Escravismo é o pecado capital da história que alimenta a violência de hoje

Por João Vitor Santos.

Nesta semana, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP lançaram a edição 2018 do Mapa da Violência. Segundo a professora Maria Palma Wolff, doutora em Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, os dados reforçam uma tendência dos últimos anos: aumento da violência. “Tínhamos os homicídios estagnados por dois anos, mas, agora, têm crescido de forma significativa”, destaca. Crescimento esse que se dá de forma muito específica, pois quem morre são mulheres, jovens e negros. “Observando os índices, vemos que há uma seletividade nisso. Há algo por trás, uma raiz comum que alimenta isso. Penso que essa raiz é nossa herança escravista”, analisa.

A conferência de Maria Palma, realizada na quinta-feira, 14-6, encerrou o ciclo Violências no Mundo Contemporâneo – Interfaces, resistências e enfrentamentos, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Para ela, antes de sustentar a ideia de combate à violência, é preciso conceituar essa violência, pois a compreende como algo inserido numa totalidade social, e não como um fenômeno isolado ou individual. “Por isso precisamos olhar para a violência à luz do contexto social. Determinadas sociedades promovem respostas para o lugar em que estão inseridas”, esclarece. É nessa perspectiva que traz alguns dados do Mapa da Violência 2018, propondo que se reflita além dos números. Afinal, o dado de que a cada sete horasuma pessoa é morta no Brasil é muito mais do que só um número. “Perdemos o equivalente a um Boeing cheio de pessoas por semana no país. Acidentes aéreos nos impactam quando ocorrem, mas vejo que temos o equivalente a um acidente como esses por semana”, detalha.

Depois da estabilidade referida pela professora, o aumento de homicídios entre 2015 e 2016 foi na faixa de 5%. Além disso, destaca que ainda há um aumento no número de mortes efetuadas por policiais e também de policiais que são mortos. Assim, o país vai amargando 30 mortes a cada 100 mil habitantes, enquanto as Organizações das Nações Unidas – ONU falam em limites de dez mortes a cada 100 mil habitantes. “Mas o que temos de política pública diante dessa realidade? Percebemos uma redução de 30,8% no Fundo Nacional de Segurança Pública e de 30,8% no Fundo Nacional Antidrogas. Os recursos só aumentaram 80,6% no Fundo Penitenciário Nacional, leia-se ‘apenas construção de presídios‘”, tensiona, mostrando que parece haver uma prioridade para o encarceramento. “Somos o terceiro país em população carcerária no mundo, que ainda é uma das que mais cresce. Também, se olharmos para dentro dos presídios, veremos a repetição desses perfis: mulheres, jovens e negros”, completa.

Maria Palma observa que esses perfis de mulheres, jovens e negros no topo dos índices de vítimas de homicídios e de encarceramento revelam uma gênese que tem relação com a lógica da escravidão, que por tanto tempo perdurou no Brasil. “Sem dúvida tem relação com a escravidão. É, como diz Nilo Batista, no artigo Pena Pública e Escravismo: ‘a escravidão é nosso pecado capital’”, reitera. E exemplifica: “veja o caso da mulher, e ainda mais da mulher negra, que é vítima de violência. Sempre soubemos que isso existia, mas vínhamos deixando ali, de lado, negando uma contundente realidade”.

O outro como propriedade

A professora Maria Palma ainda explica que essa raiz escravista é o que determina a noção que se passa a ter do outro enquanto propriedade e não como sujeito. Para ela, isso impacta diretamente as situações que vivemos hoje, porque as ações contra a violência desconsideram o outro e ainda atacam os sujeitos com a mesma truculência com que se tratavam os escravos. “Ser proprietário da casa grande significava a propriedade da terra, dos negros como forma de produção, mas também das mulheres nessa casa grande”, analisa.

Assim, essa lógica incutida acaba quase que como guardada no subconsciente e acaba inspirando, de forma negativa, as políticas públicas de modo geral. “Nossa Constituição de 1824 foi baseada num liberalismo europeu, mas não mexeu na questão dos escravos. O primeiro código penal manteve as penas de açoite para os negros, amenizando apenas para os brancos”, recorda. Maria Palma ainda destaca que vieram outras legislações que atualizaram pontos como esses, mas essa perspectiva já estava arraigada e a tradição jurídica vai se reformando sempre sob os mesmos princípios. “É assim que esse aparato jurídico começou a tratar algumas pessoas como perigosas para justificar seu processo de punição”, explica, recordando a ideia do negro fugitivo.

