Enchentes não são “puramente” naturais, explicam pesquisadores

Ana Paula observa o Rio Tamanduateí depois de tirar as roupas secas pelo sol / Foto: Marcelo Cruz

Por Caroline Oliveira.

No Baixo do Ipiranga, região sudeste da cidade de São Paulo, o relógio de Ana Paula de Moura Gomes, de 43 anos, bateu oito horas da noite de um domingo chuvoso de março de 2019 – mês que costuma fechar as chuvas de verão –, quando a água do Rio Tamanduateí, que recebe água de córregos como o Ribeirão dos Meninos, em São Bernardo do Campo, começou a subir em ritmo acelerado. A rapidez foi tamanha que nem ela e nem seu marido, Augusto Gomes dos Santos, de 50 anos, conseguiram salvar roupas íntimas, sequer os documentos.

Quando Ana Paula percebeu, já era tarde demais: se viu presa dentro de um armazém da família equilibrando-se em cima de uma prateleira com cinco dos seis filhos. A água estava prestes a bater no teto, deixando pouco espaço para respirar, quando um dos vizinhos, Daniel Francisco de Araújo, de 55 anos, conhecido como “Pikachu”, quebrou o telhado e os tirou por cima do armazém. Augusto, por sua vez, permaneceu agarrado a um portão ao lado, equilibrado em cima de um interfone até a água escoar. A agonia de não saber se sobreviveriam à enchente durou cerca de 12 horas. A angústia em relação aos alagamentos é constante e já dura dez anos – naquele domingo, um temporal na cidade deixou 13 mortos e cerca de 300 pontos de alagamentos.

Desde que se mudaram para a pensão que abriga cerca de 50 pessoas – cada família em um cômodo –, em 2009, a família de Ana Paula observa a enchente como quem vê o perigo se aproximar, ameaçar e ir embora, mas com a tensão da possibilidade de repetição desse acontecimento a cada dia seguinte. A pior enchente foi a de março de 2019, à qual sobreviveram por um “milagre” e graças ao heroísmo dos vizinhos, como definiu Augusto, e não por uma intervenção do poder público. “Ninguém veio. Do outro lado, eu via o bote dos bombeiros que vinha até ali, dali voltava. Todo mundo viu o meu sofrimento, todo mundo ligava e não veio nada. Não apareceu um barco, uma lancha, nada”, conta Augusto. “Se fosse no Alto do Ipiranga, a atenção seria maior, né? Aí era diferente, no Morumbi, Moema, Jardins…”

Ana Paula, que em seus dez anos vivendo no Baixo do Ipiranga não viu a Prefeitura do Município de São Paulo chegar ao local, considera que “governo não muda nada. Nem no rio [Tamanduateí] não teve mudança”. “Não tenho mais uma perspectiva de algum governo melhorar. A gente foi atrás uma, duas, três vezes. Ninguém ajudou ou melhorou em nada. A gente não foi mais”, afirma.

Quando pensa o que poderia pedir ao prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), caso o encontrasse pessoalmente, Ana Paula coloca as mãos no rosto para secar as lágrimas que começam a cair. Respira fundo e diz: “Eu peço para ele olhar um pouco mais para o pessoal do Ipiranga, porque não tem ninguém para olhar. O pessoal aqui é muito jogado, não tem o que fazer, não tem para onde ir, não tem emprego.” Segundo o marido de Ana Paula, Augusto, das 50 pessoas que moram na pensão, mais da metade está desempregada.

Piscinão sem saneamento não é a solução 

A reportagem do Brasil de Fato solicitou uma entrevista com a Secretaria Municipal de Infraestrutura e Obras e a Autoridade Municipal de Limpeza Urbana (Amlurb) da Prefeitura de São Paulo para comentar a situação calamitosa da família do Baixo do Ipiranga. Não obteve retorno. Também foram demandadas informações sobre políticas em andamento contra enchentes, cuja resposta foi a apresentação do Plano Chuvas de Verão, realizado entre dezembro de 2019 e março de 2020. O objetivo do programa é reduzir as áreas de alagamento com cinco novos piscinões até o fim do ano nas zonas Norte, Sul e Oeste, com capacidade de armazenar 234 mil m³ de água e que devem custar R$ 107,8 milhões.

