Entrevista com o escritor angolano Pepetela: “É preciso resistir tranquilamente, porque a onda vai mudar”

O escritor angolano falou sobre ilusões, desilusões, novas tecnologias, Bolsonaro, educação (ou a falta dela) entre outros assuntos. Ao final, ficou a impressão que, muito mais do que uma entrevista, tivemos, sim, uma grande aula

Por: Julinho Bittencourt

Imagem: Reprodução

As pessoas começavam a se acumular no entorno da Livraria Realejo, um pequeno ponto de encontro de artistas, jornalistas e outros curiosos da cidade de Santos, litoral de São Paulo, no final da tarde daquela quinta-feira (17), início de primavera.

Sentado tranquilamente em uma das poucas mesas do local, está o responsável por todo aquele movimento. Um senhor de 77 anos, chamado Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos. Dito assim, quase ninguém é capaz de saber de quem se trata. Mas, ao ser chamado pelo seu pseudônimo, tanto ali, quanto em várias outras partes do mundo, tudo muda. Trata-se, enfim, de Pepetela, o grande escritor angolano, um dos maiores da literatura lusófona contemporânea.

Assim que me apresento como jornalista da Revista Fórum, ele reage: “sim, conheço”. Sua tranquilidade contrasta com a sua história. Pepetela lutou ao lado do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), entre os anos 60 e 70, na guerra contra a colonização portuguesa. Participou, inclusive como vice-ministro da Educação, do governo de Agostinho Neto. Ao sair, em 1982, virou escritor em tempo integral e tem publicado desde então uma das maiores obras da nossa língua.

Pepetela falou, durante quase uma hora, sobretudo sobre seus assuntos preferidos: literatura e política. Sempre sem demonstrar nenhuma agressividade ou até mesmo eloquência, tocou o dedo na ferida de questões comuns que afligem Angola e o Brasil, entre outros países do planeta, como o ultraneoliberalismo, a ascenção da extrema-direita. Falou sobre ilusões, desilusões, novas tecnologias, Bolsonaro, educação (ou a falta dela) entre outros. Ao final, ficou a impressão que, muito mais do que uma entrevista, tivemos, sim, uma grande aula.

Foto: Julinho Bittencourt

Fórum – No seu livro “A Geração da Utopia” temos duas partes absolutamente distintas. A primeira, que é a da luta pela libertação, e a segunda, já no governo propriamente dito. Como é viver intensamente a utopia, conquistá-la e, aos poucos, vê-la se perder? Como que se recupera disso e segue adiante?

Pepetela – A literatura ajuda (risos). Viver em certas situações e ao mesmo tempo escrever sobre ela, provoca uma relativização. O quer é mau é relativamente mau, o que é bom é relativamente bom. A esperança é sempre o limite. Obriga a um distanciamento da realidade e isso ajuda, penso, a superar as desilusões. Para se ter uma grande desilusão tem que ter uma grande ilusão. Eu já não tinha uma grande ilusão, portanto, não tive desilusões. Eu sempre tive uma visão crítica sobre o processo, mas precisava estar dentro dele, para tentar, enfim, explorar um pouco mais para frente.

Foto: Julinho Bittencourt

Fórum – No Brasil, guardando as devidas proporções, vivemos um processo semelhante com os governos Lula e Dilma, onde enxergamos os limites de ser governo, como se tivéssemos batido em um muro. José Saramago tem uma boa frase sobre isso: “O poder de fato não disputa eleições”. Você acompanhou esses governos? O que achou da experiência brasileira? Há alguma comparação com a de Angola?

Pepetela – Não, acho que foi muito diferente. As situações eram diferentes. Nós vivemos um processo de independência. O Brasil já era independente há dois séculos. A própria experiência política do Brasil é muito maior do que a que tínhamos lá. Agora, coisas parecidas, tentativa de fazer mais e haver uma certa frustração, pois aquilo que foi feito começa a desaparecer, passar para outras mãos, aí sim é semelhante. Mas nós, lá, por exemplo, tivemos uma mudança na presidência do país há dois anos e o novo presidente, João Lourenço, elegeu-se com uma legenda: “Corrigir o que está mal e melhorar o que está bem”. Junto a isto, teve o combate à corrupção e a maior transparência na coisa pública. Isto fez com que grande parte das pessoas, até as que votaram contra ele e a sua legenda, mudassem. Uma série de ativistas que fizeram a luta, muito anos contra o antigo presidente para que saísse do poder, aderiram, e deram a ele o benefício da dúvida. Durante o primeiro ano, estava tentando cumprir. Mas, ao fim de um ano, as forças que têm muito a perder, já estavam organizadas dentro do partido do poder. E ele, por muito boa vontade que tenha, aparentemente não tem forças para conseguir levar o seu projeto até o fim, por conta das forças contrárias, as que tem o poder financeiro, o dinheiro, e podem financiar muita coisa. Isto é pena, pois estávamos entrando em um ciclo africano de fim de governos quase que eternos, da mesma pessoa, da mesma família, para mais democracia, mais liberdade. Nós entramos nesta fase e ela é capaz agora de não durar tanto.

Foto: Julinho Bittencourt

Fórum – E que lutas ainda precisam ser travadas em Angola?

Pepetela – A primeira é continuar essa luta contra a corrupção. Essa tentativa apressada de criação de uma burguesia, há também uma certa tendência ultraliberalista na economia, que é global e lá se manifesta claramente. Querem privatizar tudo. Vai ser mais difícil do que pensam, pois não é tão fácil fazer isto. Precisamos, fundamentalmente, aumentar a injustiça social. Diminuir o fosse que há entre os muitos ricos, que enriqueceram ilegalmente, que é isto que o João Lourenço, o novo presidente, está a tentar fazer, até agora com pouco sucesso. Pela primeira vez na história, em Angola, um ministro foi para a cadeia, depois de 43 anos de independência.

