Exportações estadounidenses, crises internas e o mito da Grande Potência

Por José Eustáquio Diniz Alves.

“Eu admiro aqueles que conseguem sorrir com os problemas, reunir forças na angústia, e ganhar coragem na reflexão. É coisa de pequenas mentes encolher-se, mas aquele
cujo coração é firme, e cuja consciência aprova sua conduta perseguirá
seus princípios até a morte”

Thomas Paine (1737-1809)

Os Estados Unidos da América (EUA) estão perdendo espaço na economia mundial e no comércio internacional. A economia dos EUA representava cerca de 27% do PIB mundial em 1950, caiu para 22% em 1980, ficou em 15,8% em 2015 e deve cair a 14,6% em 2021, segundo dados do FMI. O PIB da China (em poder de paridade de compra – ppp) era de 2,3% em 1980, passou para 17% da economia global em 2015 e deve ficar em torno de 20% em 2021.

O quadro não é diferente no comércio mundial. Em 1975 foi o último ano em que os Estados Unidos da América (EUA) tiveram saldo positivo na balança comercial. Sendo que as exportações americanas representavam 16% do total global. De lá para cá o déficit comercial tem sido crescente. No segundo governo George W. Bush, de 2005 a 2008, o déficit comercial dos EUA ultrapassou US$ 800 bilhões anuais. Neste período, a participação das exportações americanas no comércio mundial caiu para 8% (metade da percentagem de 1950). Os dados do primeiro semestre de 2016 mostram que as exportações americanas continuam caindo.

No outro lado do mundo, a China tinha uma percentagem de somente 1% no comércio internacional em 1950 e chegou a 14% em 2015. Até o início do século XX, o saldo comercial da China era baixo, mas ultrapassou US$ 200 bilhões em 2007 e 2008, reduziu um pouco entre 2009 e 2011 e voltou para os patamares acima de US$ 200 bilhões e alcançou a impressionante cifra de US$ 600 bilhões de superávit comercial. Nunca houve no mundo um superávit tão grande.

Os EUA só conseguiram manter déficits comerciais tão grandes porque possuem o privilégio de possuir a moeda aceita internacionalmente. Isto quer dizer que a dívida externa americana é lastreada em dólares e, em última instância, pode ser paga com a emissão de moedas (embora esta alternativa possa levar ao estouro da inflação e ao colapso do sistema financeiro internacional criado em Bretton Woods). Mas o fato de os EUA conseguirem financiar os seus déficits gêmeos (fiscal e externo) não significa que a economia vá bem. Ao contrário, as condições de vida da população americana estão se deteriorando e agravando as desigualdades.

Participação da China e dos EUA nas exportações mundiais

Esta perda de competitividade da economia dos EUA tem feito os principais candidatos às eleições presidências se manifestarem contra os acordos comerciais e em defesa de políticas protecionistas. Isto ocorre porque há uma grande insatisfação por parte de grandes segmentos da sociedade com o baixo dinamismo da economia e a falta de mobilidade social ascendente.

No dia 29 de junho, o senador Bernie Sanders (pré-candidato derrotado nas primárias do partido Democrata) publicou artigo no jornal New York Times, onde relacionou alguns dos principais problemas do país. Ele mostra que nos últimos 15 anos, cerca de 60.000 fábricas foram fechadas, e mais de 4,8 milhões de empregos industriais bem pagos desapareceram.

Com a estagnação da produtividade e o aumento da desigualdade, o trabalhador do sexo masculino está ganhando hoje, em termos reais, US$ 726 dólares a menos do que ganhava em 1973, enquanto o trabalhador do sexo feminino está ganhando US$ 1.154 menos do que ganhava em 2007. Quase 47 milhões de americanos vivem na pobreza. Estima-se que 28 milhões não têm seguro de saúde, enquanto muitos outros possuem seguros insuficientes. Milhões de pessoas estão lutando com os níveis ultrajantes de débito estudantil. Talvez pela primeira vez na história moderna, a geração mais jovem, provavelmente, terá um padrão de vida mais baixo do que seus pais. Assustadoramente, milhões de americanos de menor nível educacional poderão ter redução na esperança de vida ao nascer, enquanto sucumbem ao desespero, às drogas e ao álcool.

