Florianópolis: É de ti de que se fala!

Por Marcel Soares de Souza.

Em 2009, num episódio cuja metáfora cítrica não poderia ser mais adequada, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) pôs abaixo razoável quantidade de pés de laranja da Cutrale, empresa sabidamente grileira naquele ramo carinhosamente batizado de “agrobusiness” (um certo tucanamento da expressão latifúndio).

A imagem chocou geral: de dondocas do “Cansei” aos zeladores dos bons costumes, passando por sinceros devotos de Santo Olavo, leitores da “Revista” Veja e membros insuspeitos da CNA e da UDR.

Tamanha brutalidade, violência e vandalismo, por óbvio, não deveriam ser minimamente tolerados pelo Estado Democrático de Direito — esse discursinho que tenta apagar o batom na cueca da formação social brasileira.

Cinco séculos de latifúndio, assassinatos de camponeses, condições escravagistas de trabalho e superexploração de mão-de-obra infantil no campo jamais causaram o assombro que provocou aquela violentíssima derrubada de laranjais.

A repercussão do laranjicídio operou mediante uma inversão fundamental em que a depredação de coisas (objetos, bens, valores) se sobrepõe à dimensão da violência e da opressão a pessoas.

E o que raios isso tem a ver com a situação de Florianópolis?

Apesar das inúmeras diferenças entre as conjunturas, essa inversão fundamental é a mesma.

Até o momento em que escrevo essas linhas, não há sequer feridos nos acontecimentos ocorridos em Florianópolis.

Uma coisa há, de concreto, contudo: os últimos dias trouxeram a lume denúncias de tortura e maus tratos nos presídios catarinenses, motivadas pela irresignação de familiares e militantes.

Nessa equação, entretanto, ônibus queimados chocam mais do que tortura, assim como pés de laranja ao chão valiam muito mais do que pessoas sem possibilidade de produzir suas existências (isso pra não entrar na recente tragédia Guarani-Kaiowá, entre tantas outras pelo Brasil).

Esses vaivéns nas relações entre pessoas e coisas estão, ainda que num olhar grosseiro, ligados a dois fenômenos já trabalhados por Marx e peculiares à nossa sociedade: reificação (relação entre coisas que oculta as relações subjacentes entre pessoas) e fetichismo (atributos humanos e mesmo mágicos concedidos às mercadorias).

Nem é preciso recordar o fato, bem conhecido de todos os juristas, que certos crimes contra o patrimônio podem merecer penas mais severas do que o estupro, numa espécie de malufização promovida pelo direito: “estupra, mas não rouba!”.

Os danos às coisas chocam mais que a violência às pessoas porque, nos dois casos de que aqui trato, simbolizam a ameaça também a duas abstrações que pretendem organizar a vida social – segurança pública e propriedade privada.

A ideia de segurança hoje em voga e a propriedade privada, contudo, não podem ser universalizadas sem contradição. Trocando em miúdos, são excludentes em essência, mantêm vigente uma cisão.

Enquanto isso, na Beverly Hills dos sem-lancha, o que mais se vê após duas noites de incineração automotiva, são caras preocupadas que se perguntam, incrédulas, como esses “surtos de violência” – até então exclusividade de outras praças – foram chegar logo aqui, fortaleza inexpugnável de riquinhos rasgando dinheiro e mandando espumante pelo ralo.

Aqui se alimentou a ilusão de viver em outro mundo. Beverly Hills é somente a mais recente e bocó versão disso que já foi “Sul Maravilha”, “Sul é meu país”, “Ilha-de-sei-lá-o-quê”, entre outras tolices…

É que não nos assustam os fatos de termos duzentos anos com meia dúzia de famílias mandando neste lugar, termos o massacre estampado em nosso nome, ostentarmos exclusão social brutal, abrigarmos um sistema prisional genocida, vivermos uma depredação ambiental desenfreada. Tampouco nos assusta possuirmos uma Universidade que é, em grande parte, parque de diversões da elite local e uma mídia que oculta o que de mais importante acontece com a mesma desenvoltura com que acoberta a investigação sobre o estupro cometido por membro de sua família-proprietária.

Se a sociedade que mantém tudo isso ainda de pé não consegue ver seu grau de responsabilidade, quem sabe esses ônibus queimando iluminem alguma coisa. Ou então, sou obrigado a concordar com a socialite vestida e branco e dourado: vivemos em outro mundo.

Marx advertiu aqueles que pretendiam ler sua principal obra, dizendo: “de te fabula narratur” (“é de ti que se fala”). Chegou a hora de dizer o mesmo a Florianópolis e ao Estado de Santa Catarina: é deles que estamos falando.

 Imagem: http://oquedeveserdito.wordpress.com/2010/06/16/

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