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Fé não deve ser posta à frente do debate, dizem religiosas sobre aborto

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Por Juliana Gonçalves e Helena Borges.

Quando se fala em aborto, a perspectiva religiosa costuma se sobrepor à da saúde pública. A posição de políticos que se identificam como religiosos é majoritariamente contra a legalização. No entanto, segundo a última Pesquisa Nacional de Aborto, mais da metade das mulheres que abortam são católicas ou evangélicas, justamente as religiões desses políticos que militam contra a interrupção legal da gravidez.

Grupos progressistas começam a se fortalecer dentro das religiões usando como principal bandeira a liberdade e a consciência individual. The Intercept Brasil falou com expoentes destes grupos; uma espírita, uma evangélica, uma umbandista e uma católica. Essas mulheres divergem na fé, mas apoiam uma causa comum: a legalização do aborto.A antropóloga Christina Vital da Cunha, autora do livro “Religião e Política”, afirma que há uma reação à imagem dos políticos identificados como religiosos entre as pessoas que compartilham da mesma fé:

“Em paralelo à grande expressão desse segmento extremista na política, vemos um segmento progressista disputando espaço e discursos nas religiões, fruto de uma geração que questiona isso tudo. Oferecem diferentes leituras, dentro do mundo moderno, sobre o que é ser religioso. Eles apresentam uma interpretação que possibilita, sob o ponto de vista da religião, a acolhida nesses momentos de dificuldade. Porque o aborto nunca é uma situação confortável.”

“Somos uma coletividade, mas a decisão é sua.”

Lúcia Xavier é candomblecista, ekedi do terreiro Ilê Omi Oju Arô, no Rio de Janeiro, e também coordena uma organização de mulheres negras chamada Criola. Ela explica que as religiões de matriz africana têm uma perspectiva de liberdade e responsabilidade individual, e que no candomblé não há um dogma em torno do aborto: “Cada situação será avaliada com Pai ou Mãe de Santo, e cada um poderá, então, encontrar solução para esse problema partindo do princípio de que a pessoa tem a liberdade de tomar as decisões sobre a sua vida”.

Xavier também conta que existem lideranças defendendo abertamente a legalização do aborto, o que representa um avanço na flexibilização dos líderes:

“Na nossa ação política, nós não saímos à frente com essa bandeira contra o aborto. O que saímos sempre é a favor dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos. E cada casa vai lidar com isso a partir da sua experiência. Isso é super importante, porque cada casa é uma nação e cada nação é um reino. E os pais de santo e as mães de santo compreendem cada vez mais que esses são aspectos da vida que precisam ser tratados, mas não necessariamente definidos como certo ou errado a partir dessa ótica. Nesse ponto, a perspectiva individual está presente. Somos uma coletividade, mas a decisão é sua. Há posicionamentos de ialorixás que são a favor do aborto e nenhuma delas foi discriminada. Ao contrário, continuaram participando das atividades. E, se você fez um aborto, ninguém vai te botar porta a fora. Ao contrário, vão te proteger, vão cuidar de você.”

Já a paulista Rosângela Talib é coordenadora executiva do grupo Católicas pelo Direito de Decidir. Ela conta que, apesar dos posicionamentos conservadores dos parlamentares que se identificam como católicos, o aborto não é um dogma na igreja católica e que o livre-arbítrio se sobrepõe nestes casos:

“Existem teólogos morais que defendem a possibilidade de a mulher decidir livremente sobre a sua maternidade. A gente tem o que se chama de teoria do probabilismo, está no magistério da igreja, que faculta aos fiéis a possibilidade de usar sua própria consciência para decidir, o seu livre-arbítrio. Não é uma instituição que vai poder dizer que elas estão certas ou erradas, é só a consciência. E, para aquelas fiéis que acreditam, é no juízo final que elas vão prestar conta. É Deus que vai dar a ela a possibilidade de saber se ela agiu certo ou errado. E nada, nenhuma instituição, nenhum homem, mesmo tendo um cargo institucional na igreja, pode se sobrepor à consciência do seu fiel. Sou eu e Deus. Não é possível que uma instituição possa se interpor entre a minha relação com o divino se, assim, eu acredito.”

“Me dei conta que não posso impor minhas crenças religiosas a outras mulheres”.

Juliana Grabois cresceu em uma família evangélica de pastores e missionários e congrega na Igreja Batista do Caminho, no Rio de Janeiro. Ela afirma que dentro da sua religiosidade não cabe julgar o que é certo ou errado para as pessoas:

“Nós cristãos definimos a vida como corpo e alma. Mas é difícil mensurar a partir de que momento o corpo passa a ter alma. Até porque a gente não estabeleceu apenas uma visão da bíblia, a bíblia tem várias interpretações, por isso, dentro do protestantismo, existem diferentes congregações. Na minha espiritualidade, eu não faria um aborto. Ao mesmo tempo, preciso assegurar a vida daquela mulher. As mulheres não são apenas ventre, elas têm uma vida para além daquilo.”

