Freud e o político

Por Mladen Dolar, via Theory Leaks, traduzido por Aukai Leisner

A questão da política em Freud esconde, sob o ar de inocência, um problema extremamente complicado, talvez impossível. Ambos os termos da expressão – Freud e política – estão longe de ser inequívocos: não é claro, não obstante as aparências, o que se quer dizer por Freud, apesar ou talvez por causa da aura em torno do seu nome e do clamor generalizado que sua fama provocou… e ainda menos claro é o significado de política, apesar ou provavelmente por causa do fato de que se é constantemente bombardeado, de todos os lados, por temas políticos. Se definir os termos isoladamente já não é tarefa fácil, pensar a possível intersecção entre os dois torna-se inglório. A tentação de adotar uma retórica desconstrutivista é grande – ao invés de falar sobre a questão, falar sobre a impossibilidade de se falar sobre a questão. Farei o máximo para resisti-la.


À primeira vista, Freud não era um homem político, para dizer o mínimo. Ele jamais se envolveu na vida política de maneira significativa, ao menos não por vontade própria, não até que ela se-lhe impusesse na forma bastante insidiosa de um galopante anti-semitismo e, finalmente, da ocupação de seu país pelas forças nazistas, que o forçou ao exílio. À exceção desse surpreendente final, sua relação com a política foi apenas fortuita. Podemos lembrar de anedotas sobre sua aversão a Woodrow Wilson e o infeliz livro que ele co-escreveu sobre o presidente americano; seu lamentável bilhete dedicando um livro a Mussolini; o fato de ele ter sido eleitor do partido liberal (alinhando-se ao resto da comunidade judia austríaca); seus comentários céticos sobre o bolchevismo, que mais tarde ele próprio reconheceu serem injustos; o fato de ter se permitido um charuto extra quando o Imperador recusou-se a nomear o Dr. Karl Lueger burgomestre de Viena, apesar de sua vitória eleitoral em 1895 – o mesmo Karl Lueger, deve-se acrescentar, que serviu como exemplo para o jovem Hitler, que vagava pelas ruas de Viena na virada do século. Lueger ensinou a Hitler os segredos do antissemitismo, como descreveu o futuro Füher em Mein Kampf. E, como venho da Eslovênia, não consigo resistir a contar uma anedota, imagino que a mais espetacular de todas, de um evento que ocorreu na única e breve visita de Freud à Eslovênia. Na Páscoa de 1898, Freud visitou a Itália com seu irmão Alexander e, na volta, eles fizeram uma parada nas famosas cavernas de Skocjan, na Eslovênia (hoje protegidas como patrimônio natural pela UNESCO). Ele descreve o lugar numa carta a Wilhelm Fliess, datada de 14 de Abril de 1898, nas seguintes palavras: “um rio subterrâneo correndo por arcadas magníficas, com quedas d´água, estalactites e um grande breu… Era o próprio Tártaro. Se Dante tivesse visto algo assim, não teria precisado de grande esforço de imaginação para escrever seu Inferno.”[1] E quem Freud encontrou no fundo desse Tártaro, no último círculo desse Inferno? “O chefe de Viena, Heer Dr. Karl Lueger,” que calhava de estar visitando a caverna ao mesmo tempo. Ele estava acompanhado de outra figura da capital e visitava a periferia do Império durante o feriado, um lugar ideal para topar com pessoas que ele jamais encontraria cara a cara em Viena. Freud, o judeu paradigmático, encontrando o antissemita paradigmático justamente no Inferno esloveno – tal imagem merece ser vista, em retrospecto, como um ícone emblemático da inauguração do novo século, carregada de agouros dos sombrios eventos que as décadas seguintes reservariam. [2]

Por mais pitoresca que essa anedota pareça, por mais emblemática que seja em tantos sentidos, há nisso tudo uma flagrante ausência: Freud jamais propôs uma linha política que derivasse de sua descoberta, uma posição política a se adotar. Ele evitou qualquer reflexão sobre o impacto político que sua criação pudesse ter – um gesto certamente intencional, embora jamais explicitado. Ele recusou-se orgulhosamente a adotar qualquer Weltanschauung, qualquer “visão de mundo,” incluindo uma visão política, sob o argumento de que o espírito científico deve prescindir de uma Weltanschauung. Pode-se concluir daí que há em Freud uma inerente indiferença em matéria política – essa é a linha adotada, por exemplo, por Jean-Claude Milner, uma figura importante no cenário intelectual francês contemporâneo, que vê nessa indifférence en matière politique o caminho que a psicanálise deveria seguir, recusando assim o que ele chama de “visão política do mundo.”[3] Pode-se prontamente objetar, é claro, que não existe algo como indiferença em matéria política, que a própria indiferença implica sempre uma tomada de posição que acaba por endossar o status quo. Apoia-se involuntária mas efetivamente um certo tipo de política precisamente ao abster-se da política, de modo que a indiferença em política parece uma contradição em termos (a política, assim como a sexualidade, sendo uma daquelas coisas que sempre se pratica, quer a pratiquemos ou não). De modo que se pode considerar tal indiferença lamentável, um sinal do conservadorismo de Freud, ou da natureza secreta (ou abertamente) conservadora da própria psicanálise, que faz com que ela legitime, explicita ou implicitamente, instituições como o patriarcado, o falocentrismo, etc. Não faltou quem lançasse mão desse argumento. Pode-se também considerá-la condenável no sentido de que Freud jamais levou em conta a natureza politicamente subversiva de sua descoberta, de modo que se deveria sanar essa deficiência com a proposição de uma política radical que derivasse implicitamente de sua teoria e que ele não queria, ou não ousava, explicitar. Entram em cena Reich, Marcuse, e Maio de 68. Nous voulons jouir sans entraves.

Mas, por outro lado, pode-se adotar uma abordagem inteiramente diferente, que rejeita completamente a ausência da política em Freud. Se a psicanálise surgiu a partir do tratamento da psiquê individual, seus sintomas e vicissitudes, e se o objeto da política é a construção de uma coletividade, então essa fronteira tem sido cruzada desde o princípio. Na primeira página de Psicologia de Grupo e Análise do Ego (1921), Freud começa por afirmar que, em última análise, tal fronteira não existe:

“O contraste entre a psicologia individual e a psicologia social ou grupal, que à primeira vista possui grande importância, perde muito de sua agudeza quando examinado mais de perto… Na vida mental do indivíduo, outras pessoas estão invariavelmente presentes, como modelo, como objeto, como auxiliadoras ou adversárias; de modo que, desde o princípio, a psicologia individual, nesse sentido mais amplo mas inteiramente justificável dos termos, é ao mesmo tempo psicologia social.” (PFL, P. 95)

Pode-se dizer que, para a psicanálise, não existe algo como o indivíduo, uma vez que o indivíduo somente faz sentido como nó de laços sociais, uma rede de relações com os outros, com o sempre presente Outro social – sendo “Outro” apenas um modo abreviado de referir-se à esfera social. A subjetividade não faz sentido sem essa relação inerente ao Outro, de modo que a socialidade faz parte da psicanálise desde o início – por exemplo na forma daquele mini-script que é o Édipo: a estrutura social em sua forma mais condensada.

