Quarta-feira à noite (29/8/2012), Paul Ryan, candidato do “Velho Grande Partido” Republicano à vice-presidência, fez discurso carregado da mais pura, da mais fundamental falsidade, em praticamente todas as frases. Jonathan Cohn, de The New Republic, oferece lista concisa das mentiras [1].
Refletindo a inutilidade e o fracasso crônico da CNN, contudo, eis a reação do principal âncora da rede, Wolf Blitzer, ao final do discurso:
Aí está ele, o candidato Republicano à vice-presidência e sua linda família. A mãe do candidato está ali, ao lado. É exatamente o que essa multidão de Republicanos aqui presente, com certeza os Republicanos de todo o país, esperavam. E que discurso poderoso! Anotei sete ou oito pontos que os maníacos por dados quererão discutir. Mas, no que tenha a ver com a campanha de Mitt Romney, Paul Ryan hoje, fez a sua parte.
A co-âncora de Blitzer, Erin Burnett – a qual, na noite anterior confessara que “fiquei com os olhos marejados” ouvindo o discurso de Ann Romney à convenção – acrescentou mais uma dose de sabedoria jornalística:
Você tem razão. Você está absolutamente certo. Haverá discussão sobre alguns pontos. Mas o discurso motivou as pessoas. Aí está um homem que diz ‘eu respeito profundamente as palavras, cada palavra. Desejo fazer um bom trabalho’. E falou sobre isso. Preciso, claro, apaixonado.
Como escreveu Louis Peitzman, de Gawker:
“Discurso poderoso”, com “só” sete ou oito mentiras? O homem pode considerar-se eleito! Parecer “preciso, claro, apaixonado” é, mesmo, muito mais importante que dizer a verdade.
Prova documentada perfeita do que é o deserto estéril, conhecido como “CNN” e produto vendido como “O Nome de Mais Credibilidade no Mundo da Notícia”, nada jamais superará o tuíte, abaixo reproduzido, que Blitzer distribuiu semana passada:
(Em @CNNSitRoom, 18h, “vamos ao Mar da Galileia em Israel, visitar a praia onde um deputado norte-americano deu um mergulho pelado”).
Quando, algum dia, algo superará isso? E a chamada para o programa de Blitzer, com a história do Mar da Galileia, anunciava “as histórias e o noticiário político mais importantes do dia”.
Mas rir da CNN é brincadeira de criança. A questão importante é que a obsessão doentia da CNN com líderes políticos e “suas lindas famílias” domina o discurso político em geral, sobretudo quando o país entra em ciclo eleitoral para a presidência, que se arrasta por 18 meses que parecem intermináveis – equivale a mais de um terço do mandato do presidente – e sufoca virtualmente todas as demais questões políticas.
Uma das razões pelas quais escrevo tão pouco sobre eleições presidenciais é que acabaram por ser a realização completa da CNN-ização da política nos EUA: um horrendo, supercondensado reality show que tem menos a ver com a realidade política do que qualquer conversa de canto de bar ou de canto de cozinha de casa. Não significa que o resultado das eleições seja irrelevante. Significa apenas que o processo é sufocantemente imbecilizado, imbecilizante e falso, e gera o desejo de dar às costas e esperar que termine o mais rapidamente possível.
Eu estava viajando mês passado e, sem querer, acabei à frente de uma televisão que mostrava o presidente Obama falando em Maumee, Ohio, uma das paradas de sua viagem de ônibus de campanha “Apostando nos EUA”. Vestia camisa listrada de mangas curtas e falava frente a uma casa embandeirada com uma imensa bandeira dos EUA, com uma cerca branca. E lia-se “Apostando nos EUA” [orig. Betting on America] impresso em fundo azul, em fonte vintage Americana dos anos 1950s.
Lembro de ter pensado na quantidade descomunal do mais puro cinismo que se requer para ganhar a vida como consultor-marketeiro de campanha eleitoral nos EUA.
Não por acaso, a indústria da publicidade homenageou a campanha de Obama de 2008 com alguns de seus prêmios mais prestigiados, inclusive o “Marketeiro do Ano” dentre outras honrarias do planeta publicidade. A marca “Obama” foi construída e embalada com muita competência.
Por mais forte e quase irresistível que seja a tentação de ignorar completamente o espetáculo eleitoral anual, é preciso resistir. Apesar do que tem de raso e de manipulatório – ou, melhor dizendo, justamente por isso – a campanha eleitoral acabou tendo repercussões importantes na vida política nos EUA.
