Ensaio sobre a insensatez


Por Raul Longo.

As metáforas de José Saramago em “Ensaio sobre a Cegueira” e “Ensaio sobre a Lucidez” cabem em qualquer tempo e qualquer parte, inclusive no Sambaqui.

Nos anos 80 alguém teve a insensata idéia de substituir o bosque da Ponta por um hotel. Transformariam um espaço público em privado.

Eram tempos de ditadura e dos destituídos de sensatez para diferenciar o público e o privado e foi preciso a comunidade do bairro se mobilizar e manifestar para recompor o exercício da razão. Criou-se a Associação de Moradores e com o esforço de todos se garantiu o bosque e suas árvores.

Essa luta envolveu inclusive pessoas de outros bairros e entre elas o Orlando Carlos da Silveira.

Nascido no Rio Grande do Sul, Orlando tornou-se manezinho da ilha no sotaque, no jeitão tranquilo e pacífico, no bom coração, no respeito e atenção que dedica a todas as pessoas com que convive. Naquele tempo, embora até hoje poucos saibam quem é o Orlando, suas canções sobre as belezas da Ilha já eram famosas e conhecidas por onde quer que se ande. E também pelos turistas que visitam Florianópolis.

Embora o governo desse estado de Santa Catarina e a administração municipal pareçam não perceber, o turismo é a nossa mais evidente fonte de renda. Sem o turista não se venderia arte e artesanato, não se teria a quem prestar os mais diversos serviços que, por consequência, cairiam de qualidade. Também cairia o rendimento dos hotéis, das pousadas, restaurantes e comércio em geral. Consequentemente diminuiria a oferta de emprego, as possibilidades de sobrevivência dos pescadores, ostreicultores, etc.

Causas de consequências evidentes, mas como em todo lugar o turismo também traz consequências não muito agradáveis. Por exemplo, a falta de água e a superlotação dos hospitais, eventuais desabastecimento de víveres, congestionamento de tráfego de veículos, etc. Seja em Salvador ou Barcelona, em qualquer hemisfério ou latitude do mundo, as soluções para estes problemas dependem de planejamento urbano, da administração destes pontos turísticos, da previsão de seus comerciantes, dos responsáveis por seus serviços públicos e até da disposição e bom humor de seus moradores.

Imaginem um povo carioca mal humorado ou uma população baiana de cara amarrada! Promoveriam a falência turística do Rio de Janeiro ou de Salvador. Inviabilizariam a maior fonte de renda e o maior mercado de trabalho destas cidades. Sebastião Paraíso não venderia mais de seus quadros, ninguém ouviria os sambas de roda de Dona Edite do Prato, não se leria o poeta Jeová de Carvalho, nem se assistiria ao jogo e à dança dos discípulos de Mestre Bimba.

Quem haveria de se interessar por conhecer a baía da Guanabara, por mais bela que seja, sem os momentos noturnos de samba e bossa?

Do Rio Grande do Sul ao Pará o Brasil tem mais de 8 mil kms de mar e praia. É uma insensatez acreditar que o turista vá preterir a cultura e alegria do nordestino, apenas porque em Santa Catarina as praias também são bonitas. Ou vice-versa.

Quanto mais opções culturais oferecermos, mais valorizados turisticamente e, evidentemente, mais pessoas a degustar nossa culinária, a adquirir nosso artesanato, nossas expressões artísticas, etc.

Mas o que são evidências quando não se quer enxergar o óbvio?

A providência que poderia amenizar uma das consequências negativas do turismo, o aumento de tráfego de veículos de turistas ou visitantes a congestionar a única estreita via sem saída que conforma o bairro do Sambaqui, é muito óbvia e evidente.

Não é preciso ser técnico em trânsito nem urbanista para se enxergar que o problema é agravado pela falta de um ponto que facilite o retorno por esta via de cerca de 6 kms de extensão. Se houvesse algum espaço público desocupado para a instalação de rotatória, automóveis, caminhões de entrega aos bares e restaurantes ou materiais de construção, ônibus de turismo ou o coletivo que serve o bairro poderiam empreender o retorno sem necessidade de manobrar; evidentemente facilitando bastante o escoamento.

Entre a cegueira e a lucidez no Sambaqui alguém optou pela insensatez e decidiu que a cultura atrapalha o trânsito e turismo é incômodo.