Assim, as reflexões sobre o social a que Freud se dedicou com crescente interesse no fim da vida não são um acréscimo, uma aplicação da psicanálise a um novo campo de pesquisa, mas sim o desdobramento do que esteve sempre ali, desde o início. Podemos entender os dois termos do título, psicologia de grupo e análise do eu, como estando numa relação de implicação mútua: a psicologia grupal baseia-se numa certa estrutura do ego e é tornada possível graças a ela; e a análise do ego implica, desde sempre, um estrutura grupal. Desse modo, Freud procura apresentar essa relação como uma transição natural, uma mera dedução, ou uma magnificação ou multiplicação do que já estava presente em escala menor. O indivíduo, o ego e o sujeito são inconcebíveis sem uma teoria do laço social.

Nessa visão, a política estaria universal e ubiquamente presente na obra de Freud, ao ponto de quase não deixar espaço para outra coisa. Nenhuma página sequer de Freud estaria livre de consequências políticas. Mas essa interpretação é possível somente graças a um equívoco entre o social e o político, uma certa equivalência entre os dois, e é fácil ver que isso não basta, que é preciso operar uma sutura. As palavras-chave usadas por Freud em seus “escritos sociais” são “grupo”, “massa”, “cultura” e “civilização”. Podemos considerar tais palavras-chave precisamente uma maneira de evitar colocar a questão em termos políticos. Para falar com franqueza, elas tendem a despolitizar o problema, a apresentá-lo como uma questão cultural ou civilizacional. A metáfora da sutura, do ato de costurar, está longe de ser inocente; Lacan fez amplo uso dela com seu conceito de ponto de capitonê, o ponto de costura, que de certa forma está no centro da política. O ponto de costura é o oposto de um tecido liso, não é o desdobramento natural de uma forma condensada; ele requer um ponto, um ato, uma mudança. Podemos encontrar essa elaboração em Freud, ainda que de forma incipiente?

Há algumas maneiras pelas quais Freud operou algo como uma manobra política, em sentido amplo, e todas levantam problemas difíceis. Podemos entendê-las talvez como as maneiras pelas quais não se deve fazer política, os modelos a não seguir. Neste artigo, eu analisarei três delas: o problema de estabelecer um instituição psicanalítica; o problema de contar com a razão ou Eros, a libido, como solução para o mal-estar social, Unbehagen; e o problema da psicologia de grupo e sua construção. Elas envolvem diferentes questões, mas minha aposta é que os impasses a que elas chegam apontam para um solo comum, o que talvez possa ajudar a elucidar a questão.

Há, primeiro, a questão da instituição que seria o receptáculo e guardiã dessa nova descoberta, assegurando seu status social, seus padrões profissionais e sua transmissão. Essa é a parte concernente à política interna da psicanálise: qual seria a forma organizacional apropriada em que esse novo conhecimento poderia ser mantido e devidamente transmitido, com sua especificidade protegida, seus adversários mantidos à distância e sua promoção social assegurada? Sem dúvida há aqui um gesto político que dota uma descoberta, um conhecimento, uma prática, de um enquadramento institucional, uma base social, com permanência e independência dos indivíduos particulares envolvidos, inclusive e, em especial, de seu pai fundador. Afora as preocupações práticas, há aqui uma missão, ao mesmo tempo social e política, uma missão de espalhar uma verdade, na esperança de que ela vingue. Uma verdade a ser espalhada por uma organização (poderíamos dizer um Partido?) e não somente confiada a um conjunto de escritos – é aqui que entra a política, onde se faz necessária uma costura entre um conhecimento e seu status social. É também aqui que uma associação psicanalítica se diferencia enormemente, de um lado, de associações meramente profissionais de, por exemplo, dentistas ou encanadores, que existem para garantir certos padrões profissionais e, de outro, de associações científicas. O que está em jogo na ciência, ao se estabelecer um campo científico, é a garantia do repetível: o experimento é um procedimento repetível por qualquer um, disponível universalmente, e é isso que lhe assegura objetividade, alcançada através de processos de verificação; na psicanálise, por contraste, lida-se constantemente com o singular, a singularidade dos sintomas, a singularidade de um inconsciente particular – i.e., lida-se com o não-repetível, e é a partir do singular que se deve construir o universal.

A universalidade do que está em jogo aqui é de natureza diferente daquela das leis científicas, a passagem do singular ao universal exige um ato diferente, e isso põe a psicanálise numa situação precária: ela está sempre sujeita à crítica de que não é uma ciência de verdade e não passa no teste de repetição verificável, mas ao mesmo tempo jamais abandonou sua pretensão de possuir credenciais científicas e de ser tratada como ciência. A passagem da singularidade do objeto da psicanálise para a universalidade de suas afirmações envolve uma verdade de ordem diferente daquela da verdade científica, uma verdade sem garantia, e é aqui que a organização, a associação psicanalítica se vê numa situação impossível: a de figurar como garantia – mas uma garantia faltante – dessa verdade.[4] Essa circunstância particular, que a distingue tanto das associações profissionais quanto das científicas, situa a psicanálise e suas organizações na fronteira do político, uma vez que um ato político sempre intervém em situações inerentemente singulares e deriva delas postulados universais, postulados que não possuem garantias simples, de modo que organizações políticas, partidos etc., são também convocados como garantidores do que não possui garantia. Podemos imaginar uma associação psicanalítica à altura desse papel impossível? (E seria possível, aliás, que um agrupamento político o esteja?)

Se olharmos para a história das organizações psicanalíticas, sem dúvida há nisso tudo um quê de humor negro. Lacan, que tinha muitos motivos para guardar ressentimentos a esse respeito, comentou: “Deixamos em suspenso a questão do que levou Freud a essa extraordinária piada, realizada pela constituição das sociedades psicanalíticas existentes, porque não se pode dizer que ele queria que elas fossem de outra maneira.” [5]

As organizações oficiais, tais como a Associação Psicanalítica Internacional, sem dúvida foram em parte bem-sucedidas, tanto na garantia de um quadro institucional internacional como dos padrões de uma profissão, essa nova e vastamente difundida profissão global. No entanto esse é o ponto, talvez, em que seu próprio sucesso as levou à ruína, para usar uma fórmula de Freud aplicada a outro contexto. Essa é a parte a que Lacan se refere como a piada: assegurou-se tudo menos o essencial. O profissional suplantou o político, a fronteira da verdade dura e perturbadora foi borrada, e seria difícil imaginar que a verdade tenha prevalecido em meio a essa disseminação global. Mas o que seria a prevalência da precária verdade psicanalítica?

