Espancamentos, banho em represa gelada e fezes no carro: os castigos a policiais de elite no Brasil

Foto: Reprodução

Por Felipe Souza.

O jovem soldado da Força Tática (policiamento ostensivo) entra na poluída represa Billings, em meio a garrafas plásticas e lixo flutuando, enquanto bate os dentes de frio. A água já está na altura de sua cintura e a sensação é de que suas pernas adormeceram, mas seus colegas de profissão só ficam satisfeitos após ele mergulhar e voltar encharcado. Com a farda completamente molhada, ele se apresenta ao comandante e trabalha assim durante todo o seu plantão.

Conhecido como “pagar banho”, esse é um dos castigos aplicados com maior frequência nos batalhões e pelotões de elite das polícias civil e militar do Brasil, como a Tropa de Choque paulista e o Bope no Rio. Ocorre quando policiais cometem erros classificados como leves, como passar uma coordenada ou código errado à tropa por rádio ou olhar para uma mulher durante patrulha na rua.

Há uma variedade de outras punições físicas aplicadas definidas pelos próprios policiais. Uma delas é conhecida como “chá de manta” – uma espécie de corredor polonês com chutes, socos e golpes de toalhas molhadas nas costas. Os policiais também são castigados com séries exaustivas de flexões no verão, sem direito a água, e até mordidas nas nádegas enquanto são imobilizados por colegas de profissão.

A BBC News Brasil entrevistou mais de 20 policiais militares, civis e bombeiros de diversas patentes diferentes, e todos confirmaram a existência desses castigos. A maior parte conta que já sofreu algum tipo de punição física na corporação. Alguns, porém, concordam com a existência desse código paralelo.

Castigos físicos e psicológicos

Em parte das tropas de elite de São Paulo, como o Choque, as Rondas Ostensivas com Apoio de Motocicletas (Rocam) e as Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota), policiais são punidos até mesmo por se apoiarem numa parede após horas de trabalho em pé, de acordo com agentes ouvidos pela reportagem. Também não é permitido que eles busquem abrigo ou usem alguma capa em caso de chuva.

Em alguns setores, há ainda os castigos psicológicos – menos comuns entre os policiais de elite. Segundo o relato de um agente penitenciário, há situações em que cães de rua são colocados dentro dos carros de funcionários que cometeram erros. Presos, os animais urinam, defecam e arranham o interior do veículo.

Além das punições por erros cometidos durante o trabalho, há ainda relatos de abusos nas academias de formação de policiais, enquanto os aspirantes à profissão estão se preparando para exercê-la.

Nesta semana, por exemplo, um soldado da Rotam (Rondas Ostensivas Táticas Metropolitanas) de Goiás teve um brasão de metal cravado no peito após concluir o curso preparatório e se formar no batalhão especial. Procurada, a Secretaria da Segurança Pública de Goiás não comentou o caso até a publicação desta reportagem.

A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, responsável pela maior parte dos casos ouvidos pela BBC News Brasil para esta reportagem, afirmou que “não admite castigos de quaisquer naturezas, especialmente os físicos”, e que “em eventuais casos, a Corregedoria apura com o máximo rigor e, caso sejam comprovadas irregularidades, os envolvidos respondem a processo administrativo disciplinar e penal, que podem levar a punições ou até mesmo à demissão”.

Questionada por mais de uma semana, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo não informou quantas denúncias com esse teor foram recebidas nos últimos anos ou quantos policiais foram punidos por permitir ou participar dessas agressões. A pasta também disse que não seria possível entrevistar o coronel corregedor da Polícia Militar, Marcelino Fernandes, por problemas de agenda.

O ouvidor das polícias de São Paulo, Benedito Domingos Mariano, afirmou que o órgão recebeu duas denúncias de policiais que sofreram trotes agressivos e castigos com banho gelado nos últimos dois anos. Ambas de São José dos Campos, no interior do Estado.