Com o fim da escravidão, a figura do negro fugitivo também muda. “Nos séculos XIX e XX, esse negro fugitivo se tornou o vadio, aquele que não se inseriu no processo de industrialização e que poderia até ser preso por isso”, explica. Chegamos à segunda República e mais uma vez essa raiz se faz presente. Segundo a professora, não é mais o negro vadio, mas os movimentos sociais que são vistos como agitadores e baderneiros. “E, hoje, existem várias nomeações para essas pessoas que não produzem, que seriam descartáveis. Se observamos o perfil desses jovens, mulheres e negros mortos, podemos pensar realmente que existem ‘pessoas descartáveis’”.

Uma reação, um suspiro

Constituição de 1988 é vista pela professora Maria Palma como uma reação, pois é ali que começa a se conceber um projeto de direitos humanos, participação popular e muito mais. Entretanto, esse movimento, que trouxe muitos avanços, também não foi capaz de realizar ciclos completos, funcionando como uma tomada de ar, mas que não se reverte de fato numa nova caminhada. “Veja as questões da ditadura que de fato não passamos a limpo. Fizemos apenas um acordão e passamos para frente”, pontua. O resultado é que, mais uma vez, a gênese escravista segue adiante. “Todo o aparato repressivo da ditadura fica agora presente na polícia, nos presídios. A busca da repressão ao tráfico de drogas, a guerra ao tráfico, também é isso”, avalia.

O mundo muda e sufoca novamente

Se a Constituição de 1988 foi um suspiro, logo adiante se perde o ar novamente. “Apesar de todos os avanços, o mundo muda. Não é à toa que o Muro de Berlim cai em seguida. O capital muda e precisa se expandir”, diz Maria Palma. Ou seja, os avanços agora são submetidos a outros entraves e, ainda, de caráter global. Isso porque o capital que vai se reconfigurando para se manter vivo e potente vai atacando diretamente muitos dos direitos assegurados no processo constituinte. “E, daí, vemos hoje essas propostas de reforma da Previdência etc.”, exemplifica.

 

Maria Palma percebe, assim, a articulação de três forças: 1) uma histórica, essa questão do pensamento escravista, 2) a questão do capital internacional e, na contracorrente, 3) um desejo de uma sociedade mais justa, situadas no final da ditadura e que vão culminar no processo constituinte. “Temos duas forças tensionando para o não reconhecimento dos direitos”, destaca. “Compreendo que tivemos, no campo dos direitos sociais, avanços significativos, mas isso tudo fez com que essas outras duas linhas se colocassem em prontidão e reagissem. Afinal, foram avanços incompatíveis com as questões históricas e com o realinhamento do capital”, reflete a professora.

Fim de ciclo, momento de virada

Mas como pensar em reações? Essas são provocações quem vêm da plateia para a professora Maria Palma. “Estamos vivendo o fim do ciclo. Precisamos pensar no que nos trouxe até aqui e como avançar”, responde. “Essas minhas perspectivas parecem panfletárias, mas se formos nos deter em análises e na leitura de índices e documentos veremos como elas aparecem, como a violência de gênero e de raça tem relação com isso”, completa.

Assim, Maria Palma encerra sua fala não com uma proposta, mas com uma provocação. “Já vimos que o que fizemos não deu certo, precisamos então pensar caminhos novos. Não adianta repetir o que já vimos que não dá certo”. É como observa a recente criação do Sistema Único de Segurança Pública. “Já sabemos que isso não dará resultados pela forma como a política pública é pensada. Terá uma atuação superficial e os problemas que já conhecemos”, constata. “Talvez, mais interessante seja outro caminho, que passa por nos compreendermos enquanto pessoa, sociedade e pensar o quanto reproduzimos de velhas políticas. Aceito o outro, o homossexual, o negro etc., mas até onde?”, provoca. Para a professora, nos avaliando, poderemos enquanto sociedade pensar além do que hierarquiza, numa verdadeira proposta de construção social com participação popular.

Possui graduação em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUC – RS, especialização em Supervisão e mestrado em Serviço Social, pela mesma instituição, e doutorado em Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais pela Universidade de Zaragoza, na Espanha. Ainda realizou estágio pós-doutoral na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Foi presidente do Conselho Penitenciário do Rio Grande do Sul e Diretora Geral do Instituto Psiquiátrico Forense Maurício Cardoso. Também coordenou o Observatório de Direitos Humanos da Penitenciária Feminina madre Pelletier e foi consultora da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e o Adolescente para a elaboração do relatório da Convenção dos Direitos da Criança da Organização da Nações Unidas. Possui pesquisas e trabalhos publicados nas áreas de direitos humanos, violência, políticas penais e penitenciária. Atualmente é membro do Laboratório de Gestão de Serviços Penais da Universidade de Brasília – UNB.

Assista à íntegra da conferência

 

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.