Há, por outro lado, as falhas, cujo símbolo máximo são as constantes lutas, rivalidades, exclusões, sectarismos, oposições, controvérsias, os embates do revisionismo vs. ortodoxia, já no tempo de Freud e, depois, especialmente em torno da figura de Jacques Lacan. Essa é a parte em que a doutrina parece longe de estar assegurada, apesar das salvaguardas institucionais para garanti-la ou, talvez, por causa delas. Não há um repertório delimitado de conhecimentos a serem transmitidos nem um conjunto de práticas bem-definidas – tudo parece estar sujeito a constantes controvérsias, divisões institucionais, apóstatas e detentores do verdadeiro anel. Apesar de a psicanálise sempre ter reivindicado o status de ciência, parece bem distante do que uma ciência legítima deveria ser: nenhum conhecimento é considerado adquirido, nenhum procedimento é pacificamente estabelecido. Essa falha é bem mais interessante e emblemática. Louis Althusser, num clássico artigo sobre Freud e Marx[6], defendeu veementemente que a psicanálise é uma ciência conflituosa, uma característica que ela compartilha proeminentemente com o marxismo. O conflito é seu terreno; o antagonismo é o ar que ela respira. Quando ela se torna parte da herança cultural, a partir do momento em que Freud é transformado num “herói cultural”, ou quando ela se torna parte do know-how clínico estabelecido, ela perde sua potência. Há quem derive uma satisfação perversa do fato de que essa manobra gentrificadora jamais tenha sido bem-sucedida, apesar de um século de esforços de domesticação e pacificação, de modo que, ainda hoje, a mera menção do nome de Freud tende a provocar controvérsia e dissenso.

Não se trata somente de uma questão de resistências, recusas e oposições externas – elas sempre abundaram (em nossa época, por exemplo, elas tomam a forma da rejeição absoluta da psicanálise por parte das neurociências, ou ciências cognitivas, que erguem a bandeira da noção estabelecida de ciência contra aquela falsa postulante). Muitas descobertas científicas enfrentaram a princípio dura oposição, mas uma vez que seu conhecimento se estabeleceu, uma vez que foram capazes de apresentar as credenciais científicas de verificação, seu progresso estava assegurado, e elas podiam prosseguir acumulando conhecimento gradualmente, através de caminhos bem delimitados. Mas esse jamais foi o caso nem da psicanálise nem do marxismo: ambas reivindicaram o status de ciência, mas procederam apenas por meio de conflitos e divisões – não somente os conflitos advindos da hostilidade externa, mas por meio de uma série de conflitos internos, como se a oposição externa fosse constantemente transposta numa contenda interna, uma conflitualidade que jamais se estabiliza num consenso.

Essa história – e esse é ponto central do argumento de Althusser – é apenas um efeito da natureza das verdades que estão em jogo em cada uma delas: ambas lidam com uma verdade que é ela própria antagonística, uma verdade conflitual, embora estejam trabalhando com noções aparentemente sem nenhuma conexão: de um lado, a luta de classes e, de outro, o inconsciente e a repressão. Não há produção de conhecimento que esteja livre desse antagonismo: cada acúmulo implica uma tomada de posição, um mover-se num campo de batalha, no seio de um antagonismo que é simultânea e indistinguivelmente interno e externo ao mesmo tempo, uma externalidade presente no próprio interior. Assim, o resultado paradoxal seria que o gesto político mínimo de fornecer um enquadramento organizacional para a descoberta psicanalítica poderia resultar ou num sucesso cujo preço seria a total despolitização da potência da verdade em jogo, ou então nos aparentes fracassos, uma série de desastres, mas que apontam, ainda que per negationem, para a natureza política, antagonística e conflitual da psicanálise, para a impossibilidade de torná-la um campo neutro do conhecimento, seja científico, clínico, cultural ou político. Nessa visão, o impacto político da psicanálise surge precisamente a partir do seu constante fracasso em estabelecer sequer um mínimo consenso “político.” Mas será isso suficiente para uma política? Podemos nos contentar apenas em reconhecer essa natureza conflitual? Podemos derivar uma satisfação complacente em ostentar a conflitualidade?

Há outra maneira pela qual Freud aborda algo que poderia ser entendido grosseiramente como uma linha política: ao propor um preceito, uma diretriz, um remédio para curar os males sociais. Há alguns momentos em sua obra em que Freud aparece não como o defensor da democracia (apesar de sua auto-descrição como “um liberal à moda antiga”), mas de uma ditadura, Diktatur. Não uma ditadura qualquer, mas – se é que isso é algum atenuante – a ditadura da razão. Na famosa troca de cartas com Einstein, ao tratar da questão “por que a guerra?” e como previni-la, ele sugere a seguinte saída: “A condição ideal seria, é claro, uma comunidade de homens que houvessem subordinado sua vida instintual à ditadura da razão. Nada mais poderia unir os homens tão completa e tenazmente, ainda que não houvesse entre eles laços emocionais. Mas muito provavelmente trata-se de uma expectativa utópica.” (PFL, p.359-60). Tal formulação não é nenhuma coincidência – encontramo-la repetida no mesmo ano, 1932, nas Novas Conferências Introdutórias: “Nossa melhor esperança para o futuro é que o intelecto – o espírito científico, a razão – possa com o tempo estabelecer uma ditadura na vida mental do homem” (PFL, p. 208). A sugestão soa deveras desconcertante, vinda de um homem que dedicou a vida a descrever as forças que fogem ao controle da razão, sejam as forças do inconsciente que não cessam de pôr obstáculos às pretensões da razão, sejam as forças das pulsões, aqueles gigantes indomáveis que sempre obtém satisfação à força, inclusive pelos meios mais improváveis e dolorosos. Muitas vezes se pensou, inclusive, que a psicanálise promovia a ditadura de tais forças ao invés de pautar a superioridade da razão. Como pode a razão submetê-las ao seu poder ditatorial, com que pode contar para enfrentar esse adversário formidável, invencível segundo o próprio Freud? Ao mesmo tempo, há uma espécie de desmentido em jogo, visto que Freud fala da ditadura da razão na conferência dedicada à Weltanschauung, isto é, justo na ocasião em que ele queria demonstrar porque a psicanálise não deveria esposar nenhuma Weltanschauung, quando na verdade apresenta de maneira escancarada alguns dos traços mais salientes do que se poderia chamar de Weltanschauung iluminista: a fé na razão e no progresso, no espírito científico, a razão como monarca esclarecido. Seria essa nossa melhor esperança? Freud não estaria simplificando as coisas ao estabelecer uma dualidade entre, de um lado, a razão e, de outro, o inconsciente e as pulsões? Não deveríamos lembrar que o inconsciente freudiano não é algo simplesmente irrazoável ou irracional? Freud jamais o descreveu como algo oposto à razão, mas sim como uma falha da razão, seu lapso, sua torção interna. E, de outro lado, não seria o ego, o tradicional sítio da razão, precisamente o agente da agressão e da repressão, uma instância mais propensa a guerras que o id? Não seria a razão, na visão de Freud, sempre inextricavelmente ligada à racionalização, racionalizando algo que não é razoável? Não se estaria olhando a questão do ângulo errado? Não tenho espaço aqui para continuar a desenvolver esse argumento; procurei fazê-lo em outro lugar. [7]