“Eles disseram ser obrigados a tomar banho gelado de manhã, vestir a farda molhada e depois trabalhar. Elas (as denúncias) foram encaminhadas à Corregedoria da PM, que ouviu o comando de policiamento da região, que negou tudo. Nós arquivamos como denúncia não confirmada pelos órgãos apoiadores”, disse.

O ouvidor afirmou ser contra essas agressões e que, a partir dos relatos feitos pela reportagem, vai tratar sobre o assunto com o corregedor.

Ele falou sobre a importância de os policiais denunciarem os abusos, mas pondera que eles sentem medo.

“Eles têm receio de sofrer represálias dentro de suas unidades e de ficarem marcados por fazer esse tipo de denúncia. Agora, se há mais de 20 casos desse tipo como você ouviu, deixa de ser uma questão pontual para ser uma questão geral e que deve ser discutida com o corregedor.”

Pena alternativa

De acordo com policiais militares ouvidos pela reportagem, os castigos funcionam como uma espécie de pena alternativa ao código interno de conduta ética da corporação.

Tais práticas, na opinião deles, viraram um costume irreversível dentro da corporação, uma vez que o policial prefere optar por uma punição física a responder a um processo formal.

Um dos motivos é que, por mais simples que seja, um processo formal pode causar um grande impacto na carreira do policial, já que todas as punições são marcadas no registro funcional – documento que os acompanha durante toda a trajetória militar. No caso de uma futura promoção ou mudança de local de trabalho, esses pontos são decisivos.

Um comandante de batalhão explica: “Se o policial trabalha em São Miguel Paulista ou no Grajaú (regiões do extremo leste e sul de São Paulo, respectivamente) e quer ir para uma área nobre como Perdizes ou Higienópolis, ele precisa ter uma pontuação alta. Se ele responder oficialmente por pequenos erros e perder pontos por bobagens, isso vai dificultar muito a vida dele”.

Segundo os agentes, o policial que recebe constantes punições pode sofrer penas tidas como graves, como perder o direito de levar a arma consigo durante a folga, por exemplo. Além de prejudicar a segurança pessoal do agente público, a restrição afetaria o moral do policial, acostumado a portar uma pistola mesmo fora do expediente.

Reflexo nas ruas

Os policiais ouvidos pela reportagem contam que os castigos físicos se tornam parte do cotidiano desde as academias.

Estudantes da Academia de Polícia do Barro Branco de São Paulo relatam que há uma grande pressão psicológica para que o aluno desista de se formar durante os três anos de curso.

Uma aluna afirmou que algumas falhas, como deixar de bater continência a um oficial, deixar de engraxar o coturno ou não passar a roupa corretamente pode levar a penas graves, como detenção durante um fim de semana – o único período em que os estudantes podem voltar para casa.

Esse tipo de prática é aprovada por parte dos oficiais. Um deles, que já comandou um pelotão de Força Tática na zona sul de São Paulo, defende as penas físicas, por exemplo.

“Quando eu estive à frente de um pelotão de Força Tática, eu sabia que isso acontecia e tinha consciência de que era algo para o crescimento do policial. E acho estranho que isso cause sofrimento porque ninguém é obrigado a passar por isso. O banho é uma escolha do próprio policial e quase um gracejo para ele não sofrer as punições formais”, disse um policial militar que hoje atua na zona oeste de São Paulo e pediu para não ser identificado.

Na visão dele, o banho é um reconhecimento do próprio policial de que ele cometeu um erro que poderia ter colocado em risco a vida de seus companheiros. Ele diz que o castigo serve como reflexão. Mesmo em um posto de comando, ele mesmo relata que já “pagou banho” na frente dos outros policiais.

“Certa vez, eu errei em um treinamento e nem precisei falar nada, fui direto para a cachoeira. Não é nenhum demérito, mesmo sendo comandante de pelotão ou de companhia. Se isso for usado para o crescimento, eu acho viável e enaltecedor. Mas se for usado para diminuir e humilhar, não. O cara paga banho e mostra para toda a equipe que tinha consciência da falha e que não fará de novo”, relata.

