Era uma vez um país a construir

Por Cesar Locatelli, Jornalistas Livres.

Era uma vez quatro empreiteiras

Na verdade verdadeira foram e são muitas mais. Mas quatro eram as líderes, que ultrapassaram os limites da construção para ramos como petroquímica, telefonia e mineração.

Andrade Gutierrez

“Criei o binômio ‘energia e transportes’”, dizia Juscelino Kubitschek, certamente para alegria das empreiteiras. Especialmente as mineiras: Rabello, Andrade Gutierrez e Mendes Júnior, estavam entre as principais. No grupo das gigantes, a Andrade Gutierrez, criada em 1948, “passou a fazer suas primeiras obras rodoviárias na gestão de Kubitschek no governo estadual, conseguindo seu primeiro contrato fora do estado no período de JK como presidente da República, com as obras da BR-3, que ligava o Rio a Belo Horizonte”.

Mendes Júnior

A Mendes Júnior, fundada em 1953, através de estreita ligação com o Estado mineiro conquistou importantes contratos na Cemig e em Furnas. “Assim, a Mendes Júnior foi responsável por diversas usinas realizadas pelas duas estatais e, com isso, tornou-se a segunda construtora de hidrelétrica do país na ditadura, sendo uma das responsáveis por Itaipu.”

Norberto Odebrecht

Impulsionada por obras na Bahia e região nordeste, a baiana Norberto Odebrecht, criada em 1944, teve, a partir de 1953, uma cliente especial: a Petrobras. “Assim, vieram o oleoduto Catu-Candeias, em 1953, a refinaria Landulpho Alves, em 1957, o edifício central da Petrobras em Salvador, em 1960, o edifício da Companhia Pernambucana de Borracha Sintética (Coperbo), em 1965 e, depois, fora da região Nordeste, o edifício-sede da BR no Rio de Janeiro, em 1972, além de plataformas marítimas, nos anos 80”.

Camargo Corrêa

A fundação da paulista Camargo Corrêa data de 1938. O estado de São Paulo, já ao despontar como principal centro industrial do país, era altamente demandante de construtoras para o desenvolvimento de estradas, usinas hidrelétricas, ferrovias e obras urbanas. O sócio Sílvio Brand Corrêa era casado com a irmã de Adhemar de Barros, interventor no estado. As ligações com a burguesia paulista e com o Estado possibilitaram a chegada da empresa, no início da ditadura, já no primeiro lugar no ranking brasileiro de construtoras.

Era uma vez uma ditadura

A ditadura civil-militar cortou gastos sociais, reprimiu movimentos sociais e sindicatos e arrochou salários. Os recursos, muitas vezes direcionados a estranhas catedrais, passavam invariavelmente por empreiteiras:

Como um dos últimos atos de seu governo, Castello Branco promulgou uma nova Constituição e uma de suas medidas era desobrigar o governo a investir coeficientes mínimos em educação e saúde. A decisão resultou na contínua redução do orçamento do MEC, que saiu dos 10,6% dos gastos totais da União em 1965 para 4,3% em 1975 e os gastos com Saúde foram de 4,29% em 1966 para 0,99% do orçamento da União em 1974 1151. Os recursos drenados da Educação e da Saúde permitiram o reforço dos gastos com investimentos em infraestrutura, como a construção de estradas e de hidrelétricas, que iam se intensificar nos anos posteriores ao governo Castello.

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Era uma vez escândalos, desmandos, privilégios

Cut and Cover

Um dos métodos para construção das linhas subterrâneas dos metrôs consiste em cortar o terreno, abrir uma vala e depois cobrir (cut and cover). Engenheiros ingleses alertaram que o projeto da linha norte-sul do metrô de São Paulo estava errado pois havia áreas em que era impossível escavar e cobrir, pela quantidade de edifícios na região. Ao que Sebastião Camargo teria dito:

Ganhamos a concorrência. […] Vamos fazer uma proposta em cut and cover só para ganhar a concorrência. Quando formos assinar o contrato, diremos à Companhia do Metropolitano que em ‘cut and cover’ é impossível, pode haver uma tragédia. Eles terão que mudar de ideia.

E assim ocorreu. A Camargo Corrêa conseguiu os aditivos ao contrato para usar os “tatuzões”, mesmo sob protestos da Cetenco.

Delfim, relatório Saraiva e a Camargo Corrêa

Figueiredo levou a Golbery, em 1973, a denúncia que Delfim estaria negociando com agentes financeiros e industriais franceses para a construção da usina da Cesp em água Vermelha pela Camargo Corrêa. E tudo ocorreu antes da concorrência ter sido feita.

O General Figueiredo disse a Golbery:

Eu tive uma documentação que eu levei para o presidente há uns meses atrás, do Delfim, de que antes da concorrência, aquela da Água Vermelha, ele afirmava a um grupo francês que queria entrar no financiamento, de que a firma construtora seria a Camargo Corrêa. Antes da concorrência. Então está aí, na cara. É Camargo Corrêa, é Bradesco, é tudo a mesma panela.