Mais sensato seria terem permitido a instalação do Estaleiro de Biguaçu que inviabilizaria de vez qualquer movimento turístico na baía norte e, consequentemente, no Sambaqui. Sem turistas em feriados e temporadas nunca teríamos congestionamentos, pois não teríamos praias, bares e restaurantes.

Especificamente qual a praia, bar ou restaurante que contribui para o congestionamento do trafego de veículos no Sambaqui? Cada morador gostaria de acreditar ser a beleza da praia mais próxima à sua casa. Cada cozinheiro de acreditar ser a sua culinária. Cada garçom de ser o seu bom serviço. Mas alguém resolveu que são os músicos do Orlando aos domingos à noite.

E daí convidaram o Orlando a não realizar suas festas dominicais durante 4 domingos e para alegria dos donos de restaurantes, artesãos, artistas e demais bares de Santo Antônio de Lisboa, o Rancho do Neco mudou-se para o Bar dos  Açores.

Numa tarde de sábado sem o Rancho do Neco  que mesmo quando aqui estava só funcionava nos domingos à noite, de minha casa presenciei três brigas por causa de trânsito congestionado. Celso Martins fotografou uma delas.

Assim mesmo, lembrando alguém que ao vir mais cedo para o Rancho do Neco, num domingo aproveitei para apresentar o nosso Carlos Cunha que, por sinal, também é um dos convivas das festas dominicais do Orlando — como tantos outros moradores do Sambaqui — acabo concluindo que o insensato têm alguma razão.

O Rancho do Neco pode não ser o que mais contribui para os congestionamentos dos feriados, mas sem dúvida é um deles. Afinal, qual outro lugar encantaria tanto a filha de Lindolf Bell hospedada em minha casa por seu grande amigo Elias Andrade, o nosso querido Índio? A moça cantou, leu poemas do pai, recebeu e distribuiu muito carinhos? Um sucesso!

O problema será o congestionamento ou o sucesso? Talvez se incomodem com o sucesso dos restaurantes mais próximos: Pitangueiras, Restinga e Posto da Alfândega, procurados por muitos que, aproveitando à vinda ao Rancho do Neco, chegam mais cedo para almoçar em algum deles.

Eu mesmo já acompanhei diversos desses convivas das festas do Orlando, inclusive ao Restaurante do Gugu, um pouco mais distante. E, claro, a muitas cervejinhas preliminares no Beira D’Água, incluindo no roteiro a indefectível visita ao Casarão da Associação dos Moradores.

Mas é aí onde está a verdadeira questão: ao promover o Sambaqui, as festas do Orlando tornaram os bares, os restaurantes, os artistas, o bairro inteiro muito mais frequentado, aumentando o tráfego de veículos, mesmo nos dias sem festas do Rancho do Neco.

Não imaginava que isso aconteceria, mas tinha outros receios quando conheci o Orlando que fez questão de vir me comunicar a intenção de promover festas aos domingos, bem em frente à minha casa. Expliquei da importância do silêncio noturno para mim e meus hóspedes e questionei o estilo de música. Imaginava quão desagradáveis seriam distorções de guitarra, batuques de pagode, pornografias funck ou choradeiras sertanejas.

No entanto, a gentileza e educação do Orlando ao insistir em me mostrar o sistema de tratamento que estava instalando para que seus banheiros não interferissem na qualidade da água do mar, me fizeram perceber se tratar de pessoa conscienciosa, o que veio a se confirmar quando mesmo depois de nos tornarmos amigos e apesar de meus elogios ao repertório e aos músicos que ali se apresentam, pediu para ouvir o som de sua festa de dentro de minha casa.

Não adiantou explicar que por ser de qualidade e realizada internamente, a música não me incomodava em nada. Impedindo-me de escutar melhor daqui do computador, Orlando vedou todas as frestas de cima abaixo de suas paredes dificultando minha audição dos clássicos da MPB ali interpretados. Só não reclamei porque o sujeito é tão gente fina que ficou difícil.

Mas minha maior preocupação vinha de anteriores experiências com esse tipo de realizações, onde é comum ocorrer altercações, troca de ofensas e brigas. Há cerca de 10 anos praticamente todos os domingos atravesso a rua para participar daquelas festas e a única vez em que presenciei algo desagradável foi quando Orlando usou o microfone para pedir a quem porventura estivesse acompanhando uma moça que a retirassem do ambiente pois já chegara passada na bebida e perdera a compostura. Assim o assunto foi imediatamente resolvido e nunca mais ouvi comentar sobre outro acontecimento similar.