Há uma outra maneira pela qual Freud descreve o conflito: não mais como oposição entre a razão e a vida pulsional, mas como uma dualidade entre as próprias pulsões, entre os dois tipos de pulsão que em sua obra tardia ele descreve como libido, ou Eros, e a pulsão de morte, o suposto agente de agressividade e destruição. No famoso parágrafo final de Mal-Estar na Civilização, ele pinta um quadro de luta interna entre as duas:

“A questão decisiva para a espécie humana me parece ser se e em que medida o seu desenvolvimento cultural será bem-sucedido em dominar a perturbação de sua vida comunal pelo impulso de agressão e auto-destruição. É possível que, a esse respeito, nossa época mereça um interesse especial… e agora espera-se que o outro dos “Poderes Divinos,” o Eros eterno, fará um esforço para se afirmar em sua luta contra seu adversário igualmente imortal. Mas quem poderá dizer com que sucesso e com que resultado?” (PFL, P.339-40)

É bastante estranho que Freud aposte suas fichas ao mesmo tempo no poder da razão, de sua ditadura, contra a força das pulsões e depois, quase no mesmo impulso, aposte numa das pulsões contra a outra – o Eros, supostamente a força da união, concórdia e aliança, em oposição à pulsão de morte, o suposto agente da agressão e (auto) destruição. Como se dá o alinhamento da razão com a libido e com Eros? Seria a razão erótica? Seria Eros razoável?[8] Seria a unificação seu denominador comum?

É fácil enxergar um problema nesse raciocínio. Ele deriva, penso eu, do modo como a dualidade é construída, estabelecendo-se a oposição essencial entre a razão e as pulsões, de um lado, e entre Eros e a pulsão de morte, de outro. Em ambos os casos, a divisão entre os dois pólos separa a parte boa da parte má, o lado positivo do negativo, implicando que se deveria apoiar a parte boa contra a má, nesse conflito que é postulado como eterno. O que falta é precisamente a inerente ambiguidade de ambas as partes, que impede que se jogue uma contra a outra dessa maneira. A profunda ambiguidade da pulsão foi o que levou Freud a separá-la numa parte positiva e outra negativa, mas esse gesto traz uma simplificação conceitual. A profunda ambiguidade de ambos, a razão e o inconsciente, impede sua simples oposição. De modo que o apelo – o apelo político? – de se apoiar um contra o outro nos leva a pensar: “sempre haverá um conflito entre Eros e agressividade, ou entre a razão e as pulsões, e tudo o que podemos fazer é torcer para que vença o contendor menos desagradável.” Ou então “trabalhemos em prol de um, embora saibamos muito bem que o outro jamais poderá ser derrotado e que nossa luta é utópica – mas no entanto…” A política implicaria, portanto, enxergar o psíquico e o social como um campo de batalha conflituoso, em que se deve apoiar as forças do bem contra as do mal – mas o paradoxo é que as forças do mal são exatamente aquelas que a psicanálise descobriu em primeiro lugar: o inconsciente, as pulsões, a pulsão de morte. Assim, o objetivo da psicanálise seria eliminar seu objeto, em último instância aboli-lo – o que aparentemente acabaria com o problema e, por conseguinte, com o emprego do analista. A utopia psicanalítica seria, assim, um mundo que não precisasse de psicanálise.

Mas apostar nossas fichas dessa vez na libido, o Eros, contra a pulsão de morte, seria a única ou a melhor alternativa? Não poderíamos, ao invés, voltar à posição radical do jovem Freud, por exemplo o Freud de Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905), que insistia não na dualidade das pulsões mas na sua inerente ambiguidade? Porque a pulsão é uma conjunção bastante paradoxal entre, de um lado, a conservação, sendo aquilo que volta constantemente ao local de satisfação, dotada de um natureza compulsória que a conduz inexoravelmente a “mais do mesmo,” e, do outro, a alteridade disruptiva, que faz com que ela não seja simplesmente uma força de adaptação, de homeostase, guiada pelo princípio do prazer, mas que produza o perturbador, o desencaixe, o excesso, o mais (o mais-de-gozar, como o chamaria Lacan). Não poderíamos ver nessa força perturbadora e disruptiva uma via mais apropriada para se pensar a política? A pulsão não é apenas o que preserva uma certa ordem institucional; ela é ao mesmo tempo a razão pela qual essa ordem não consegue se estabilizar e se fechar sobre si, pela qual ela jamais pode ser reduzida ao melhor arranjo entre os sujeitos e instituições existentes, trazendo consigo um excesso que a subverte. Isso implicaria não se apoiar no suposto poder unificador da libido contra a pulsão de morte disruptiva, mas sim apoiar-se na disrupção como abertura, como possibilidade de uma outra forma de laço social, de transformação. Não é a unificação e união, juntando unidades cada vez maiores, como descreve Freud, que é a base de um preceito político, mas precisamente a ruptura, a fissura, a impossibilidade, o denodoamento que apresenta uma abertura para o político. É o excesso negativo, o não-lugar constantemente produzido pela natureza disruptiva das pulsões que requer representação e ato. Freud parece dizer que devemos nos tornar como que agentes de Eros, para nos opormos aos perigos da destrutividade e desintegração, como se esquecesse em que grande medida a unificação e o amor podem conter uma face oculta assassina. Mas não poderíamos, nesse nível bastante especulativo e abstrato, sugerir que deveríamos, ao contrário, nos tornar agentes da pulsão de morte, desfazer a cola dos laços sociais, na esperança de estabelecer outra forma de relação na não-relação social?

