Ética Prática: Um novo olhar sobre a ética animal

Por Mariane Sauer.* 

Segundo Peter Singer em seu livro Ética Prática (1994), há ramificações éticas na maior parte de nossas escolhas. Mas Singer discorre no livro sobre a aplicação da ética a questões pouco pensadas pela maioria das pessoas, dentre elas, a questão do uso de animais para os mais diversos fins. E é sobre esta questão que irei me deter. Na comparação entre vidas humanas e vidas não humanas, sobrepõe-se na atualidade a crença na superioridade humana, o que não poderia ser considerada uma atitude ética. Para adentrar no assunto, é necessário falar acerca da ética aplicada aos humanos.

Agir eticamente é agir de acordo com atos que possamos defender e justificar. E defender eticamente meus atos, é não usar como parâmetro eu mesma, mas sim todos que me rodeiam; é não atingir maleficamente outrem com as conseqüências de meus atos. E se agir eticamente é não fazer mal aos outros, entra em questão o principio da igualdade: apesar de os seres humanos diferirem como indivíduos, não existem diferenças moralmente significativas entre as raças ou sexos que nos deixe tratar alguém de outra forma senão como um igual. Ou seja, a reivindicação de igualdade não tem a ver com posse de inteligência, personalidade, racionalidade ou algo semelhante.

Deve-se atribuir o mesmo peso aos interesses de todos os afetados por nossas ações.  Não podemos preocupar-nos mais com X ou com Y. Se não posso fazer mal a X (pois isso seria não agir eticamente) não posso fazer mal a Y também. O critério tem de ser válido para ambos, a raça é irrelevante para a consideração dos interesses. Não posso conceder menos importância à dor de um índio do que à de um europeu; a etnia é irrelevante quanto aos interesses.

Tendo então o principio da igualdade como base moral das relações com outros indivíduos de nossa espécie, torna-se vital aceitar o mesmo principio para aqueles que não pertencem a nossa espécie: os animais não humanos. É compreensível que isso soe estranho à maioria das pessoas, culturalmente habituadas a não pensar dessa forma. Entretanto excluir outras espécies do embasamento ético é um preconceito, sob a mesma lógica utilizada para com os escravos africanos no passado. É fácil criticar o preconceito de nossos antepassados, e aceitar hoje em dia os negros como dignos de todos os direitos que os brancos; entretanto é difícil reconhecermos nossos próprios preconceitos.

De acordo com o que foi explanado, a preocupação com os outros não depende do seu aspecto nem das suas capacidades. Isto implica dizer que o fato de certos seres não pertencer à nossa espécie, não nos dá o direito de explorá-los, assim como o fato de outros animais serem menos inteligentes que nós também não diz nada; os seus interesses não podem ser ignorados.

Se um ser sente e sofre, não há justificação moral para que não se considere esse sofrimento. Animais são seres sencientes, como nós humanos já o somos desde o 6º mês de gestação.  Senciência é a capacidade de sentir dor, prazer ou felicidade[1]. Os animais não humanos possuem um sistema nervoso formado, e o da maioria é muito parecido com o dos humanos; mas mesmo os mais simples, como o dos não vertebrados, também possibilita a percepção da dor. Se um ser não é capaz de ter tais sentimentos não há o que se levar em consideração; a senciência é limitada:  plantas, por exemplo, não possuem sistema nervoso organizado, e não entram nesta consideração ética.

Pode-se até minimizar a dor ao matar um animal para consumo, entretanto a questão não é somente a dor em si, mas sim o fato de que estará sendo imposta a vontade humana, desconsiderando a liberdade de vida que o animal deveria ter – por estar incluído no principio da igualdade e por ter o direito de ter a ética aplicada a ele também. Não se deve encurtar uma vida que é agradável. Se o ser goza de plena saúde, e pode viver livre, tem uma vida que contém ou pode vir a conter mais prazer do que dor, que direito tem-se de tirar a vida do mesmo?