O processo eleitoral é o momento em que os políticos norte-americanos aparecem para serem venerados e glorificados, considerados sempre os mais triviais atributos de personalidade que nada têm a ver com o que fazem do poder, mas os quais, por definição, convencem os eleitores de que eles, porque são eleitores, são abençoados com o direito de serem governados por seres de tal integridade e de tantas qualidades tão nobres, e não importa o quanto os tais seres nada tenham de nobre e a longa experiência de decepções que os eleitores tenham vivido. (Na 4ª-feira, o presidente Obama, durante participação muito divulgada na sessão “Pergunte-me o que quiser” em Reddit, ignorou, muito previsivelmente, a pergunta de Nick Baumann do Blog Mother Jones sobre ele ter ordenado o assassinato de um adolescente norte-americano, Abdulrahman Awlaki; preferiu responder perguntas sobre a receita de cerveja da Casa Branca e seu jogador de basquete preferido).
Processo eleitoral é onde os partidos políticos consomem centenas de milhões de dólares para explorar as sempre mesmas qualidades triviais de personalidade e para demonizar candidatos do outro partido, como se os dois partidos fossem culturalmente antípodas; tudo, sempre, para manter os próprios eleitores em estado de medo pânico e, assim, garantir a lealdade do voto.
É o frenesi supremo, a suprema orgia da indústria da publicidade e propaganda, devotada a reforçar agressivamente a ideia do excepcionalismo americano; a crença de que mesmo quando as coisas parecem sombrias, os EUA sempre serão a terra abençoada por deus, terra da liberdade, da oportunidade e da prosperidade, e todos os cidadãos norte-americanos devem, portanto, ser muito gratos – em ordem e totalmente passivos, mas gratos – pelo privilégio de viver em tal país, não importam as dificuldades da vida, nem o quanto a corrupção seja generalizada.
É isso que induz muitos norte-americanos a crer que participam de vibrante debate político e de efetiva escolha democrática, mesmo quando a maioria das políticas que se discutem são destrutivas diretamente, da vida do eleitor – a “guerra às drogas”, a supremacia jamais contestada do aparelho clandestino de segurança, o estado de vigilância, as vastas desigualdades no sistema judiciário, o capitalismo predador que rapidamente enriquece a oligarquia que controla o processo político, mas jamais discutidas, sempre largamente ignoradas no debate público, porque os dois partidos, nesses assuntos, têm exatamente as mesmas posições e servem aos mesmos interesses.
(Observem com que frequência os apoiadores de Obama defendem o líder, de ataques dos conservadores, argumentando, com orgulho, que as políticas de Obama, de fato, são exatamente as mesmas que os conservadores pregam: Obama até cortou mais gastos, que Bush e Reagan! Wall Street jamais ganhou tanto dinheiro! Obama matou mais que Bush, em guerras! Seu plano de saúde foi produzido por um thinktank da direita! Ninguém se mostrou aliado mais fiel e prestativo de Israel, que Obama! As sanções mais “incapacitantes”, contra o Irã, são ideia de Obama! Obama “isolou” o Irã! etc.).
Dado que todos os candidatos acreditam na litania do “agradar as bases” e das “políticas populistas”, todos os eleitores podem acreditar que haja diferenças entre eles. Mas, pela mesma razão, o que dizem em campanha absolutamente nada tem a ver com o que farão no governo – como escreveu Peter Baker, hoje, no New York Times, escrevendo sobre as plataformas dos candidatos no campo da política externa, e subestimando o problema: “o elo que une o que os candidatos a presidente dizem em campanha e o que fazem depois de eleitos pode ser muito tênue”.
Há algumas poucas questões importantes, sobre as quais há agudas diferenças – questões sociais, direito de ter ou não ter filhos, filosofia da jurisprudência, alguns poucos programas sociais e políticas de impostos – e são infinitamente batidas, rebatidas e exploradas para super demarcar algumas diferenças e, mais importante, para encobrir a triste semelhança de todo o resto.
Ano eleitoral bem poderia ser significativa oportunidade para verdadeiro debate político: a única vez, a cada quatro anos, em que a maioria da população, que vive ou atribulada ou desinteressada demais dá algum sinal de interesse em prestar atenção e pode(ria) ser mais bem informada. Em vez disso, o processo é um festival de imbecilidades. E entretenimento, quase sempre macabro. De fato, o que se vê é que o processo eleitoral já é incansavelmente sem graça. E às vezes – como nos programas da CNN – é destrutivo e contraproducente.
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