Escola que abriga ‘alunos rejeitados’ é uma das seis que fechará as portas em 2018

Por Luís Eduardo Gomes.

Foto: Joana Berwanger

Júlio César Ribeiro Cardoso tem 14 anos. Na tarde desta quinta-feira (08), ele respondia a questão de uma prova sobre a origem dos répteis. Era decisiva para passar para a 8ª série, ainda que não saiba onde estudará no ano que vem. O local que frequenta atualmente, a Escola Estadual de Ensino Fundamental Doutor Miguel Tostes, no bairro Ipanema, em Porto Alegre, não está aceitando matrículas para o próximo ano. É uma das seis na cidade que estão sendo fechadas pela Secretaria de Educação.

O problema é que, quando chegou à Miguel, no início de 2017, era a primeira vez que Júlio gostava de estudar. Antes, havia passada por duas outras escolas onde havia rodado quatro vezes. Não gostava e não conseguia se adaptar. “Muita gente, muita bagunça, eu não prestava atenção. Os alunos ficavam bagunçando e eu bagunçava junto”. Precisava de uma escola diferenciada. Uma como a em que seu irmão, autista, estudava. “Meu irmão disse que era um colégio bom, que era legal, que tinha poucas pessoas”.

Hoje, Júlio já prefere ir para a escola a ficar brincando na rua. “Quando eu fico sem vir para aula é chato, aqui já estou acostumado com os meus amigos, que lá na rua eu não tenho. Eu gosto de vir para cá para aprender coisas novas. Gosto de artes, de desenhar, de estudar”.

O adolescente é apenas um dos muitos casos de estudantes que foram encaminhados para a Miguel Tostes quando “ninguém mais queria saber deles”. Criada em 1938 para educar os meninos do então Abrigo de Menores Odila Gay da Fonseca, a escola passou a ser aberta para toda a comunidade em 1996, com o objetivo de atender alunos com defasagem de idade/série de colégios próximos. Até 2015, ela oferecia turmas do 1º ao 9º ano do Ensino Fundamental, mas as turmas de 1º e 2º ano deixaram de ser ofertadas para 2016. No ano passado, 70 alunos estavam matriculados nas sete turma restantes, todas elas no turno da tarde e com limite de 12 alunos cada.

Cristiane Denise Brito é uma mãe cujos filhos adoravam a escola, mesmo sem terem “algum problema”. Seus três filhos passaram pela Miguel. O mais velho, de 23 anos, chegou a cursar o jardim. A filha do meio acabou recentemente o 9º ano e já precisaria trocar de escola. O mais novo, de 13 anos, tinha passado para a 8ª série. “O meu filho não quer trocar de escola. A escola Miguel Tostes é uma mãe com coração pequeno, mas que aceita tudo e abraça todos. Nunca teve ninguém melhor que ninguém. Os problemas sempre foram resolvidos. Nunca teve greve”, relata Cristiane, que diz ser uma das mães mais indignadas com a situação. Apesar de o caso ser irreversível, ela ainda tenta elaborar um abaixo-assinado ou organizar um protesto para que a escola permaneça aberta. Reclama que sequer foi avisada formalmente e que, quando procurou a diretora, não recebeu nenhuma justificativa que pudesse aceitar.

Segundo a Secretaria Estadual de Educação (Seduc), os diretores das escolas que serão fechadas foram chamados no final do mês de novembro pela secretaria e comunicados sobre a reorganização da rede estadual. Contudo, a notícia do fechamento de seis escolas só foi confirmada pela pasta em meados de janeiro, pela imprensa. Além da Miguel, fecharão as portas em 2018 as escolas Alberto Bins (bairro Santa Tereza), Benjamin Constant (bairro São João), Oswaldo Aranha (Vila Ipiranga), Marechal Mallet (Vila Jardim) e Plácido de Castro (bairro Higienópolis).