A vida das mulheres também fez com que Thaís Vinha, nascida em uma família kardecista, mudasse sua ideia quanto à descriminalização do aborto, até então baseada apenas nos ensinamentos da doutrina espírita:

“Mudei de ideia quando me dei conta que não posso impor minhas crenças religiosas a outras mulheres. Vivemos em um Estado laico. Mudei também quando vi dados oficiais que apontam para a redução no número de abortos nos países onde há a legalização. Outro motivo é que a proibição não impede o aborto – o Brasil continua sendo um país onde se aborta muito.”

“Tentaram me impor uma culpa e medo das consequências espirituais”.

Por irem contra a criminalização, estas mulheres acabam acabam sofrendo consequências dentro das comunidades religiosas das quais fazem parte. Grabois sentiu isso no convívio familiar: “Pelas coisas que falo e que posto nas redes sociais, recebo algumas mensagens dos parentes. Já ouvi muita coisa, o amigo de um amigo já falou até mesmo que eu deveria ter sido abortada. Hoje a minha família é um pouco afastada por conta do meu posicionamento político”.Segura de sua posição, Vinha também revela que sofreu retaliação de outros kardecistas por seu posicionamento:

“Há um consenso sobre a proibição do aborto no meio espírita. E é muito difícil questioná-lo. Depois que tornei pública minha posição, me acusaram de desconhecer a doutrina, tentaram me impor uma culpa e medo das consequências espirituais nessa e na outra vida, fui até acusada de não ser kardecista. Ao mesmo tempo, também recebi apoio de outros espíritas que revelaram pensar como eu. O que mostra que o tema incita dúvidas e deveria ser debatido nas casas espíritas de forma mais aberta para a divergência de opinião.”

“As pessoas continuam abortando e sofrendo risco.”

Independentemente do posicionamento dos grupos religiosos, a jovem evangélica Grabois sabe: “as pessoas continuam abortando e sofrendo risco”. A católica Talib concorda: “As pessoas exercem a sua liberdade, seu livre-arbítrio, independentemente do que as igrejas propõem”.

A candomblecista Xavier explica que não faz “defesa intransigente do aborto”, mas que defende o direito das mulheres. E que, a partir da decisão de dar seguimento ou não à gestação, que elas tenham total apoio:

“Somos a favor da legalização e a favor da descriminalização porque são as mulheres que pagam o pato sobre isso. Elas que são condenadas, elas que são maltratadas, elas que são responsabilizadas por um ato feito por duas pessoas. E, sobretudo, são elas que pagam, que carregam a culpa de algo que elas tomaram a decisão e que, por causa daquela situação de vulnerabilidade, passam a ser responsáveis por tudo o que acontecer daqui pra frente, inclusive se morrerem.”

Para Talib, o aborto não é uma decisão fácil, mas é também uma possibilidade de a mulher pensar sobre a sua vida e sobre a maternidade com responsabilidade. E, falando em responsabilidade, provoca: “A gente ouve muito é dizer: ‘ah, se ela não queria ter o filho, por que ela não se cuidou? Por que ela não se preveniu?’ E por que o homem não se preveniu? Uma gestação é responsabilidade de ambos: homens e mulheres”.

“São conservadores, ultraconservadores ou reacionários.”

Para a socióloga Maria José Rosado Nunes, coordenadora do Grupo de Pesquisa Gênero e Religião da PUC/SP, há parlamentares que fazem da religião parte de sua identidade política, mas isso não é comum a todos os políticos religiosos:

“O religioso não deixa de ser religioso quando sai de casa. Há uma distinção entre aqueles/aquelas que são simples fiéis, sem caráter militante, e os que formam uma bancada e atuam como elementos da religião. Esses são conservadores, ultraconservadores ou reacionários.”

No Congresso mais conservador eleito desde 1964, as bancadas evangélica e católica se unem quando o assunto é a descriminalização do aborto. Após a decisão do Supremo Tribunal Federal – STF, em novembro de 2016,  que revogou a prisão de cinco pessoas detidas em uma clínica clandestina, magistrados kardecistas fizeram coro.

“Nada justifica a liberação do aborto até o terceiro mês, quando os direitos do nascituro estão salvaguardados desde a concepção pelo ordenamento jurídico brasileiro”, alegam os parlamentares cristãos, em nota.

Em coro com evangélicos e católicos, a Federação Espírita do Brasil publicou um texto em que afirma que a vida se inicia a partir do momento da concepção. “Qual o primeiro de todos os direitos naturais do homem? – O de viver”, escreveu a organização, citando um trecho do Livro dos Espíritos, obra básica da doutrina de autoria de Allan Kardec.

Pena que nenhuma das organizações políticas supracitadas parece se dar ao trabalho de perguntar sobre os direitos das mulheres.


Fonte: The Intercept Brasil

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