Mas assim chegamos novamente à condição negativa da política, ao ponto em que a abertura política se encontra precisamente na impossibilidade de unificação social – e a pulsão de morte pode ser o nome dessa impossibilidade. Sua negatividade aponta para uma fissura necessária no tecido social, a fenda onde a política deveria acontecer, sem nos apontar, no entanto, nenhum caminho certo.

A terceira maneira de abordar o intricado nexo da psicanálise com a política nos remete ao texto seminal de Freud, Psicologia de Grupo e Análise do Eu. Vimos que a suposição na qual se baseia a introdução do texto é a de uma implicação mútua entre a estrutura grupal e a estrutura do ego, uma transição natural entre as duas. Quais são exatamente os termos dessa transição? Por onde começamos? Aonde chegamos? Por que vias? Uma maneira espontânea de ver as coisas seria a seguinte: Freud começou pela análise da estrutura psíquica “individual”, que já incluía em si um núcleo mínimo de relações sociais simbolizadas pelo Édipo. O indivíduo somente poderia se tornar sujeito no interior da estrutura “familiar”, e a chave de toda autoridade, sua fonte secreta, deveria ser buscada na relação com a instância paterna. O que Freud parece estar fazendo neste artigo é, se não uma dedução da forma social a partir da família, então uma magnificação e multiplicação do Édipo. A família com seu nexo edípico seria o pressuposto, firmemente estabelecido através de elaborações psicanalíticas prévias, e o social, as diversas vicissitudes dos laços grupais, seriam a consequência, o resultado de um certo desdobramento do núcleo social mínimo. O familial seria assim o familiar por meio do qual se explicaria o não-familiar como versão do familiar.

Esse entendimento está, aliás, na raiz de uma célebre crítica à psicanálise apresentada por Deleuze e Guattari, sob a bandeira do anti-édipo. Acusou-se a psicanálise de extrair conceitos universais desse romance familiar; qualquer arranjo complexo, psíquico ou social, poderia ser reduzido a uma história de papai e mamãe. Se se pode fazer alguém crer que seu desejo deve se alinhar ao desejo do papai e da mamãe, então esse indivíduo será presa fácil de outras formas de dominação social, de alinhamentos com grupos molares e, em casos extremos, com o fascismo. E fazer com que o paciente acredite nisso é parte da normalização implicada nas premissas básicas da psicanálise – normalização que se opõe ao nomádico, ao múltiplo e ao devir. Simplifico, mas não muito.

Outra linha de argumentação poderia localizar o gesto freudiano numa venerável tradição de filosofia política que remonta à antiguidade, à vulgata da Política de Aristóteles, onde há uma confluência essencial, uma possibilidade de transposição e tradução mútua, entre as três esferas da vida humana: o indivíduo, a família e a pólis. Do mesmo modo que se deve ser o mestre das próprias paixões, do corpo e suas inclinações, com as faculdades mais elevadas da alma guiando sabiamente as mais baixas, o pai deve ser o chefe da família, o oikos, a vida doméstica, comandando sabiamente as crianças, a mulher e os escravos, e o governante deve administrar a pólis. Somente alguém capaz de se auto-governar e de governar seu oikos está apto a comandar a pólis com a devida autoridade, e toda autoridade, em sua origem, baseia-se no modelo do pai, a fonte de autoridade natural. É isso que podemos entender do texto de Freud? Estaria ele a nos oferecer uma versão moderna da antiga doutrina política sob nova roupagem? A escolha do modelo do Édipo, entre tantos outros, só pode ser vista como altamente irônica – Édipo vem de uma família bastante disfuncional, para dizer o mínimo. Poderia sua história servir como modelo familiar?

Mas aqui já se entrevê que o Édipo dificilmente equivale a uma redução à família, implicando, ao contrário, a impossibilidade de uma tal redução. O Édipo é o que desenraiza a família, o que a desloca, impede seu funcionamento normal, frustra seu objetivo. Ele torna qualquer assunção de funções e papéis sociais prenhe de conflitos cujo desenrolar é incerto; ele não assegura papéis sociais e familiares, mas subverte-os. O pai é separado de sua autoridade “natural,” sua autoridade torna-se função da identificação, e cada sujeito se confronta com um impasse – ninguém pode simplesmente ocupar seu lugar, cada papel está sujeito à disputa. Como observou lucidamente Balibar: “a estrutura familiar não se baseia no Édipo, mas o Édipo, ao contrário, inscreve o conflito e a variabilidade de posições subjetivas em seu núcleo e impede assim qualquer possibilidade da família impor papéis que ela prescreve como simples funções que os indivíduos cumpririam “normalmente.”[9] De modo que o Édipo não é a redução ao oikos, mas sim a perturbação no interior do oikos.

Podemos dizer que Freud coloca o pai como a fonte de toda a autoridade e, portanto, também como chave de toda e qualquer autoridade política? Parafraseando Hamlet, não é preciso que Freud se levante do túmulo para nos dizer isso; essa é, na verdade, a visão tradicional de autoridade que está sendo questionada aqui. Não é que Freud reduza tudo a relações com o pai e a mãe; na verdade, ele os subtrai de seus papéis “naturais” e os apresenta como funções repletas de conflitos estruturais e instabilidade. Freud – e essa é uma grande hipótese – identifica a função do pai e suas vicissitudes precisamente na época em que essa narrativa tradicional começava a perder força.

Não se pode esquecer, é claro, que Freud propôs o mito do assassinato do pai, do pai morto possuindo mais poder que o vivo, governando através do Nome do Pai, como autoridade simbólica, como autoridade do simbólico, fazendo surgir um laço entre os irmãos que o mataram, etc. Mas poderíamos dizer que, com o advento da modernidade – a Revolução Francesa marcando um corte simbólico e servindo como atalho para vários outro processos – foi o próprio pai morto que morreu. Ele perdeu seu impacto simbólico, seu nome cessou de ser a fonte de autoridade e foi revelado como uma impostura. Os pais, “reais” e simbólicos, perderam seu poder, que pode então ser visto retroativamente como corrompido desde o princípio. Assim, essas grandes premissas históricas tornaram possível a Freud perceber o pai não como fonte de autoridade natural, religiosa ou simbólica, mas na contingência de sua função. Não se tratava apenas do fato de que nenhum pai, governante ou deus estava mais à altura da sua função, mas sobretudo de que a função simbólica deixou de ser a medida. Há muitas maneiras e vocabulários para falar da ascensão da modernidade, e essa poderia uma proposta econômica: o pai morto, o ponto de referência da autoridade simbólica, encontrou sua derrocada. No entanto, uma explosão de alegria em face dessa autoridade decadente seria precipitada, e esse é um dos pontos de Psicologia de Grupo, porque o que se segue à derrubada dos reis e ao declínio da autoridade simbólica não é somente a disseminação alegre da democracia triunfante, mas sim a emergência do lado negro do pai simbólico, cujo nome psicanalítico é superego. Esse governo é mais intransigente, muito mais difícil de se resistir. Lacan, que era exímio criador de slogans, forjou um que resume bem esse impasse: Pére ou pire, “pai ou pior”. O poder patriarcal era ruim, mas o que estamos enfrentando após sua derrocada é ainda pior. Tudo isso fornece a Freud um pano de fundo histórico que ele sempre evitou, intencionalmente ou não, mas que jamais lhe impediu de trabalhar essas questões de maneira extraordinariamente perspicaz e lúcida, indo muito além daqueles que erguem a bandeira da historicidade e historicização.