Édila Sílvia de Carvalho Barella, que há 21 anos dá aulas na Miguel Tostes, explica que os professores souberam do fechamento no início de janeiro, mas ainda como boato. Formaram então um grupo para ir até a Seduc, onde conversaram com a coordenadoria pedagógica, que confirmou o fim da escola. Somente a partir disso é que a secretaria teria tomado a iniciativa de marcar uma reunião na escola, mas os representantes da Seduc estiveram no local pela parte da manhã, quando não havia ninguém ali – a escola só funciona à tarde. Coube então ao conselho escolar e à direção informar os pais, o que ocorreu no final de janeiro. “Nós é que tivemos que fazer essa comunicação aos pais que a escola ia fechar”, afirma Édila. “E não foi nada oficial, sem documento, sem nada”, complementa Janaí de Mattos Alves, há dois anos lecionando na Miguel. A diretora da escola foi contatada, mas preferiu não conversar com a reportagem.

A justificativa oficial da Seduc para o fechamento das escolas é o número reduzido de alunos em cada uma delas e a proximidade geográfica com outras instituições. O que vai acontecer com as escolas? A Secretaria da Modernização Administrativa e dos Recursos Humanos (Smarh) havia admitido que as escolas fechadas poderão ter seus terrenos vendidos, posição da qual o governo Sartori recuou posteriormente. No entanto, uma visita ao local deixa claro que deve haver bastante interesse do mercado imobiliário. Apesar de pequena, a escola ocupa um grande terreno ao lado do Núcleo de Abrigos Residencial Lar Ipanema – atual nome da instituição -, cercado por casas de classe média alta e condomínios de elevado padrão.

Para as professoras Édila e Janaí, é impensável que a escola seja fechada sob a justificativa de racionamento de finanças. “A grande maioria dos nossos alunos tem defasagem de idade. Eu tenho aluno do quinto ano com 16 anos. Então isso é um motivo pelo qual ela é diferenciada. A gente dá um atendimento especial para esses alunos e por isso se permite o avanço, para adequá-los à faixa etária deles”, explica Janaí. “Fora isso, temos alunos autistas, alunos do abrigo aqui de cima, do Pão dos Pobres, temos alunos usuários de drogas, menores infratores, que não se adaptam a uma sala de aula com 35 alunos. Alguns deles passaram por cinco ou seis escolas”.

Édila reconhece que a Lei de Diretrizes Básicas da Educação, de 2006, determina que todas as escolas têm que ser “inclusivas”, mas que isso acaba ficando mais na teoria do que na prática. “A diferença é o número mesmo. Como é que tu pode atender 35 alunos com a mesma qualidade que tu atende 12? Aqui eles estão ali, tu pode sentar no meio deles, tu pode conversar. Os nossos alunos são muito dependentes nas atividades”, diz Édila, destacando que a maioria dos seus alunos sequer estão alfabetizados no 3º ano. “Eles têm idade, mas não conseguiram se alfabetizar ainda. Então, qualquer atividade que tu dá para eles, precisar estar junto.

Janaí afirma que, antes de vir para a Miguel, dava aulas para uma turma de 35 alunos em outra escola. “A gente não consegue dar o mesmo atendimento. A gente tenta ver o caso de cada um, mas realmente fica difícil. Com 12, a gente sabe a história de cada um deles, o que passa na família, conseguimos dar um carinho maior e a parte pedagógica também. Nessas quatro horas da tarde, eu consigo dar uma atividade diferente para cada um deles e sentar com um por um para explicar. Eu tenho aluno que está na divisão [operação matemática] e o outro ainda está na adição, mas eu conseguia. Com 35, é difícil”, diz.

O que acontece com os alunos com esse perfil em uma “escola normal”? Para as professoras, a falta de uma atenção individualizada a eles é uma das grandes causas da evasão escolar no País. “Pega um menino de 15 anos, numa escola normal, ele vai estudar com criança de 10, 11 anos. Não é a mesma cabeça, não é a mesma vivência, aí eles desestimulam, não querem mais”, pontua Janaí.

Édila destaca ainda que, quando os alunos vão crescendo e ficando para trás, acabam chegando em uma idade que precisam trabalhar. Poderiam estudar à noite, mas, por causa da violência, muitos pais temem. Por outro lado, há os casos em que as famílias mantêm os adolescentes na escola para não perderem o benefício do Bolsa Famílias. “E a escola é obrigada a ficar com eles, aí o que acontece? Incomodam dentro da sala de aula, o professor tendo que dar conta de muitos outros, tira o aluno da sala de aula, é o que mais acontece. E esse aluno vai rodando e para de estudar, porque a escola não é um lugar bom para ele”, diz.