Fazer portanto essa distinção, ao não aplicar a ética aos animais por serem considerados inferiores, diferentes, ou outra razão do gênero, não se apresenta enquanto uma atitude correta. Um bebê humano também não é consciente de si, não é dotado de inteligência e ainda assim, a ética é aplicável a ele. Desta forma, o ato de não aceitar o principio da igualdade como válido também para outras espécies aqui entende-se com especismo. Há outras formas de especismo além do uso de animais para alimentação, como o comércio de peles, caça, circos, touradas, comércio de animais, etc.

Um argumento muito utilizado é o de que o ato de comer carne é “natural” e por conta disso não há problema algum em comermos. Singer afirma a falácia do mesmo:

É sem dúvida ‘natural’ uma mulher ter um filho por ano ou de dois em dois anos desde a puberdade até a menopausa, mas isto não significa que seja um mal interferir nesse processo. Precisamos de conhecer as leis naturais que nos afetam de modo a prever as conseqüências daquilo que fazemos; mas não temos de presumir que a forma natural de fazer algo não é suscetível de aperfeiçoamento. (SINGER, 1994, pg. 48)

A cultura de comer carne está tão arraigada no dia a dia das pessoas que torna difícil a mudança. O tradicional churrasco, momento de sociabilidade entre amigos, é um exemplo disso. Os homens costumam preparam a carne, as mulheres ficam conversando, depois todos se juntam à mesa para comer, beber e conversar. E em muitos outros momentos de sociabilidade a carne está presente: na pizza do final de semana, na cantina da escola, na feijoada do domingo, etc. Ser vegetariano, é uma quebra com toda essa cultura arraigada à anos, e muitas vezes até um afastamento social; não propositalmente, mas se a pessoa é vegetariana e não come nada do que terá em tais encontros, acaba sendo mais proveitoso sair com seus amigos vegetarianos e comer uma refeição que lhe agrada em outro local.

Portanto, o fato de não aplicarmos a ética aos animais é também uma questão cultural. A ética é um produto da nossa cultura, e a ética que aqui se discute é uma ética transcultural, que possa promover o bem de todos, não havendo discriminação por questões de gênero, etnia ou inclusive, de espécie. Entretanto, mudar valores de toda história humanitária não é fácil, rápido, nem virá de um dia para o outro.

Se admitimos que nenhuma espécie viva pode ser propriedade de ninguém, seja de um cidadão comum, seja de um cientista ou de um empresário da industria farmacêutica, cai por terra a possibilidade da justificativa moral tradicionalmente aceita e imposta como verdade absoluta a todos pela própria comunidade cientifica (…). Ter domínio sobre todas as formas de vida significa ser co-responsável pela preservação da vida e não pelo biocídio, típico de um predador. (FELIPE, 2007, pg.333)

Tal linha associada à bioética – enquanto campo interdisciplinar – leva a uma re-valoração das mudanças sócio-culturais, obrigando-nos a repensar as situações e as formas de lidar com elas, visando nossas responsabilidades enquanto pessoas inseridas na comunidade moral, tanto para conosco quanto para aqueles que são apenas beneficiários de nossas obrigações morais. Tal mudança possibilitaria a ampliação da aplicação ética, de modo que nossos atos causem o menor dano possível a todos que nos rodeiam.

Não obstante, vale relembrar que o andar da humanidade segue seu próprio ritmo, mas está em nós – contestadores da lógica atual – o cerne da mudança. O passo inicial já foi dado, pois uma vez que milhares de pessoas já partem desta consciência ampliada – baseada em grandes filósofos da atualidade – que coloca a ética como valorativa a todos os seres sencientes, pode-se dizer que a cultura também está mudando. A cultura muda na medida em que as pessoas incorporam as mudanças em sua própria realidade, re-significando conceitos e ideais. Esta mudança faz parte da busca por novos valores que orientem nossa cultura, uma ética voltada para o terceiro milênio, colocando novas perspectivas para a compreensão de nossas práticas.

REFERÊNCIAS

FELIPE, Sônia.Ética e experimentação animal. Santa Catarina: Editora da UFSC, 2007.

SINGER, Practical Ethics. Cambridge University Press, 1979 [Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 1994].

SINGER, Vida ética: os melhores ensaios do mais polêmico filósofo da atualidade. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

[1]     SINGER, 2002, pg.5

*  Assistente Social pela Universidade Federal de Santa Catarina.

Imagem: http://overrunning.blogspot.com/

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