Para voltar a Psicologia de Grupo, penso que a leitura espontânea que toma a família como o núcleo secreto do social está enviesada, embora Freud, como sempre, ofereça várias ocasiões para entendimentos equivocados. Devemos levar a sugestão de uma implicação mútua mais a sério – isto é, não no sentido de uma implicação unilateral, em que somente o familial implique o social e os laços artificiais, mas uma em que, ao mesmo tempo, os laços sociais, artificiais, joguem luz sobre a família, sobre algo na família que não é nem familial nem familiar. O inconsciente não é individual nem coletivo – um inconsciente individual depende de uma estrutura social, enquanto um inconsciente coletivo exigiria uma coletividade definida, uma comunidade a que ele pertenceria – mas uma tal comunidade pré-estabelecida não existe. O inconsciente “acontece” exatamente entre os dois, no estabelecimento mesmo de laços entre um indivíduo (tornando-se um sujeito) e um grupo a que ele(a) pertence. Estritamente, não existe inconsciente individual nem coletivo; o inconsciente intervém na intersecção entre os dois. Mas qual é a natureza desse inconsciente?

Freud opõe dois tipos de massas: há, de um lado, o que ele chama de massas artificiais, exemplificadas pelo exército e pela igreja (poderíamos dizer os aparatos repressivo e ideológico do estado, respectivamente, para usar gramática althusseriana, embora Freud jamais tenha proposta qualquer teoria do Estado, como aponta Hans Kelsen num diálogo bastante interessante que apareceu na revista Imago, em 1922).[10] Elas são estáveis; asseguram a permanência e reprodução de certos laços sociais bem como de certas ideias; inserem os sujeitos numa hierarquia fixa, prescreve-lhes certas funções sociais, põe cada qual no seu lugar; elas representam a ordem. De outro lado, estão as massas das quais trata Le Bon (um diálogo com Gustave Le Bon foi o ponto de partida de Freud), as que agem mais como hordas e implicam uma perda de individualidade, o abandono da vontade própria, do juízo crítico e de padrões éticos, um impulso em direção a objetivos imediatos e à gratificação instantânea, o alto grau de sugestionabilidade, o contágio de sentimentos, a intolerância e a obediência à autoridade misteriosa do líder. Aquisições civilizacionais são rapidamente descartadas, a massa parece uma regressão a um estágio bárbaro primitivo, supostamente do passado filogenético do homem, uma fase ancestral incivilizada que atestaria uma raiz inconsciente ou, mais ainda, uma reedição da horda primeva. Ambas partilham, em última instância, da mesma característica estrutural básica da massa, i.e., a de ser  “um número de indivíduos que puseram o mesmo objeto no lugar de seu ego ideal e consequentemente identificaram-se uns com os outros em seu ego.” (PFL, 12, p. 147). Mas elas o fazem de maneiras radicalmente diferentes: a massa artificial sustenta laços sociais, assegura sua permanência e estabilidade e permite que floresça individualidade em seu interior, enquanto a massa “primeva” desmancha os laços sociais: ela é efêmera e pode se desintegrar a qualquer momento; ela retira a individualidade de seus membros. A primeira representa a durabilidade e solidez dos laços sociais, a segunda seu desfazimento e, ao desfazê-los, substitui-os com vínculos primitivos, um resquício da horda primeva e sua completa submissão ao pai primordial de quem o líder empresta seus traços carismáticos. (Daí a importância da hipnose, esse “vanishing mediator”, a paradoxal “massa do dois”, Masse zu zweit, a forma incipiente da formação de massas).

Qual é a relação entre as duas? “Os grupos efêmeros e barulhentos… como que se sobrepõe aos outros,” escreve Freud (PFL, 12, p.161). O efêmero se sobrepõe ao permanente e ao duradouro, o desfazimento de laços se sobrepõe aos laços constituídos, a horda se sobrepõe à civilização. Mas não deveríamos ler esse fenômeno como uma relação estrutural ao invés de uma regressão temporária a uma espécie de estágio primitivo? Os dois não estariam estruturalmente unidos? E mesmo que se use o termo regressão, como o faz Freud, não seria uma das lições da Psicanálise exatamente que não existe uma tal coisa como a regressão? Porque uma regressão não volta a um ponto anterior, uma vez que o aparente retorno é sempre uma resposta a um impasse presente – de modo que o ponto anterior a que se retorna é totalmente mediado pelo presente do qual se regressou e pertence, portanto, à constelação presente. Assim, a massa primitiva, “primária,” é uma resposta a um impasse da massa artificial; ela representa seu lado oculto, o desmantelamento de sua constituição, seu funcionamento e sua reprodução. Ela atesta a precariedade dos laços estabelecidos, sua natureza conflitual, sua contingência. Ela é um sintoma. Ela apresenta a mesma estrutura (a colocação do mesmo objeto no lugar de ego ideal) mas de maneira escancarada, que expõe as premissas do laço “normal”. O correto seria, portanto, o oposto da leitura espontânea: é a massa primária que é derivada da artificial, embora possa parecer retrospectivamente que a primeira esteve na origem da segunda.

A oposição entre os laços estruturais e permanentes das massas artificiais e seu desmanche, ainda que efêmero, nas massas primevas, é o espaço mesmo da política, uma das maneiras de se enxergá-la. Chegamos, através de um caminho diferente, ao mesmo ponto, o da dissolução dos laços sociais estabelecidos como inerente a sua sutura, que é o que abre o espaço da política. Não da política entendida como arranjo de poder ou como as relações dos indivíduos com a comunidade, como a melhor maneira de governar o estado e as instituições, ou ainda como a questão chave da filosofia política tradicional “o que deve ser um bom governo?,” [11] mas da política como o deslocamento das entidades sociais existentes, como uma mudança no terreno que sustenta as relações existentes.