Atenção especial 

Assim como Júlio, Pablo André também rodou por vários colégios, repetindo várias séries. Aos 12 anos, ainda estava na 4ª série. Duas vezes na terceira, duas vezes na quarta. “Eu acho que, na verdade, ele não queria mesmo. Não gostava dos professores e não fazia questão de aprender”, diz a mãe, Seloí Leal de Souza, explicando que o filho apresentava grandes dificuldades de aprendizado, mas nunca havia sido diagnosticado com um problema clínico. No início de 2017, Pablo foi matriculado na Miguel Tostes.

“Tu pegava o caderno dele antes, tinha um texto que começava e outro que terminava. Não tinha desenvolvimento. Era um começo e um fim sem nada. Agora, eu pego o caderno dele e me pergunto: ‘onde está o meu filho?’ Ele escreve uns textos bem desenvolvidos, bem claros, com a letra bonita”, diz. “Aqui, ele encontrou uma parte pedagógica bem importante, que desenvolveu. Conseguiu aprender. Tudo que ele não sabia antes, ele aprendeu aqui”.

Para Seloí, o principal diferencial da escola Miguel Tostes, que permitiu que seu filho se desenvolvesse, foi a atenção que passou a receber da professora, o que só foi possível pelas turmas serem menores. “E ele gostou dela. Isso também é importante. Se não tivesse gostado, teria sido como nos outros, não teria aproveitado”.

No final de 2017, Pablo concluiu a quinta série. Sim, na metade do ano já havia sido transferido para a série seguinte, uma vez que, por se tratar de uma escola diferenciada e voltada para alunos com defasagem idade/série, a Miguel Tostes conta com uma equipe pedagógica que faz avaliações individuais sobre a capacidade de aprendizado e realização de atividades dos alunos e, quando julga necessário, permite o avanço de séries.

Seloí avalia que, agora, o filho já conseguirá seguir normalmente as aulas em outra escola, mas lamenta que outras crianças com dificuldades semelhantes às de Pablo não terão a mesma oportunidade. “Eu acho que o Pablo, se for para outro colégio, vai continuar se desenvolvendo, porque acho que era só alguém acreditar, mostrar para ele que podia. Mas tem outros alunos que têm problemas e vão seguir lá, com aquele monte de alunos nas classes. ‘Ah, são os problemáticos’. Os professores passam batido, nem passam de série”, diz.

Questionada sobre a situação dos alunos da Miguel Tostes, a Seduc respondeu por meio de nota: “Os alunos e os professores da Escola Nações Unidas, local onde foram encaminhados os estudantes da Escola Miguel Tostes, serão acompanhados pela Divisão Porto Alegre e terão atendimento prioritário do setor pedagógico e da Educação Especial, quando for o caso. A Seduc esclarece, igualmente, que a Comissão de Prevenção de Violência Escolar (Cipave), que trata de casos de bullying, por exemplo, promoverá ações de acolhimento (projeto “amigo acolhedor”) em escolas da rede, a partir de março”.

Moradora da Tristeza, Seloí diz que fazia um esforço para pagar passagem para o filho estudar na Miguel Tostes porque via o seu desenvolvimento. A sugestão da Seduc é que Pablo se matricule na Monte Líbano, a escola mais próxima da Miguel Tostes, também localizada no bairro Ipanema. Mas, se é para colocar o filho numa “escola normal”, ela prefere que Pablo estude em uma escola na Tristeza, onde não precisará pagar passagem. “A Tristeza tem vários colégios, mas todos com alunos normaizinhos e os que têm problema vão ficando para trás. E a gente, mãe, se conforma e acaba achando que é normal, só que agora eu vi que não é normal. Se ele veio para cá, aprendeu, desenvolveu, sabe falar sobre qualquer assunto contigo, então outros também têm que ter uma chance”.

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