Enquanto isso, no topo de um décimo de 1 por cento da elite dos EUA agora possui quase tanta riqueza quanto a parte inferior dos 90% mais pobres. Cinquenta e oito por cento de todos os novos rendimentos estão indo para o topo dos 1% mais ricos. O setor financeiro de Wall Street e os bilionários, através de seus “super PACs”, influenciam os rumos das eleições americanas. A maioria vota, mas a democracia não deixa de ser um processo influenciado por uma pequena elite.

Porém, não vai ser fácil mudar o panorama da economia americana que tem um nível de endividamento muito alto e baixos níveis de poupança. Neste quadro, a infraestrutura fica atrás de outros países desenvolvidos e reverter o declínio da produtividade se torna uma tarefa quase impossível. O mais provável é que os EUA continuem em seu processo de declínio e o nível da campanha eleitoral reflete a situação do país que vive uma crise da democracia. O que aconteceu no Reino Unido (Brexit) pode ser um sinal de alerta para os Estados Unidos.

O senador Bernie Sanders fez uma campanha à esquerda dizendo que não basta derrotar o candidato das elites bilionárias – Donald Trump – mas o partido Democrata precisaria ter um programa para alcançar o pleno emprego e o trabalho decente, universalizar a cobertura social, médica e previdenciária, além de combater as desigualdades e a degradação ambiental.

Na convenção republicana de 18 a 21 de julho, em Cleveland (Ohio), Donald Trump pintou um quadro catastrófico da economia americana. Dentre outras coisas ele disse que “quase 40% das crianças afro-americanas estão vivendo na pobreza, enquanto 58% dos jovens afro-americanos não são empregados; mais de dois milhões de latinos estão na pobreza hoje do que há 8 anos; mais de 14 milhões de pessoas deixaram a força de trabalho; os rendimentos das famílias caíram mais de US$ 4.000 desde o ano de 2000; o déficit comercial anual está em US$ 800 bilhões; o presidente Obama duplicou a dívida nacional, que passou de US$ 19 trilhões, e continua crescendo; as estradas e pontes estão caindo aos pedaços, os aeroportos estão em condições de Terceiro Mundo, e quarenta e três milhões de americanos estão vivendo de cupons de alimentos”.

É claro que Trump “torturou” os dados para mostrar que a culpa é exclusivamente do presidente Obama e do partido democrata. Mas o quadro catastrófico da economia americana não deixa de apresentar uma certa verdade, especialmente se consideramos os erros de política econômica adotada pelo partido republicano desde Ronald Reagan. Além do mais, o discurso de Donald Trump está cheio de propostas populistas de direita, além de ser egocêntrico e narcisista, especialmente quando ele diz que vai “consertar a América” sozinho. O inusitado foi que a mulher de Donald, Melania Trump, fez um belo discurso em Cleveland, mas várias partes foram plagiados do discurso de Michelle Obama de 2008.

O fato é que o discurso conservador de “lei e ordem” (semelhante ao nosso “ordem e progresso”), do bilionário Trump, conseguiu satisfazer grande parte do eleitorado americano e as pesquisas realizadas logo após a convenção de Cleveland mostraram uma liderança na corrida presidencial. Para os setores angustiados e irados da sociedade americana o candidato Trump aparece como um “salvador da pátria”.

Os democratas, ao contrário, dizem que os EUA sempre foram grandes e continuam a maior potência econômica do planeta. Isto é uma meia verdade, pois se olharmos os dados do FMI em poder de paridade de compra, a China já é a principal economia do mundo. Mesmo considerando que os EUA continuam a maior potência mundial (em dólares correntes), não dá para esconder o fato de que se trata de uma potência em declínio relativo. O sonho do excepcionalismo americano tem se tornado um pesadelo para amplas camadas da população que não conseguem obter o mesmo padrão de vida de seus ascendentes. É grande o sentimento de insegurança e fraqueza entre os 99% da população americana.