Com a conclusão dos cinco reservatórios, São Paulo deve chegar ao fim de 2020 com 37 piscinões espalhados pela cidade. Pouco adianta a criação de mais desses espaços sem que haja uma ação conjunta com a área de saneamento básico. É o que explica Ricardo Moretti, professor aposentado de Planejamento Territorial da Universidade Federal do ABC (UFABC). Ele afirma que 70% do esgoto gerado em São Paulo vai parar nos córregos. “Com isso, nós não temos enchente só de água, mas de água com esgoto, porque temos um tratamento precário. Então, quando o córrego transborda, tem-se uma verdadeira calamidade, transbordamento de esgoto com água de chuva”, explica.

Basicamente todos os córregos da área mais central da cidade estão contaminados, transformando os piscinões em focos de transmissão de doenças. Ana Paula, Augusto e os seis filhos do casal passaram os três meses seguintes à enchente de março de 2019 doentes por terem entrado em contato com a água de chuva contaminada pelo esgoto. “Fiquei três meses com problema de estômago. Fui ao médico, tomei medicamento contra doença de rato. Eu e a minha família, todo mundo com problema de estômago, tomando medicamento”, afirma o companheiro Augusto.

A Prefeitura paulistana mapeou, em 210 bacias da cidade (depressões formadas nas vias), 927 pontos com risco de enchentes nos quais pretende realizar atividades como limpeza de córregos e bocas de lobo. Na época do lançamento do Plano de Chuvas, em novembro de 2019, Alexandre Modonezi, secretário municipal das Subprefeituras, afirmou que “nas regiões de alagamento, a coleta de lixo tem sido feita duas vezes por dia nas áreas de alagamento”. Para a família de Ana Paula e de outras que vivem na pensão do Baixo do Ipiranga, as ações da Prefeitura, no entanto, ainda não podem ser vistas.

Escoamento mais rápido significa empurrar o problema para baixo

Quando a água da chuva cai em um ambiente natural, de acordo com o professor Moretti, parte dela infiltra no solo, outra escoa. Nas cidades, o curso da chuva é diferente: a água dificilmente se infiltra, circulando mais rápido e em maior quantidade, em decorrência da impermeabilização do solo e da retificação dos rios e córregos. “Quando se canaliza um rio, empurra-se o problema para baixo, porque maiores quantidades de água vão chegar nas regiões mais baixas.”

Essa é a lógica utilizada no sistema de drenagem clássico do poder público, explica Moretti, e é também o que ocorre nas margens do Rio Tamanduateí. Daniel Francisco de Araújo, o Pikachu, o mesmo que salvou a vida de Ana Paula e dos filhos do armazém inundado, afirmou que a água que chega no Baixo do Ipiranga desce de Diadema e São Bernardo “numa pressão danada”. “Teve uma época que aqui nem choveu, só deu uma garoa. Quando veio de lá, já veio trazendo cachorro morto, entulho, lixo. Quando chega aqui, chega numa pressão danada. Não dá tempo para nada”, afirma.

Moretti explica que um sistema de drenagem conhecido como “contenção da água na fonte” vem sendo utilizado há cerca de 40 anos mundo afora. O sistema consiste basicamente em criar obstáculos para que a água fique retida e se infiltre no solo. Trata-se de criar estruturas de infiltração de água nos solos em espaços públicos e privados para impedir que a água chegue rapidamente a declives da cidade.

O que o Direito à Cidade tem a ver com enchentes?

