Fotos, símbolos e caricaturas

Por Saul Leblon.

É verdade que os símbolos tem um peso crucial na política, mas os símbolos não contam toda a verdade da política. Não raro ofuscam o discernimento num reducionismo que acaba por comprometer a força, o fôlego e a credibilidade da mensagem que se pretendia condensar. Muitos gostariam que a foto polêmica em que Lula e Haddad posam ao lado de Maluf simbolizasse a essência daquilo que o PT, Lula e Maluf representam para a história política brasileira. Uma gigantesca engrenagem foi posta a serviço dessa tese.

A pesquisa do DataFolha faz parte desse mutirão. Egos foram atiçados. Durante dois dias seguidos, após a divulgação da polêmica fotografia, martelou-se a sentença irrecorrível: a imagem era o ultra-som de uma degeneração incorrigível que destruía por dentro o principal partido progressista brasileiro e sua liderança máxima. Uma técnica usual na mídia consiste em blindar ‘denúncias’ contra qualquer arguição vitaminando-as através de uma implacável imersão da opinião pública em declarações reiterativas.

No caso da foto, o esforço anestesiante ganhou um reforço imediato de grande impacto: a deputada Luiza Erundina, ela mesma um símbolo de retidão e dignidade na política, reagiu à pressão do rolo compressor renunciando ao posto de vice na candidatura Haddad à prefeitura de São Paulo. Seu gesto e sucessivas declarações a uma mídia sequiosa foram incorporados à espiral condenatória dando-lhe um torque quase irrespondível durante as primeiras 48 horas pós ‘flagrante fotográfico’.

Aos poucos, porém, surgiram fissuras. O PT e Lula estão presentes na história e no imaginário do país há quatro décadas. Ambos são filhos do capitalismo brasileiro, cuja principal singularidade foi assentar a supremacia de uma elite indigente na mais desigual estrutura de distribuição de renda (e de poder) existente no planeta. O PT decidiu e conseguiu assumir o governo dessa sociedade com a promessa de transformá-la.

O compromisso de torná-la mais justa, inclusiva e democrática, dentro dos marcos institucionais disponíveis (o que não o exime de ampliá-los, por exemplo, no acesso à comunicação) levou-o a mergulhar no moedor de carne de concessões e recuos impostos pela exigência da governabilidade, ao preço, entre outros, de um certo grau de desfiguramento orgânico e partidário. Ainda assim, o partido obteve um voto de confiança das grandes maiorias para testar a sua aposta em 2002, 2006 e 2010.

Há resultados eloquentes que explicam a renovação desse pacto eleitoral. São avanços conhecidos, alguns, objeto de controvérsia quanto à consistência estrutural; outros, ainda por demais tímidos para reverter desequilíbrios aterradores, como o acesso e a qualidade da saúde e da escola pública. Mas a percepção vivenciada e majoritária da população concede a Lula e ao PT que o Brasil é hoje, após 10 anos sob seu comando, o país menos desigual da sua história de 500 e poucos anos –380 dos quais em regime de senzala e casa-grande. O recuo da taxa de pobreza no país, de fato, foi notável nesse período: uma redução da ordem de 15 pontos percentuais, caindo de 39% da população, em 1999, no fim do segundo governo tucano, para 23,9%, em 2009, no crepúsculo do ciclo Lula. A renda domiciliar per capita dos 10% mais pobres cresceu 7% entre 2001 e 2009; o aumento entre os 10% mais ricos foi de apenas 1,5% no mesmo período. Tuso somado, 30 milhões de brasileiros deixaram a pobreza brava nesse período.

Teve um custo. Não se espere querubins egressos dessa descida ao inferno implícita numa aposta de transformação progressiva da senzala em cidadania, sem ruptura abrupta com a casa-grande. O desfibramento intrínseco da militância a partir dessa experiência, ancorada mais em eleições e acordos de cúpula do que em mobilizações –exceto nos momentos críticos– produziu um legado de paradoxos de custo histórico ainda não totalmente mensurável. Inclui-se nessa contabilidade de perdas e danos, por exemplo, a esquizofrênica dualidade de um PT que defende a democracia participativa , mas tem dificuldade de vivenciá-la internamente.

É preciso, porém, afastar os maniqueísmos religiosos ancorados em símbolos fáceis e falsos. Nenhum partido de esquerda passou pelo teste do poder sem manchar sua história. Qualquer aparelho de Estado está organizado para dinamitar projetos que afrontem a lógica dominante e premiar, em contrapartida, políticas ‘amigáveis e quadros ‘complacentes’. Lula deixou oito anos de Presidência com 80% de apoio popular, marca inédita, exceto talvez se comparada à catarse em torno de Vargas, após o suicídio em 1954.