Fórum – Aqui no Brasil foi um presidente e isso não foi um avanço.

Pepetela – Claro, claro, mas lá é óbvio que ele e todos os outros que foram presos ao mesmo tempo, têm claramente culpa. Um dos problemas que existem lá é que o Ministério Público não tem experiência nenhuma em combater a corrupção, crimes financeiros. Nunca se fez, não havia, este tipo de processo. Esta pouca experiência faz com que os processos sejam mal feitos. Os deslizes seguem mais ou menos acusação. Mas as pessoas ficam com dúvidas.

Foto: Julinho Bittencourt

Fórum – As pessoas em Angola acompanham de maneira geral o que acontece no Brasil com o governo Bolsonaro?

Pepetela – Eu tenho acompanhado, mas acho que o país não. Há poucas notícias lá sobre isso. Eu tenho meus meios de ter informação e tenho acompanhado com preocupação. Mas acho que os altos e baixos na vida dos povos são sempre temporários, tanto os altos quanto os baixos. É temporário. É preciso resistir tranquilamente, porque a onda vai mudar.

Fórum – O mundo parece ter dado uma grande guinada, sobretudo com as novas tecnologias, internet e produção cultural eletrônica. Vários exemplos destas mudanças aparecem no livro “Também os brancos sabem dançar”, do músico e escritor luso-angolano Kalaf Epalanga, muito bem recomendado por sinal por seus colegas José Eduardo Agualusa e Mia Couto. Você, aos 77 anos, ainda encontra energia e paciência para acompanhar coisas como a música eletrônica, os Slams de poesia falada entre outras?

Pepetela – Tento seguir, mas realmente tenho uma certa dificuldade de aprendizado em usar essas coisas. A internet ainda vai, mas vou seguindo. O Kalaf é da minha terra, de Benguela. Ele era só conhecido como músico, agora também como escritor, mas nunca nos cruzamos. Ele viaja pelo mundo. É bom que aproveite enquanto é jovem.

Foto: Julinho Bittencourt

Fórum – Como você acha neste momento que o Brasil lê a sua obra? E o que você tem lido do Brasil?

Pepetela – Neste momento são mais os jovens que me leem, por conta do fenômeno da Fuvest, o livro “Mayombe” foi indicado. Hoje o meu público é muito jovem, o que é bom, há uma certa renovação. Eu tenho seguido pouco a atual literatura brasileira. Com a idade a gente lê menos. E agora eu entrei em uma maluquice de reler livros que li há 40, 50 anos. “A Montanha Mágica” de Thomas Mann, “Gabriela Cravo e Canela” e “Terras do Sem Fim”, do Jorge Amado. Juntei uns trinta livros do Garcia Marques, Borges e estou relendo. É muito interessante reler tantos anos depois. “A Montanha Mágica” eu li com 17 anos e não gostei, mas nunca interrompi uma leitura. Agora ao reler foi um prazer. É um livro importante que, para mim, não era tão interessante. Gabriela, por exemplo, já gostei muito mais na primeira leitura.

Fórum – Há um interesse ainda tímido, mas crescente, sobre a literatura lusófona da África no Brasil. Acontece o mesmo em Angola com relação aos escritores brasileiros? Se sim, quais deles?

Pepetela – Quando eu era muito jovem, a literatura brasileira entrava muito facilmente em Angola. Não havia censura de espécie alguma. Por isso, eu conheci, desde muito cedo, alguns nomes da literatura do Brasil. Hoje, lê-se muito pouco. Chegam menos autores brasileiros, por uma questão financeira, porque o livro é extremamente caro. Tanto o livro estrangeiro quanto o livro nacional. As pessoas não têm dinheiro para comprar. Os que querem ler, gostam de ler, não têm dinheiro para comprar. E os que têm muito dinheiro não leem (risos). Só têm tempo para gastar dinheiro, não têm tempo para ler. Do meu tempo eu li muito o ciclo do Nordeste, José Lins do Rêgo, Jorge Amado, Graciliano Ramos, que eu recebi influência direta. Sempre digo isso e não vou negar. No meu começo, particularmente, por um lado Jorge Amado e por outro, por contraste, Graciliano Ramos, me influenciaram profundamente. Até na convicção de viver de escrever, até nisso. Depois vieram outros mais novos que eu segui acompanhando.

Foto: Julinho Bittencourt

Fórum – Como o sr. acompanha a questão do corte de recursos em educação? Como é em Angola?

Pepetela – Se um país quer competir com outros no campo das novas tecnologias, tem que formar as pessoas. Uma diminuição dessas vai significar um atraso no pais daqui a alguns anos. Isso é claro e até o FMI está de acordo.

Fórum – Voltando ao que você falava sobre as privatizações, a Educação entra nessa questão também, não?

Pepetela – Lá em Angola acontece assim também. A educação privada é para a elite até a universidade. Quando chega lá, querem ir para a universidade pública. Há essa tendência da elite de ter os filhos em colégios privados. E são extremamente caros. Um funcionário público de médio escalão, por exemplo, paga pela escola do filho metade do seu salário. Se tem dois filhos, vai o salário todo. O Estado tem que fazer um esforço muito grande nisso, de melhorar a escola pública, e assim, a população ter melhores recursos. Se não, ela continua sendo excluída. É preciso diminuir as injustiças sociais tremendas que foram herdadas do colonialismo.

Fórum – A gente conversando assim percebe que você mantém a chama acesa, mantém a esperança?

Pepetela – Sim, na juventude.

Fórum – Na sua também?

Pepetela – Imagina (Risos), a minha não vai longe. Mas a juventude tem que pegar no baque.

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