Freud, é claro, vê a emergência das massas “primevas” com certo horror. Ele não as vê exatamente sob a perspectiva do slogan de 68 “Ce sont les masses qui font l´histoire,” para dizer o mínimo. Essas massas não fazem história; elas a desfazem. Há um quê de desprezo pelas multidões nessa visão, uma visão de peso e de longa tradição no Iluminismo. Nunca ocorre ao pai da psicanálise vê-las como as massas revolucionárias que poderiam fazer surgir uma esperança de mudança, de transformação política, do fim da dominação, da eliminação das injustiças sociais, da hierarquia e falta de liberdade das massas artificiais. Pelo contrário, elas lhe parecem uma regressão à forma mais brutal de dominação, o reflexo do pai primordial e da horda primeva, o desmoronamento de todas as conquistas da civilização. Freud enxerga as massas primevas como exemplos supremos do retorno do recalcado, em que o recalcado não é a luta por liberdade mas uma tendência à submissão arcaica, a tentação da perda da individualidade, da gratificação instantânea, da promessa de espólios baseada num líder que, através de seu autoritarismo, pode desfazer a validade das regras existentes. A massa primeva é como o estado de exceção de que fala Giorgio Agamben; ela introduz um líder que é capaz de suspender a lei, algo que aponta para os paradoxos muito modernos e sinistros da soberania. O impulso do gozo imediato contém, por outro lado, todas as características da injunção superegóica ao gozo, isto é, um comando para gozar sob os auspícios da submissão ao pai arcaico. O que se opõe às presentes instituições hierárquicas como o exército e a igreja, por mais autoritárias que sejam, é um governo sem limites – governo do superego? Então mesmo o exército e a igreja, odiados por Freud – particularmente a segunda – aparecem como representantes da civilização nessa comparação, seu autoritarismo mitigado sendo preferível à ditadura do pai primevo. Pode-se descrever a oposição entre as duas em termos do pai simbólico, a autoridade simbólica que sustenta o exército e a igreja, e o governo do superego, o lado negro do Nome do Pai, que dá suporte à massa. E podemos ver nisso não uma regressão a um estágio arcaico, mas sim uma pista para entender a modernidade, algo que pode jogar nova luz sobre a sugestão de que vivemos numa “sociedade de massas,” algo a ser ligado à derrocada do pai simbólico e à nova ditadura do superego, celebrada como um feito da democracia.

Mas certamente a lição sombria que Freud extrai desse fenômeno não é a única conclusão possível. Ela retira a ambiguidade do processo que descreve, e é precisamente essa ambiguidade que aponta para a política. Há novamente um risco de se estabelecer uma dualidade, em que as massas artificias apareceriam como os garantidores da estabilidade e do progresso, sendo a nossa melhor esperança para uma existência social ordenada, enquanto as massas caóticas seriam as valas negras da regressão, desintegração e desarranjo, sob a égide da autoridade primeva. Mas ambos os termos dessa oposição são ambíguos: se as massas primevas são o sintoma das massas artificiais, elas trazem à luz seu conflito secreto, a repressão a cujo preço a última se estabeleceu. Por outro lado, a emergência de massas primárias também possui um efeito de levantar a repressão (levantar a repressão não é uma das metas que Freud atribui à psicanálise?). Não poderíamos dizer que, junto com a regressão, há também um potencial de liberação e emancipação nesse fenômeno, muito embora ele contenha ao mesmo tempo um grande risco de se cair na mais brutal ditadura? Sem dúvida não devemos opor à visão sombria de Freud um mundo de fantasia, o idílio das massas revolucionárias aspirando à liberdade, rompendo seus grilhões e instituindo uma democracia direta, livres das redes de dominação. Mas há um momento de ambivalência no desfazer dos laços sociais que Freud chama de massa, que pode ir em qualquer direção, nem descambando necessariamente no pai primordial nem simplesmente acabando no reino da nova liberdade e da “democracia radical” – e é esse momento de ambivalência que é o local da sutura política, do ponto a ser dado, o espaço onde o point de capiton deve intervir. As “massas” não fazem história pela simples razão de que não são agentes políticos, mas sim o local de uma intervenção política.

Podemos ver que todas as três linhas de investigação formam uma intersecção num determinado ponto, embora cheguem até lá de maneiras muito diferentes. Esse ponto recebeu vários nomes: conflitualidade, antagonismo, fissura, um rasgo no tecido social, um excesso, o ponto de ambivalência, o desfazimento de laços sociais, a negatividade. Essa questão percorre toda a obra freudiana; pode-se detectá-la em diferentes contextos e sob a máscara de diferentes conceitos. Pode-se vê-la na natureza conflitual das instituições psicanalíticas; como designada pela pulsão de morte ou pelo que Freud chama de massa primeva. Esses termos e essas três abordagens têm diferentes impactos e ramificações, mas tenho tentando destacar um núcleo em torno do qual elas gravitam, seu solo comum. E esse núcleo, segundo minha tese, deve ser concebido como local da política, ubiquamente inerente na obra de Freud. Mas designar esse local não equivale a estabelecer uma política, assumir uma linha política, fazer um ato político – algo que Freud sempre se absteve cuidadosamente de fazer. É como se a psicanálise circunscrevesse um local, um locus da política, sem jamais adentrá-lo. É como se ela descrevesse e dissecasse o espaço da política sem jamais se envolver com política; ela apresenta o material de que é feita a política sem fazer política dele. Eu ainda iria além e afirmaria que a psicanálise e a política compartilham o mesmo terreno; elas partilham da mesma condição mas a tratam de maneira diferente. Elas diferem no modo pelo qual se relacionam a ela. O núcleo comum que as une é ao mesmo tempo o ponto de sua disjunção.

A disjunção não é aqui entre “teoria” e “prática”, porque a psicanálise implica uma prática própria, uma prática que é sempre e inescapavelmente social, embora baseada no um-a-um e não na coletividade; e a política sempre implica também uma teoria. Uma maneira de pensar essa disjunção seria a seguinte: se a psicanálise se abstém de dar um passo, de decidir a ambivalência, de cobrir a fissura, de propor um novo laço ao sem-laço, se falta um passo lá onde um passo teria que ser dado, então a política dá um passo exagerado. A política decide a ambiguidade, propõe um novo laço; ela implica o que Badiou chama de fidelidade ao evento, uma posição subjetiva, um processo de verdade sem garantia, uma transformação. Ela torna a condição negativa um projeto positivo, um movimento, um partido, uma militância. Ela propõe um novo significante mestre, mesmo estando perfeitamente ciente de sua contingência. Ao fazê-lo, sem dúvida, ela obscurece a fissura; contorna a contingência e a ambiguidade; representa o irrepresentável – isto é, representa-o equivocamente; mas esse é o preço a pagar por esse passo. Do outro lado, a psicanálise não é simplesmente apolítica; na verdade, a circunscrição do local da política é algo que demanda uma política, um engajamento com aquele local, um passo exagerado, embora somente se possa dá-lo ao preço de ingressar numa lógica alheia à psicanálise. A circunscrição desse local não é uma descrição neutra; ela exige um passo, embora não prescreva ela própria o que esse passo deveria ser.

