Florianópolis: Sob ataque e sem controle

Por Fernando Evangelista.

Até a noite de segunda-feira, 19 de novembro, os números dos ataques criminosos em Santa Catarina eram os seguintes: 27 ônibus incendiados, 12 carros destruídos e 16 danificados, 10 ocorrências de tiros contra órgãos da Segurança Pública, 48 suspeitos presos e três pessoas mortas.  Foram 65 ataques em apenas seis dias.

Diante de tanta violência, o mais assustador é a flagrante falta de preparo das forças de segurança. Não há uma central de inteligência digna deste nome. Não há preocupação para se entender, com atenção e responsabilidade, as razões dos atentados iniciados na madrugada de 12 de novembro.

As primeiras evidências indicam que as ordens partiram da Penitenciária de São Pedro de Alcântara, localizada a 32 quilômetros da Capital, e seriam motivadas pelas torturas praticadas por policiais contra os presos.

Perdidos na noite

Após os primeiros ônibus queimados, o governador Raimundo Colombo (PSD) classificou a situação como “atos isolados” e garantiu que estava “tudo sob controle”, descartando ajuda do Governo Federal. Algumas madrugadas depois, com a polícia levando um baile dos bandidos, o discurso oficial já admitia tratar-se de ações coordenadas e amplas.

Questionado por uma repórter do Diário Catarinense sobre a mudança de opinião, o governador disse: “passou o susto”.

E é este o problema: as ações de segurança são sempre reações, pensadas de susto em susto. E no meio do caos vai a população, de terço nas mãos, rezando para que nenhuma bala perdida cruze seu caminho.

Dados da incompetência

Santa Catarina é o Estado brasileiro onde mais cresce o número de homicídios. De acordo com o Anuário do Fórum Nacional de Segurança Pública, divulgado no começo deste mês, os assassinatos no Estado aumentaram 44,8% em comparação ao ano anterior. São 11,7 homicídios por 100 mil habitantes.

A Organização Mundial de Saúde considera 10 homicídios por 100 mil habitantes como o máximo aceitável. Acima disso, o problema é epidêmico. Onde vamos parar?

“Garantir a segurança total das pessoas, só Deus”, justificou o coronel Nazareno Marcineiro, comandante da PM catarinense, em entrevista à RBS TV. Obviamente, ninguém pode exigir do coronel ou do Secretário de Segurança Pública, César Grubba, segurança total. Mas se exige – porque é um direito – que o Estado cumpra seu dever. Como ele não cumpre, haja reza.

Importante funcionário da área da segurança, em entrevista à rádio CBN, afirmou que os métodos de repressão utilizados contra presos eram os mesmos utilizados contra manifestantes e grevistas. E a pergunta que deveria ser feita é: mas, afinal, como são tratados os movimentos sociais em Santa Catarina?

Dois exemplos

Em 31 de maio de 2005, durante as manifestações contra o aumento da tarifa do transporte coletivo, o cinegrafista Alex Antunes flagrou um policial militar espancando um estudante em plena Beira-Mar Norte, região nobre de Florianópolis. A cena correu o Brasil e venceu o Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos daquele ano. O policial fora da lei foi promovido.

Exatamente cinco anos depois, em 31 de maio de 2010, a Polícia Militar invadiu a Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), em Florianópolis, para prender estudantes que protestavam contra o aumento da tarifa.

Com armas de choque e spray de pimenta, o Grupo de Resposta Tática (GRT) entrou no Campus, agredindo quem lhe cruzasse o caminho. Alguns estudantes foram detidos. Quem ousou registrar em vídeo a invasão também foi atingido pelos choques e ameaçado pelos militares.

O então Secretário Estadual de Segurança Pública, André Luis Mendes da Silveira, em entrevista à jornalista Juliana Kroeger, analisou a ação da PM de maneira bastante original: “Os choques são justificáveis para conter movimentos sociais porque é melhor levar um choque do que uma paulada de cassetete na cabeça, que pode causar um traumatismo craniano”.

Na ocasião, o Tenente-Coronel Newton Ramlow, um dos homens encarregados pelo governador para acabar com a recente onda de ataques, também questionado sobre as denúncias de abuso de poder contra estudantes, afirmou: “Isso é uma lição, assim como o pai dá uma palmada na bunda da criança. Fizemos isso pra ver se eles (os estudantes) se tocam”.

Torturas

A Penitenciária de São Pedro de Alcântara, pivô da atual crise, foi notícia nacional em 2009, quando o Fantástico divulgou cenas horripilantes de tortura. O diretor foi exonerado, mas os agentes prisionais envolvidos não perderam o emprego. Ou seja, continuaram lá, provavelmente agindo da mesma maneira.

