidar de modo mais “eficaz” com a “indisciplina” da criança. Se a preciosa espontaneidade infantil traz situações de “bagunça” doméstica, e suas habilidades motoras, em desenvolvimento, pedem amplidão para exercitar-se e acabam por precisar se acomodar ao espaço disponível, não é o caso de imediatamente rotulá-las como “problemáticas” e “hiperativas”, buscando o médico e a prescrição de drogas que as “ajustem”.

Uma criança é uma vida em desenvolvimento, com necessidades diversas e ritmos próprios. Ela precisa da interação com adultos para conhecer limites e possibilidades – e não para receber a camisa de força de expectativas impróprias que apenas fazem transbordar as pressões vividas pelos pais. A individualidade de cada criança e adolescente não é indício de individualismo, mas de sinais que indicam direções necessárias para que possam se formar como seres íntegros, participativos na família e na sociedade, críticos e colaborativos, produtivos e felizes.

Para trazer um paralelo com as pressões sobre os adultos, no livro Por que a Psicanálise? a francesa Elizabeth Roudinesco, psicanalista lacaniana e historiadora da cultura, afirma que nosso tempo colocou a depressão no lugar que foi antes ocupado por outras doenças – como a tuberculose no século 19. Isto é, como mal do século, voltando-se para desenvolver drogas que propiciem lidar com a dor sem enfrentar o que a provoca.

Elizabeth Roudinesco aponta como essa eliminação medicamentosa da dor pode ser um modo de aumentar a alienação. Abrandar artificialmente a dor acomoda e conforma aqueles que, talvez exatamente pelo espírito crítico e inquieto, mais estejam propensos à depressão. E isso os anula. A autora ressalta: expressar-se, verbalizar a dor, debater até encontrar a fonte do incômodo, isso sim propiciaria o sentimento de “preciso fazer algo a respeito”, o que ajudaria a mudar as bases sociais que concorrem de modo tão intenso e extenso para a depressão. No caso das crianças que não se enquadram em casos clínicos, mas que vão de roldão, o uso de drogas é menos e pior que um paliativo. Porque caberia perguntar: paliativo para o quê?

A educação de crianças e adolescentes tem na autonomia um de seus fins mais inquestionáveis e decisivos, amparada em capacidade crítica e reflexiva, bem como na responsabilidade pelas escolhas que se faz. Autonomia não significa isolamento ou egoísmo. Ao contrário, exige a plena assunção da alteridade, da vida com os outros, que são a outra face que se impõe eticamente e nos indica até onde podemos ir, com o que podemos contar, o que devemos respeitar, concordando ou não, apreciando ou não.

Já a heteronomia, ou seja, a definição dos próprios atos e atitudes por outrem, está fora do horizonte educacional. Um dos maiores equívocos em relação à disciplina é supor que a determinação a partir de fora possa ser positiva para uma criança. Embora rotina e normas que se deve cumprir sejam parte indispensável da formação da criança, a autodisciplina tem valor insuperável. Por isso, educar é trabalhoso e exige disponibilidade, atenção e abertura para o ser da criança. Educar uma criança é também educar-se, porque gera oportunidades de desenvolvimento para o próprio adulto que não se apresentam em outras situações. O reconhecimento do ganho do processo educativo também para os pais, exatamente por todo o trabalho que exige, é o maior apoio que se pode ter.

Finalmente, mesmo para um mundo imerso nas expectativas do que se espera que um filho ou uma filha possa atingir, vale lembrar o pensamento do prêmio Nobel de Medicina e um dos criadores da etologia, o estudo do comportamento animal (o ser humano aí incluído), Konrad Lorenz, no livro ‘A Demolição do Homem’. Ao indicar que ética e amor devem ser os pilares para a criação de crianças desde a mais tenra idade, Lorenz traz o tema da curiosidade. Afirma que muito frequentemente famílias e escolas podam radicalmente a curiosidade das crianças, como se fosse inadequada. Até pelo modo de os pequenos muitas vezes, involuntariamente, saírem-se com perguntas que causam constrangimento. Lorenz afirma que a curiosidade é a base do amor e do pensamento científico. Sabe-se que, para a ciência, propor questões é fundamental, e para isso, há que se olhar o mundo com olhos sempre novos. E como se liga a curiosidade ao amor? Lorenz lembra que um dos mais claros indícios de interesse afetivo por alguém é a imensa vontade de saber mais sobre aquela pessoa, dos aspectos mais simples (residência, idade, lugares que frequenta, etc.) aos mais complexos (opiniões, histórias e vivências). Esse interesse é, de fato, curiosidade. E, sem poder expandir e expressar essa curiosidade, o amor não se apresenta, nem se desenvolve.

Assim, as crianças agitadas e tomadas como “impossíveis” podem ser exatamente as mensageiras das agitações e impossibilidades parentais, nela refletidas, que pedem atenção com os adultos. Como podem ser também mensageiras de toda curiosidade que têm e nelas se agita, enquanto traz consigo todas as possibilidades de amor e conhecimento que se concretizarão, bem encaminhadas a energia, a disposição e a curiosidade, em vez de sufocadas por um medicamento que as fará, sim, “obedientes”, mas ao custo de homogeneizar friamente o que apenas pede crescimento, luz e calor.

*ROSELI FISCHMANN É COORDENADORA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO E DOCENTE DA PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DA USP

Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo.

EcoDebate, 25/02/2013

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