Outra maneira de conceber a disjunção entre política e psicanálise implica reconhecer que a psicanálise na verdade lida com a massa, mas somente em seu núcleo – isto é, no ponto de Masse zu zweit, a massa do dois, o ponto do “vanishing mediator” da hipnose, a conexão faltante que Freud interpõe entre o fenômeno do amor e a formação de massa. O “vanishing mediator” faz um retorno vingativo, uma vez que a própria psicanálise pode ser definida como reencenação da massa do dois. Esse é seu terreno, mas a questão é justamente desfazer o que foi unido pela hipnose – isto é, dissolver a amálgama do eu ideal e do objeto que foi colocado em seu lugar. É nos seguintes termos que Lacan descreve a missão da psicanálise, nas últimas páginas do seminário sobre os quatro conceitos fundamentais: “Agora, como todos sabem, foi diferenciando-se da hipnose que a psicanálise se estabeleceu. Porque o motor da operação analítica é a manutenção da distância entre o Eu – identificação – e o a (o objeto)… ela isola o a, colocando-o à maior distância possível do Eu… “ [12] A análise precisa desfazer o nó em que se baseia a massa; ela desmonta a massa em seu núcleo. Mas a política tem que reestabelecer a ligação entre os dois, por sua conta e risco, sem prescrição nem garantia.

Em seu seminário sobre a ética da psicanálise, Lacan a certa altura discute a relação entre psicanálise e ação moral, e faz a seguinte afirmação genérica: “pode ser que a análise nos prepare (para a ação moral), mas no fim das contas ela nos deixa a sua porta… Por que ela pára nesse limiar?… os limites éticos da psicanálise coincidem com os limites de sua prática. Sua prática é apenas um prelúdio para a ação moral em si… “[13] Não se poderia dizer algo análogo da política? A análise pára num limiar – ela não pode ultrapassá-lo sem deixar de ser psicanálise – mas circunscreve um locus em que esse passo deveria ser dado; mas essa circunscrição é ela mesma um gesto político, uma abertura política, a abertura de uma porta através da qual devemos dar um passo.

Suponho que poderíamos descrever a relação entre psicanálise e política com o termo usado por Slavoj Zizek, a visão em paralaxe: uma perspectiva cambiante entre dois pontos de vista diferentes, entre os quais não há síntese ou mediação possível. Pode-se apenas ver um ou outro, embora se esteja olhando para a mesma coisa. Esses pontos de vista podem ser dois lados do mesmo objeto, mas jamais se encontrarão no mesmo nível; não há um espaço comum neutro; há uma não-relação, que no entanto os conecta. Há uma fenda paralática. Talvez essa metáfora, esse modelo, não seja uma maneira ruim de conceber como a psicanálise e a política estão juntas sem nunca convergir. E não é verdade que tudo é político. Trata-se do oposto: a política é rara. É algo muito escasso, assim como a psicanálise.


  1. The Ori­gins of Psy­cho­ana­lys­is. Let­ters to Wil­helm Fliess, New York: Basic Books, 1977, p. 253.
  2. Quando, alguns anos depois, em 1900, Freud publicou seu primeiro grande livro, A Interpretação dos Sonhos, ele inscreveu no fronstispício o lema de Eneida, de Virgílio: Flectere si nequeo super­os, Acheronta move­bo: “Se não posso dobrar os deuses de cima, moverei o Acheronte”. Podemos conjeturar que na escolha desse lema encontra-se o eco do episódio esloveno. As citações de Freud são da The Pel­ic­an Freud Lib­rary (PFL), 15 vols., Har­mondsworth etc.: Pen­guin, 1973-1986.
  3. Ver, e.g., seu Con­stats, Par­is: Gal­li­mard, 2002.
  4. Ver Alain Badi­ou, Infin­ite Thought, London/New York: Con­tinuum, 2004, pp. 80-2.
  5. “Pro­pos­i­tion du 9 octo­bre 1967”, primeira versão, Ana­lyt­ica 8, Par­is 1978, p. 8.
  6. “Sur Marx et Freud”, em Écrits sur la psychana­lyse, Par­is: Stock/IMEC, 1993, pp. 222-245.
  7. A Voice and Noth­ing More, Cam­bridge (Mass.): MIT, 2005, pp. 91-5.
  8. O próprio Freud tacita e sem-cerimoniosamente subscreve a uma equivalência entre os dois quando, em O Futuro de uma Ilusão, ele fala da dualidade entre Logos e Ananke (baseando-se em Multatuli, PFL 12, p.238), e, alguns anos depois, em Mal-Estar na Civilização, sobre a dualidade de Eros e Ananke (p.290). Qual seria então a relação entre Eros e Logos, dado que são ambos estruturalmente opostos a Ananke, à necessidade, ao destino?
  9. Etien­ne Balibar, La crain­te des masses, Par­is: Galilée, 1997, p. 337.
  10. Cf. a tradução francesa: Hans Kelsen, “La notion d’État et la psy­cho­lo­gie sociale”, em Masses et poli­tique, Par­is: CNRS, 1988.
  11. Cf. A diretriz de Rancière de que “a política não é uma questão de laços entre indivíduos e das relações entre indivíduos e a comunidade, mas advém da soma das “partes” da comunidade, que é sempre uma falsa soma, uma dupla soma ou uma soma  equivocada.” (La mésen­ten­te, Par­is: Galilée, 1995, p. 25). Trata-se de um excelente ponto de partida que eu não posso desenvolver aqui mais extensamente.
  12. The Four Fun­da­ment­al Con­cepts of Psy­cho­ana­lys­is, Lon­don: Pen­guin 1979, p. 273.
  13. L’éthique de la psychana­lyse, Par­is: Seuil 1986, p. 30.
  14. Ver Sla­voj Žižek, The Par­al­lax View, Cam­bridge (Mass.): MIT 200

    Mladen Dolar é Pesquisador Sênior do Departamento de Filosofia da Universidade de Luibliana.

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