Na semana de 25 a 28 de julho, foi a vez da convenção democrata realizada na Filadélfia (Pensilvânia). A convenção começou com uma forte divisão entre os partidários de Hillary Clinton e Bernie Sanders. Mas no final parece que o partido democrata conseguiu uma unidade interna e se mostra mais unido do que o partido Republicano. O ponto alto da Convenção foram os discursos de Michelle Obama, de Tim Kaine (candidato a vice-presidente), Michael Bloomberg (ex-prefeito republicano de Nova York), Bill Clinton, etc. O discurso final de Hillary não foi tão inspirado quanto o de seus principais apoiadores, mas ela tentou passar uma boa imagem do partido e dos EUA.

A campanha de Donald Trump carrega nas tintas pessimistas, critica fortemente o presidente Obama e o partido democrata e promete fazer a “América” grande novamente. A campanha de Hillary Clinton diz que a “América” continua sendo grande, defende o legado de Obama e promete trabalhar em conjunto com as minorias para fazer a “América” boa e próspera. Há quem diga que é o pessimismo exagerado contra o otimismo sem fundamento.

Os dados das pesquisas eleitorais mostram que, antes das convenções partidárias, Hillary estava à frente da corrida presidencial com cerca de 41% das intenções de voto, Trump com 37%, Gary Jonhson com 8% e Jill Stein com 4%. Durante a convenção republicana e logo após a sua exposição na mídia, Donald Trump conseguiu o empate nas intenções de voto e chegou a ultrapassar a candidata democrata por uma pequena margem e por um breve período. Porém, a candidata Hillary voltou a abrir uma vantagem após a convenção democrata e ampliou a margem depois de duas semanas de declarações desastrosas de Donald Trump.

Como mostra o gráfico abaixo, a vantagem de Hillary Clinton nunca foi tão grande. Em meados de agosto ela em torno de 44% das intenções de voto, Donald Trump tinha 37,6%, Gary Johnson 8,3% e Jill Stein 3%. Hillary liderava com 6 a 7 pontos na frente de Trump

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A chapa Gary Johnson e William Weld (dois homens brancos), do partido libertário, está em terceiro lugar nas pesquisas e já ultrapassou a barreira histórica de 10% das intenções de voto em algumas pesquisas. O Partido Libertário surgiu como uma dissidência do republicano em 1971 e defende um papel mínimo do governo federal na economia, além do respeito ao individualismo e à possibilidade de escolha em temas como aborto, direitos dos homossexuais e legalização da maconha. Por isso, mesmo com um histórico próximo à direita, o candidato também pode ganhar algum apoio entre os eleitores da esquerda por sua conduta moderada e mais aberta em assuntos polêmicos. Mas a tendência é que a chapa Johnson-Weld seja uma alternativa para os republicanos que estão descontentes com a candidatura de Donald Trump.

A chapa Jill Stein e Cornel West (uma mulher branca e um homem negro), do partido verde, está em quarto lugar e tem um claro programa progressista, ambientalista e anti-neoliberal. A chapa pode ser um depositório do eleitorado mais à esquerda e descontente com o establishment do partido democrata. Muitos eleitores de Bernie Sanders devem votar nesta quarta alternativa e o crescimento desta chapa vai capitalizar os votos que iriam para Hillary Clinton.

O partido Libertário e o partido Verde entraram na justiça contra a exclusão de seus candidatos dos debates eleitorais que vão começar em setembro. Mas um juiz Federal considerou válido a regra de que os candidatos pequenos devem ser chamados para os debates apenas se atingirem 15% das intenções de voto. Ou seja, continua valendo a regra do duopólio (Democratas vs Republicanos) e a eleição vai ser vencida pelo/a candidato/a que tiver o menor índice de rejeição e não por aquele/a que conquistar o coração dos eleitores.

Ainda há a candidatura independente de Evan McMullin, de 40 anos, um ex-agente da CIA, ex-empregado da Goldman Sachs e que era até há pouco tempo um assessor parlamentar do grupo republicano na Câmara de Representantes. Por influência do movimento #NeverTrump, ele se lançou como candidato independente à eleição presidencial americana de novembro, para tentar impedir a vitória do candidato oficial de seu partido, Donald Trump, que continua sendo questionado por uma grande parte dos conservadores.