Um ano depois, também na Grande Florianópolis, quem virou notícia foi o Centro Educacional São Lucas. Descobriu-se no local um “porão de torturas”, onde jovens infratores eram submetidos a choques elétricos. Até 2007, cinco menores morriam por ano dentro da Instituição. “Suicídio”, justificavam as autoridades. A Justiça ordenou que o Centro fosse interditado e em seguida demolido.

Cesare Beccaria, pensador milanês, um dos pais do Direito Penal moderno, escreveu: “a tortura é o meio mais seguro de absolver os criminosos robustos e condenar fracos inocentes”.  Sua obra Dos Delitos e das Penas, que influenciou a legislação de vários países, foi publicada em 1764.

A ONU, em 1948, estabeleceu que a tortura é uma grave violação dos Direitos Humanos. Está em nossa Constituição, está na Declaração Universal dos Direitos do Homem: não há justificativa para a tortura. Um país que se considera civilizado não pode aceitar esse tipo de crime. Uma população que exige paz tem obrigação moral de se insurgir contra tais práticas.

Escola do ódio

A ideia de que se combate a barbárie com mais barbárie não funciona. A Lei de Talião, do “olho por olho, dente por dente”, é escancaradamente ineficaz, além de perigosa. Mas em situações como esta, apoiados por uma classe média egoísta e alienada, os fanáticos sedentos de sangue e vingança saem do armário, estimulando aquilo que dizem combater.

Se alguém nutre alguma dúvida sobre o tratamento dispensando aos presos, pergunte ao Delegado Renato Hendges. Ele afirmou à rádio CBN: “a culpa por esta situação é do sistema prisional de Santa Catarina, superlotado e onde seres humanos são tratados como bichos”. Mais ou menos o que disse o Ministro da Justiça há alguns dias.

As condições degradantes das prisões, aliada à punição vingativa dos agentes do Estado  contra o preso, têm e terão reflexos para a sociedade. A fúria acumulada pela humilhação física e psicológica vai, cedo ou tarde, sobrar para alguém. O diabo é que sobra quase sempre para quem não têm nada com isso.

Sobra, inclusive, para o policial militar que precisa obedecer a chefes incompetentes e enfrentar bandidos mais bem armados do que ele. Se o Governo estivesse realmente empenhado em melhorar a segurança das pessoas, a primeira coisa a ser feita seria punir os militares que agem fora da lei e oferecer um salário digno aos policiais da base da hierarquia.

Outra medida seria aumentar o efetivo da PM. Como revelam os presidentes da Associação dos Oficiais da Polícia Militar, coronel Harry Schauffert, e dos Praças, deputado Amauri Soares (PDT), Santa Catarina tem, hoje, menos policiais do que tinha na década de 1980.

Pra lá de Bagdá

Estive no Iraque em junho de 2003, pouco depois da invasão norte-americana, e uma das primeiras pessoas que entrevistei foi um engenheiro civil, sujeito simpático e inteligente. Estávamos no centro de Bagdá, rodeados de soldados, tanques e helicópteros. No fim da entrevista, ele quis saber de onde eu era:

– Do Brasil – digo.

E então ele me pega pelo braço e, com sincera preocupação, pergunta:

– Mas você não tem medo de morar no Brasil? Não é muito violento?

“Pelas barbas do profeta”, eu penso, “estamos pior do que imaginava”. Se um iraquiano mostra-se preocupado com a nossa segurança é porque a coisa está realmente feia.

Esse fato sempre me pareceu engraçado, quase uma piada. Agora não parece mais. A preocupação do iraquiano começa a fazer todo sentido.

Fernando Evangelista, jornalista, é colunista do blog Nota de Rodapé. Os flagrantes de violência policial e as declarações estapafúrdias do Secretário e do Comandante estão no documentário Impasse, disponível gratuitamente na internet. (http://vimeo.com/35687989). Veja o trailer: http://vimeo.com/35687989.

1 COMENTÁRIO

  1. Q texto ordinário!!! Só para comentar uma coisa: “A fúria acumulada pela humilhação física e psicológica vai, cedo ou tarde, sobrar para alguém. O diabo é que sobra quase sempre para quem não têm nada com isso.”, quer dizer que o restante sociedade (menos os tais bandidos e os policiais) que aceita e deseja que as prisões existam é a parte que nada tem com isso? E mais boa parte desse restante da sociedade é sim favorável a tortura…

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