O PT , sim, o partido desfibrado, burocratizado, cuja vida interna e inquietação intelectual às vezes lembram o eletrocardiograma de um morto, é o preferido por cerca de 1/3 dos brasileiros — tem 28% das preferências; o PMDB vem em seguida com 6%; o PSDB, apesar da superexposição que a Folha –e o DataFolha– lhe concede de forma isenta, obtém ralos 5% da aceitação.Os dados, de um levantamento recente feito pela Vox Populi, indicam ainda que 70% dos brasileiros enxergam no PT um partido moderno e comprometido com os pobres; 66% veem nele um partido que busca políticas que atendam ao interesse da maioria da população (apenas 16% discordam disso e enxergam no PT a força ultrapassada, ‘degenerada’, que as perguntas do DataFolha desta 4ª feira buscam induzir).

Voltemos assim à fotografia polêmica martelada durante 48 horas, com o apoio reiterativo da sempre digna deputada e socialista Luiza Erundina, que ajudou a dar à imagem a dimensão de um testamento ejetado do fundo da cova petista.

A esférica blindagem em torno dessa tese, um lacre necessário à sedimentação do símbolo decaído, enfrentou, após o desconcerto inicial, uma avalanche de fissuras em blogs e sites progressistas (leia por exemplo a enquete realizada pelo blog do Emir, nesta pág). O que se constatou, então, é que a aliança com o PP, embora questionada na forma, não fora percebida como uma renúncia ao espaço ocupado pelo PT na história brasileira. Mais que isso. Embora a contragosto, a mídia foi obrigada também a reconhecer certas nuances entre o ‘símbolo definitivo’ que saboreou com gula inicial e a visão da própria deputada Luiza Erundina. Passado o gesto abrupto, ela tirou uma a uma as escoras da versão que ajudou a construir. Talvez mais atenta ao uso de sua credibilidade, matizou em divergência de forma uma reprovação que não se estendia nem ao candidato,nem a campanha e tampouco à aliança com o PP.

Erundina, a exemplo dos 70% que enxergam no PT e em Lula referências antagônicas às forças e projetos que acompanham Paulo Maluf, sabe que ambos são imiscíveis historicamente, ainda que interações secundárias possam ocorrer no jogo eleitoral. Erundina sabe, ademais, que Lula não trocou a sua história por 90 segundos, como regurgitam os editoriais. Lula foi em busca de um fator essencial a um candidato ainda desconhecido por 55% dos eleitores de São Paulo. E não só para adicionar 90 segundos, mas para evitar que esses 90′ fossem para o candidato Serra, que ficou irritadíssimo com Alckmin por ter ‘deixado escapar o Maluf’,como confidenciou ao Terra Magazine um tucano capa preta menos hipócrita.

Lula raciocinou com base na matemática dos confrontos diretos: “tirar 90′ do Serra e acrescentar 90′ a Haddad significa virar 3 minutos”. Foi isso. “Virar 3 minutos” em troca de um cargo subalterno no plano federal, sob o comando rígido de Dilma Rousseff. “Não muda uma vírgula”, disse o secretário geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, “na hegemonia da aliança. Tampouco no programa de Haddad para São Paulo”. Justiça seja feita, a recíproca é verdadeira e significativa: a foto não reflete igualmente o presente, o passado ou o futuro do próprio Maluf que –os críticos da aliança afirmam, com razão–, continua sendo quem sempre foi. Seria esse diagnóstico válido apenas
a um dos lados da equação?

A imagem, na verdade, é caricata; acentua aspectos reais do jogo eleitoral ao qual o PT aderiu há mais de três décadas– com os resultados medidos pela pesquisa Vox Populi. Mas não tem a força simbólica que o dispositivo midiático conservador pretende atribuir-lhe para jogar a pá de cal da ‘desilusão’ petista que o DataFolha busca agora colher com o senso de oportunidade que o engajamento conhecido desvela em oportunismo.

A ante-sala do julgamento do chamado ‘mensalão’ — empurrado em rítmo paraguaio pela mídia conservadora para coincidir com a campanha municipal deste ano– explica em boa parte esse esforço de reportagem em torno de uma fotografia de dimensões elásticas. Uma, pouco destacada, é que ela acrescenta ao PT 90 segundos de fôlego para se defender de uma previsível identidade narrativa, a emendar o noticiário do Jornal Nacional sobre o julgamento do ‘mensalão’ e a campanha tucana na TV. É esse esforço de vida ou morte para não perder São Paulo e não enterrar Serra na urna de mais uma derrota para o partido de Lula, que deu à imagem a densidade de um símbolo de significado incontestável, que ela de fato não tem.

Fonte: http://cartamaior.com.br

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