O eleitorado americano está sem uma boa candidatura e há um grande desgaste dos partidos. Somente 12% aprovam o trabalho do Congresso e 79% desaprovam. Os gráficos abaixo mostram que as candidaturas dos dois grandes partidos possuem índices de rejeição maiores do que os de aprovação. Assim, a eleição vai ser decidida por quem tiver a menor rejeição.

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Como bem mostrou Richard Heinberg (02/08/2016), no artigo “You Can’t Handle the Truth!”, no site Resilience, nenhum dos dois candidatos à presidência dos EUA conseguem dar respostas satisfatórias para os desafios atuais do país e do mundo: “The times call for a candidate more in the mold of Winston Churchill, who famously promised only “blood, toil, tears, and sweat” in enlisting his people in a great, protracted struggle in which all would be called upon to work tirelessly and set aside personal wants and expectations. The candidates we have instead bode ill for the immediate future. Given the absence of helpful leadership at the national level, our main opportunity for effective preparation and response to the wolf at our doorstep appears to lie in local community resilience building”.

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O fato é que os EUA possuem muitos problemas econômicos, sociais e ambientais e são uma potência em declínio relativo e nenhum discurso, por melhor que seja, será capaz de esconder esta verdade. Ganhe Donald Trump ou Hillary Clinton, o vencedor terá que enfrentar uma nação dividida e fraturada politicamente, em um contexto de redução do crescimento econômico, crescentes déficits externos (comercial e transações correntes) e interno (grande dívida pública) e a tendência à estagnação secular e o aprofundamento da “guerra civil” existente hoje no país. Não será fácil gerir os Estados (des)Unidos da América no período 2017-2020.

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Na realidade a economia americana apresenta desempenho econômico cada vez mais descepcionante. O gráfico abaixo mostra que, nos períodos de recuperação após uma recessão, há uma perda de dinamismo. Na década de 1980, no governo Regan, a recuperação ficou em 4,5% ao ano. Na década de 1990, no governo Bill Clinton, a recuperação ficou em 4,2% ao ano. Na primeira década do século XXI, no governo Bush filho, a recuperação ficou em 2,8% ao ano. Na segunda década, no governo Obama, a recuperação está em apenas 2,1% ao ano. Mas em 2016, o crescimento do primeiro semestre ficou em apenas 1%. Parece que a fraqueza veio para ficar.

recuperação depois de uma recessão

Embora a criação em emprego em junho e julho de 2016 tenha ficado acima de 250 mil postos gerados mesalmente, no conjunto, a criação de emprego tem sido modesta, comparada com os períodos anteriores. No período 1991 a 2000 a geração de emprego ficou em 20%, no período 2000 a 2008 ficou em 4,3% e no período 2008 a 2016 está em 3,5%. Em parte, isto reflete o envelhecimento populacional, mas também a perda de produtividade e competitividade da economia americana.

empregos urbanos nos Estados Unidos

Tudo isto reforça as teses do economista Robert Gordon que argumenta que as novas tecnologias e a chamada 4ª Revolução Industrial não conseguem vencer os ventos contrários da economia. Assim, os indícios apontam para o fato inevitável de que a economia americana caminha para a estagnação secular.

Neste ambiente adverso, líderes populistas prometendo soluções simples, abastecidas por uma retórica raivosa sobre imigrantes e o establishment, podem sair vitoriosos, como foi no caso do Brexit. Os EUA estão passando por um momento de prestação de contas. Provavelmente, será impossível conter o declínio relativo da economia americana, assim como parece impossível manter em alto nível o debate da atual campanha eleitoral. O declínio relativo da economia e da democracia pode se transformar em retrocesso e barbárie.

Indicações de leituras:

Andrew Prokop. 23 maps that explain how Democrats went from the party of racism to the party of Obama, Vox, 29/07/2016

Andrew Prokop. How Republicans went from the party of Lincoln to the party of Trump, in 13 maps, Vox, 20/07/2016

José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: [email protected]

Fonte: EcoDebate

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