As festas do Orlando deram ao Sambaqui projeção internacional. Seja através dos constantes estrangeiros que dela participam ou ali se apresentaram como a franco-argentina Nuria Pucci, interprete de blues, jazz e tango, ou da desconhecida jovem alemã que aprendeu a cantar em português através das músicas de Chico Buarque de Holanda. E também pelo programa de grande audiência da TV espanhola: Callejeros&Viajeros.

No programa mostraram diversas atrações dos mais conhecidos bairros e praias de Florianópolis e vieram ao Sambaqui apenas para documentar o Rancho do Neco, onde se desenvolveu o premiado trabalho de antropologia visual da costarriquenha Denia Roman Solano que na UFSC concluiu seu doutorado.

Compositor e músico do Cirque du Soleil, Francis Covan pretendia levar o exímio Luís Sete Cordas do grupo do Orlando para Montreal, considerada como a capital internacional da música pop. E Francis queria trazer seus músicos naquele mesmo ano, para conhecerem o Sambaqui e as festas do Orlando.

Veio a crise internacional e não deu nada certo. Nem Luís foi para o Canadá, nem Francis pôde vir pra cá, mas certamente um dia retornará, pois deixou seu acordeão em minha casa.

Francis Covan, artista de renome internacional e disputado pelos mais famosos intérpretes da Europa e da América do Norte, trará seu violino com o qual acompanhou sambas e choros do Rancho do Neco durante quase três meses, suspendendo as apresentações que faria no Rio de Janeiro após uma semana em prometida visita à família de sua amiga Bïa Krieger.

Bïa Krieger é uma escritora, compositora e cantora catarinense nascida em Florianópolis onde é totalmente desconhecida, embora seja uma referência na Europa e América Norte, onde se acompanha de Francis que a ela prometeu visitar seus pais na Daniela, antes de ir ao Rio. O maestro do mais importante circo do mundo resolveu vir conhecer o Sambaqui justo num dia de realização do “Planeta Atlântica” e, para não enfrentar o trânsito de volta à praia vizinha, se alojou em minha casa. Levei-o ao Rancho Neco e Francis não saiu mais daqui.

Francis não estava de carro, mas evidentemente cada um que sai daqui falando das festas do Orlando acaba provocando, junto com a venda do quadro de um pintor, do prato de um cozinheiro, da bebida servida por um garçom, ou do artesanato de uma rendeira e qualquer outra habilidade artesã; a vinda de mais um veículo para engrossar o congestionamento de domingos de feriados prolongados.

Mas e os congestionamentos de outros dias que não domingos, quando o Rancho do Neco  está fechado e não tem festa do Orlando? E o congestionamento dos últimos finais de semana quando melhor aproveitaram o Rancho do Neco os moradores, os profissionais, o comércio e toda a boa gente de Santo Antônio de Lisboa?

Depois de um mês os músicos voltaram no domingo retrasado e na semana que passou convocaram o Orlando para uma reunião na qual, talvez, anunciassem uma decisão sobre o que teriam constatado das evidências desse período sem Rancho do Neco. Tudo indica não terem constatado coisa alguma, porque somente o Orlando atravessou a Ilha para comparecer à reunião. Os que o convocaram sequer se deram ao trabalho de telefonar suspendendo a reunião.

Como nos anos 80, a insensatez segue sendo prepotente. E para sorte dos artistas plásticos, garçons, donos de restaurante, hospedeiros, artesãos, criadores de ostras e de Santo Antonio de Lisboa em geral, o Orlando está disposto a levar o Rancho do Neco de vez para o Bar dos Açores, pois não é nenhum garoto para levar “passa-moleque” de gente imatura e desrespeitosa.

E que o Sambaqui fique com o congestionamento de feriados e temporada até que resolvam fechar todos os restaurantes ou interditar todas as praias, pois ainda que enxergar o óbvio pudesse amenizar as consequências do inevitável incremento de turistas motorizados, não resolveria totalmente o problema.

Claro que decisões insensatas muito menos, mas o título dessa crônica e a referência ao grande José Saramago são apenas para demonstrar que isso de dizer que português é burro, não passa de mero preconceito.

O português Saramago era um gênio e gente burra cabe em qualquer lugar.

 

 

 

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