Entrega da soberania nacional e crises cambiais na América do Sul

Por José Álvaro de Lima Cardoso.

Em cerca de um mês, até 15 de junho, o Banco Central brasileiro colocou no mercado, através dos chamados swaps cambiais (1), US$ quase 39 bilhões, visando conter a disparada da cotação da moeda norte-americana, algo equivalente a cerca de R$ 145 bilhões (cotação do dia 15.06). Desde 2002, quando os swaps começaram a ser usados para controle do mercado de câmbio, nunca tinham sido feitos tantos contratos, em intervalo tão curto de tempo. Ou seja, este é o maior volume de swaps cambiais já utilizados na história pelo Brasil. A instabilidade cambial brasileira vem na esteira da crise Argentina, que obrigou o vizinho a tomar emprestado US$ 50 bilhões ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Argentina, Turquia e Brasil, até momento são os países que têm sido mais afetados pela atual crise cambial internacional. 

Para tentar deter a sangria de capitais o governo argentino aumentou recentemente a taxa básica de juros para 40% ao ano, o que compromete diretamente o crescimento do PIB, e eleva ainda mais a taxa de desemprego. O déficit de balanço de pagamentos em conta corrente (que inclui comércio de bens, serviços, juros e outras rendas do capital) já beira os 5% do PIB. O pior é que a maior parte do financiamento desse déficit estava sendo feito através de endividamento externo: entre 2015 e 2017, a dívida externa da Argentina saltou de 28% para 36% do PIB. Até há pouco tempo, observe-se, a Argentina era a preferida dos mercados e o FMI fazia avaliações positivas recorrentes daquela economia. 

Um primeiro problema é que a Argentina não dispõe de reservas suficientes para enfrentar o ataque especulativo. As reservas de US$ 50 bilhões (dado de dezembro), em relação ao tamanho da economia, menos de 9% do PIB, são consideradas abaixo do necessário. E essas são reservas brutas, as líquidas totalizam cerca de US$ 40 bilhões, já que o restante está comprometido com uma operação internacional de swap bilateral com a China.

 

Dada a proximidade da Argentina com o Brasil, e as semelhanças no tipo de políticas praticadas lá e aqui, o governo do Brasil se apressou em comunicar que não há o risco de crise cambial no país. De fato, a posição do Brasil é melhor do que a da economia argentina. A parcela da dívida que está indexada ao dólar não atinge 3%, sendo que o país é credor líquido em dólar. Ademais, o déficit em transações correntes é baixo. Nos últimos 12 meses, até abril, o saldo negativo é de cerca de US$ 8,9 bilhões, o que corresponde a um déficit de 0,43% do PIB, situação extremamente confortável. 

Além disso, as reservas internacionais no conceito liquidez totalizaram US$ 380 bilhões em abril. O estoque de swaps cambiais, por sua vez, segundo o Banco Central, é de apenas US$ 24 bilhões, pequena fração das reservas.

Mais ou menos entre 2000 e 2016, os países que reduziram sua vulnerabilidade externa na América do Sul, tinham assentado suas políticas socioeconômicas em três pilares básicos: 1º) Inclusão social e combate à pobreza; 2º) recuperação do papel do Estado em todos os aspectos; 3º) política externa com relativa independência. Tanto o Brasil, quanto Argentina, fizeram muito nessas três áreas. No caso da Argentina as políticas, em regra, foram ainda mais ousadas do que no Brasil (vide o caso da “expropriação” da YPF, que havia sido privatizada nos anos 1990, por Carlos Menem). 

Outros países da América do Sul praticaram também políticas bastante mais ousadas que as do Brasil. Taís políticas, como se sabe, sofreram desde o início, dura oposição do governo imperialista dos EUA e de seus braços políticos e econômicos (como o FMI). 

Tanto o Brasil, quanto a Argentina, no período em que desenvolveram políticas baseadas nos mencionados pilares, não sofreram crises cambiais mais fortes. O Brasil inclusive, aproveitou o período de vacas gordas de valorização do preço das commodities para acumular reservas internacionais. Na crise de 2008, inclusive, a estratégia do Brasil foi utilizar os bancos públicos para suprir o desaparecimento do crédito, e seguir com as políticas de expansão do mercado consumidor interno. O restante da América do Sul, com suas especificidades, adotou a mesma linha geral. Em decorrência dessa política, o Brasil, e os demais países, não sofreram tanto os impactos da crise financeira mundial, pelo menos no seu primeiro momento. No caso do Brasil, a economia praticamente não cresceu em 2009 e, em função da política de “fuga para a frente”, voltou a crescer no ano seguinte. 

O ciclo de política econômica agora, é o oposto, tanto na Argentina, quanto no Brasil. Os dois países vêm encaminhando ações que levam ao enfraquecimento do Estado nacional, estão privatizando ou sucateando as empresas estatais, estão desmontando as políticas de segurança alimentar e aumentando a fome; realizam políticas que reduzem o mercado interno e provocam queda da renda dos trabalhadores.  

Em ambos os países vem aumentando a taxa de desemprego e as formas precárias de relações de trabalho e se interrompeu a política de aumento real de salários. Ademais, estão tentando privatizar o que for possível e destruindo o que sobrou da indústria, condenando a região a ser uma eterna fornecedora de matérias primas para o mundo desenvolvido. 

São políticas que apontam na direção contrária à construção de projetos nacionais de desenvolvimento, como vinha ocorrendo antes, apesar das grandes limitações dos mesmos. Tais políticas tornam estes países da América do Sul, cada vez mais, meros fornecedores de matérias primas para os países centrais desenvolverem suas indústrias. Começando pelo petróleo (no caso do Brasil, principal motivação do golpe), mas também água e outros minerais fundamentais para a indústria. Nesse quadro de entrega da soberania e de destruição de direitos sociais as economias do subcontinente se dirigem, de forma veloz, a uma fragilidade econômica crescente, que as torna refém das crises cambiais. Não apenas em função das políticas de fragilização da soberania e de destruição de direitos, mas também pela crise política decorrente da incapacidade de os governos controlarem a crise. No caso do Brasil este último problema é agravado pela absoluta ilegitimidade do governo. 

 

1 Swap é um termo inglês que significa troca de uma rentabilidade futura por outra com o acerto da diferença a pagar ou a receber no vencimento do contrato. É uma cobertura de risco cambial. Neste tipo de operação de câmbio ocorre simultaneamente a compra e a venda de moedas.

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José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.

 

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