Eterno

Por Luciane Recieri.

Era o amor que poderia se chamar de eterno, sem medo algum das profecias de Vinícius e decair na mesmice dos primeiros namoros. Duraria mais que minha própria história e resistiria àsolidão das revoluções se, porventura, inventassem outras, sabia desde a primeira vez em quevi. Indelével o sorriso, as mãos pousadas, o olhar verde que poderia mudar se enjoasse.Compleição perfeita, de altura boa que alcançava as flores das árvores, de poucos músculos,porém forte o suficiente para cavar um poço. Nosso amor foi solitário e expressivo, ou mais,foi obra de arte, pois se fazia de elementos sensíveis em cores, em formas e nas linhas de seucabelo levemente desalinhado, no rosto suave e nas roupas que trocava a cada três dias ou sealguém gostasse.

Naquele tempo, meu tempo era longo e mesmo que não fosse não conseguiria pegar umatalho para chegar à estação e, quando pegava, já estando na gare, meu coração simples demenina de quase vinte anos sentia falta daquele rosto grave e ao mesmo tempo suave. Minhasorte era ter um banco próximo a ele. Lia todos os dias um trechinho de Pessoa ou CristinaCésar, que descobrira naquela época como o que mais dizia sobre mim na ilusão bobinha deque ele me entendesse. Sentava, abria o livro e lia frases soltas em forma de acalanto,mesmo que entre mim e ele tivesse uma calçada e uma rua e um pequeno jardim e ainda umaespécie de redoma, isso até o dia em que meu irmão resolveu se casar. Pediu-me quecomprasse uma camisa de manga longa e branca, colarinho duro, mas algo entre fresco eacetinado.

Que delicada e fascinante tarefa! Poderia estar perto dele pela primeira vez e sem parecerabusiva.

Ensaiei o que deveria pedir, entrei no estabelecimento. Fazia de conta que procurava, mas acamisa mais linda ele usava naquela tarde por baixo de um suéter. Pedi que me mostrassem,o rapaz abriu o vidro e tirou-lhe o suéter de losangos, depositando no ombro de seucompanheiro de trabalho. Entregou-me a camisa, dizendo que ficaria muito bem num jovemnoivo. Respondi que sim e sem graça olhava para o assoalho. Foi a primeira e a última vez queo vi nu.

Ainda ficou algum tempo sem camisa, peito aberto de quem caminha numa tarde de soldaquele quase dezembro que se foi faz tempo. Quando pisei o calçamento, a vida seprecipitava numa chuva grande. Olhei-o pela última vez e abri meu guarda-chuva sem saberao certo que rumo tomar. Meu tempo de estudos naquela cidade terminara. Não passaria alidiariamente e sei que nos esqueceríamos pela falta de hábito, pois o amor se faz e se desfazdestas pequenas coisas diárias que a gente vai juntando em caixas de papelão, abre todos osdias e espalha na cama – admira, sofre, ri, se alegra e torna a guardar para se alimentarquando a vida para de ser vida.

Sabia que não teria mais nada a guardar, apenas seguiria tateando os anos nesta solidãomorna que é passar dos vinte. Por outras vezes andei por aquela rua sem coragem de olhar seainda o moço de plástico trabalhava ali. Se estaria entre os outros dois homens de celulóideque nunca me causaram emoção.

Por estes dias senti uma saudade imensa dele. Saudade que veio junto da tristeza de tê-loesquecido quase que completamente. Estas espécies de sepultamento de toda forma defantasia que se torna necessária quando crescemos demais. Lembrei-me dele conversandocom Helenita, pois falávamos sobre a dificuldade de amar, de se aceitar e da falta deentendimento entre nós humanos.

Voltei ao banco da praça e tentei enxergá-lo neste mural sujo em que o tempo pendura ascoisas, de tão sujo mal pude ver seus olhos claros e as mãos pousadas. Ficamos calados comose é natural nas mulheres tristes e nos homens de plástico – esquecidos e sempre calados anos olhar sem perder tempo com teorias e explicações.Jamais havia contado à viva alma que me apaixonei por um manequim de loja masculina, mashoje lembrei e tive vontade.

Eterno mais que meu tempo dure.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.