Mais do que implementar um sistema de drenagem eficiente, Danielle Klintowitz, urbanista e coordenadora de Projetos de Urbanismo do Instituto Pólis, defende que também é necessário perceber como a enchente é um problema que implica em uma ação integrada entre diversas áreas do poder público.

“O fator de saneamento básico, por exemplo, é fundamental na questão das enchentes, porque se há alagamentos sem saneamento há um agravamento da situação de saúde daquela população. Uma das questões do Direito à Cidade é justamente o acesso à cidade de maneira integral e adequada. Isso significa não olhar para as estruturas isoladamente. Não dá para olhar a infraestrutura de drenagem sem olhar política habitacional ou de mobilidade”, afirma Klintowitz.

A urbanista, no entanto, afirma que é exatamente isso o que acontece. “A gente vê políticas isoladas, então a política de drenagem isolada da de saneamento, de habitação, mobilidade. Isso ocasiona essas condições que se repetem” anualmente, como na vida da família de Ana Paula e Augusto.

Klintowitz explica que a ideia do Direito à Cidade é ter uma cidade justa e equilibrada, onde todos cidadãos tenham direito a usufruir do planejamento urbano e dos bônus da cidade. Existe, no entanto, o que ela chama de “racismo ambiental”: as áreas de risco são lugares onde moram um determinado tipo de família, justamente aquelas excluídas do planejamento da cidade. “As famílias acabam morando nessas áreas justamente porque nas áreas mais consolidadas, com mais infraestrutura de drenagem e sistemas de planejamento, não estão disponíveis para a população de baixa renda.”

A família do Baixo do Ipiranga até tentou deixar o local, mas com a renda baixa ficou sem opção. “Eu me vi obrigado a vir morar pra cá. A gente quer mudar. Mas vai mudar de que jeito?”, afirma Augusto, em consonância com Ana Paula: “sair daqui seria uma opção se tivesse para onde ir. Mas como não tem, a gente espera para ver se melhora o tempo ou a situação”.

Ana Paula se lembra da enchente que quase tirou sua vida como o momento mais “sufocante” pelo qual já passou. Em 2020, ainda não teve enchente, “mas já teve atenção dobrada”: na pensão, ninguém dorme. Os moradores passam a noite entre os cômodos e a beira do rio para ver se “vai dar enchente”. “Começa a chover, esses dois pequenos já entram em parafuso”, referindo-se aos filhos gêmeos de cinco anos.

A Prefeitura de São Paulo, segundo um levantamento feito pelo G1, usou apenas 48% do valor previsto para obras contra enchentes, em 2019: de R$ 973 milhões, foram gastos R$ 474 milhões. O governo municipal, no entanto, contestou e afirmou que desembolsou, na verdade, 84% do previsto. No âmbito estadual, o cenário se repetiu: de 364 milhões previstos, foram gastos 220 milhões, ou seja, 60%.

Chuvas afetam MG e ES no início deste ano

A realidade vivida pelos moradores do Ipiranga está longe de ser apenas uma realidade local. As chuvas de janeiro deste ano tem causado fortes enchentes em Minas Gerais, onde os deslizamentos de terra provocados pela água das chuvas causaram 44 mortes até o momento e 47 municípios tiveram estado de emergência decretado pelo Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR). Há 13.887 desalojados no Estado e 3.354 desabrigados. São 19 desaparecidos até o momento e 12 feridos. No Espírito Santo foram registradas 9 mortes em decorrência das chuvas, 22 cidades estão sob alerta de risco “alto” conforme a Defesa Civil. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE) menos da metade dos municípios brasileiros possuem um Plano Municipal de Saneamento Básico.

O Perfil dos Municípios Brasileiros (Munic) divulgado em 2018 aponta que 41,5% dos municípios brasileiros (2.314) possuíam um Plano Municipal de Saneamento implementado em 2017, 31,3% (1.745) não tinham o plano e 27,1% dos municípios (1.511) estavam com plano em fase de desenvolvimento no momento da pesquisa.

Edição: Leandro Melito.

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