Por outro lado, Elisandro Lotin, presidente da Associação Nacional dos Praças (Anaspra) e membro do Conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, classifica essas técnicas como uma herança do regime militar.

“É uma lógica de submissão, humilhação e tortura que não faz sentido. Se você treinar um policial de forma bruta, é claro que ele vai externar isso em alguém. Como você quer que os policiais respeitem os direitos humanos se eles não têm os direitos humanos deles respeitados?”, questiona.

Segundo ele, que também é especialista em ciências criminais, algumas polícias treinam novos soldados com tapas no rosto e fazem racionamento de comida. Em alguns casos, PMs são obrigados a raspar a cabeça e comer um alimento militar conhecido como catanho – uma refeição instantânea com farinha de mandioca, pedaços de pão e carne armazenada em um saco plástico.

Policiais militares entrevistados pela BBC News Brasil questionaram a atuação de instituições de defesa dos direitos humanos para coibir as agressões dentro dos batalhões e academias de elite do país.

Membro do Movimento Nacional dos Direitos Humanos e conselheiro do Condepe (Conselho Estadual de Direitos da Pessoa Humana), Ariel de Castro Alves disse que o órgão precisa receber os relatos para ter um ponto de partida para denunciá-los.

“Nosso papel é denunciar violações de direitos humanos em qualquer situação. Nós fazemos visitas em presídios e batalhões com base em relatos, mesmo que sejam anônimos. O problema é que nesses setores militares eles conseguem descobrir quem as fez e isso acaba inibindo os policiais”, afirmou.

Alves defende que a desmilitarização das polícias brasileiras “acabaria com o ambiente de brutalidade e opressão nos batalhões”.

Ele afirma que os casos de agressões são comuns e que há três anos denunciou um caso de recrutas que eram obrigados a fazer flexões no asfalto quente.

Na época, os alunos da Escola de Formação de Soldados de Registro, no interior de São Paulo, sofreram queimaduras graves nas palmas das mãos – as bolhas causadas pelos exercícios deixaram as mãos deles em carne viva.

Como policiais são treinados em outros países?

Instrutor em cursos de treinamento policial para instituições como a Swat (unidade de polícia especializada dos EUA) há 18 anos, Marcos do Val diz que os treinamentos e punições físicas e psicológicas só devem ser usados para preparar soldados para guerras.

“O aprendizado por meio da violência foi desenvolvido nas duas guerras mundiais porque é o modo mais fácil de treinar o maior número possível de pessoas em pouco tempo. Isso porque a absorção é mais rápida quando há dor. Na guerra, o soldado também vive outra realidade, onde ele vai passar fome, sede e pode até ser um prisioneiro de guerra. Um policial não precisa disso”, explica.

Do Val, que não integra a força policial de táticas especiais americana, afirma que os castigos físicos e psicológicos são vistos como ultrapassados tanto nos Estados Unidos quanto em outros países da Europa onde ele dá palestras de segurança, como França, Portugal e Itália. Segundo avalia, as técnicas com uso da violência estão com os dias contados também no Brasil.

Ele explica que o tempo de treinamento dos policiais deve ser usado para desenvolver a tática, citando como exemplo os policiais americanos, que fazem treinos físicos e técnicos de forma intercalada, como corrida, tiro, flexões e análise de cenários de crimes.

Marcos do Val afirma que, nos EUA, cada policial recebe uma avaliação individual em cada exercício. A intenção é conciliar os treinos físicos e técnicos e apontar quais pontos podem melhorar. Nenhuma punição física é tolerada.

“A formação policial no Brasil viveu um retrocesso gigantesco depois do lançamento do filme Tropa de Elite, que fortaleceu a cultura de comer no chão e levar tapa na cara.”

“Pode demorar dez ou cem anos, mas isso vai acabar porque é uma técnica que não evolui e não deve mais ter espaço. Falo inclusive para meus alunos anteciparem isso e as polícias federal e civil já estão seguindo bem esse caminho”, afirma.

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