O Coronel Saraiva relata uma conversa, com dirigente do banco Crédit Commercial de France, que acusa Delfim de ter recebido US$ 6 milhões por intermediação dos equipamentos de Água Vermelha. Além desse caso, o banqueiro afirmava que o banco teria se recusado a pagar US$ 60 milhões por outro contrato para Tucuruí. As investigações não prosperaram, mesmo tendo sido tema de CPI em 1984.

Durante o delfinato (1967-1974), período de grande poder de Delfim Netto como Ministro da Fazenda, não somente a Camargo Corrêa seria a grande beneficiada, mas também a Constran, a Cetenco e a Mendes Júnior. Dos 21 anos de ditadura, 1964 a 1985, somente por duas vezes a Camargo Corrêa deixou de ser a principal empresa de engenharia do país.

Dispensa de concorrência e edital sujo

A dispensa de concorrência foi largamente usada na ditadura. Houve um projeto na Câmara que limitava esse mecanismo, de José Camargo (MDB-SP). Disse ele: “há um abuso na utilização da faculdade de dispensa de consulta pública para aquisição de material, contratação de serviço e execução de obras, face a liberalidade da legislação existente”

Outro mecanismo para dirigir a obra a uma dada empreiteira é conhecido como “edital sujo”. “É um edital com cláusulas que permitem escolher antecipadamente o vencedor. As mais comuns são o preço mínimo oculto e os critérios técnicos de desempate, todos subjetivos”, explicou, o então presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção, Luís Roberto Andrade Ponte.

Emendas Parlamentares

Lafayette Prado, ex-Presidente do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (1966) afirma que:

Para contar com recursos suficientes para cobrir o seu faturamento previsto, é frequente a atuação do empresário no sentido de, com a ajuda de parlamentares e o serviço de lobistas, assegurar a introdução de emendas ao Orçamento da União, alocando para as obras de seu interesse os recursos desejados.

Geisel e a Odebrecht

A empresa não tinha grande expressividade até aproximar-se de Ernesto Geisel, presidente da Petrobras (1969-1973) e presidente da República (1974-1979). Se em 1971, a Odebrecht figurava na 19a posição no ranking das maiores construtoras brasileiras, já em 1973, estava em 3lugar. Dois contratos fizeram triplicar o faturamento da empresa em 1973: as obras do aeroporto do Galeão e da usina nuclear de Angra dos Reis.

Foram muitas as acusações públicas dirigidas ao privilégio concedido à Odebrecht na construção das usinas nucleares. A Tribuna da Imprensa denunciava taxa de administração (18%) muito superior à taxa normal (5%). Além de ser pública a aproximação de Geisel, quando presidente da Petrobras, à empreiteira baiana, Geisel ainda nomeou Ângelo Calmon de Sá, ex-diretor da Odebrecht, para o Ministério da Indústria e Comércio. Acusações de favorecimento à Odebrecht também eram dirigidas a Antônio Carlos Magalhães, também baiano, levado para a Eletrobras por Geisel,

Em 1992, Emílio Odebrecht, que estava sendo acusado de envolvimento com irregularidades do governo Collor, do esquema de PC Farias, do BNDES, das privatizações. Ele responde, da seguinte modo à pergunta, do jornal do Brasil, se já teria subornado alguém:

Então, o que é hoje a corrupção nesse país? Eu acho que a sociedade toda é corrompida e ela corrompe. Hoje para o sujeito resolver alguma coisa, para sair de uma fila do INPS, encontra os seus artifícios de amizade, de um presente ou de um favor. Isso é considerado um processo de suborno. O suborno não é um problema de valor, é a relação estabelecida.

Era uma vez um oligopólio e uma transição para a democracia

Se movimentos sociais, sindicatos e a esquerda em geral tiveram que recomeçar suas trajetórias políticas, praticamente, a partir do zero, havia outros que, com melhor sorte, entravam na democratização com a faca e o queijo:

Naquele momento já se assentava um oligopólio consolidado de quatro empresas – CC, AG, NO e MJ [Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, Norberto Odebrecht, Mendes Júnior] – que continuaram com poder dali por diante e mantiveram força na transição política e no novo regime político pós-1988.

Notas

– As informações e citações do texto foram extraídas da tese de doutorado de 2012, pela Universidade Federal Fluminense, de Pedro Henrique Pedreira Campos, com o título A Ditadura dos Empreiteiros: as empresas nacionais de construção pesada, suas formas associativas e o Estado ditatorial brasileiro, 1964-1985

– A tese deu origem ao livro Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988, do mesmo autor e publicado pela Eduff, 2014.

– O livro foi vencedor do prêmio Jabuti em 2015.

https://jornalistaslivres.org/2016/12/ditadura-e-formacao-do-oligopolio-das-empreiteiras/

 

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