Em tempos de liquidez, Funny me provou que amar é possível!

Por Elissandro Santana, para Desacato. info.

Há aproximadamente quinze anos, tive o prazer do encontro com uma felina felpuda, de patas largas, frondosas, parecidas com almofadinhas, um convite ao afago, olhos amendoados castanhos quase amarelos, mais para o escuro que para o claro, de uma poesia no olhar que arrebatou não somente meus olhos, mas minha alma cansada pisciana neste mundo em que fascistas tentam chegar ao poder apoiados por uma parcela significativa da sociedade brasileira que se perdeu em meio ao ódio e à incompreensão dos fatos.

Funny, uma persa azul, ou blue, que para mim é cinza, me foi presenteada porque e pelo antigo dono que já não a queria. De um não querer ela veio para os nossos braços – meus e de Henrique, figura dada à música e à vida idílica que viu na felpudinha a natureza em latência, uma poemática para a existência, a beleza materializada.

Ela veio já adulta, com quase dois anos, desconfiada e meio agressiva, resquícios da criação anterior, talvez, mas quando chegou às nossas mãos, se derreteu, se fez doce, encanto. Dali em diante, a vida teria outro gosto. Digitar meus textos tinha que ser na companhia da serelepe e dorminhoca, dormir de jeitinho todo torto, para que ela se aconchegasse e se arrumasse da forma como bem entendesse ao meu lado, sempre pertinho da cabeça, evidente, ronronando feliz como prova de que agora seria para valer, que comigo e com Henrique ficaria até o último dia.

No início, tentei interferir na história do nome da rainha, pois ela virou a majestade da casa, na verdade, uma das, pois em casa, cada gatinho conquista um reinado, mas o nome que dei não colou. Em uma malograda tentativa de chamá-la de e por Xena, a guerreira, passei por volta de 5 dias sem que ela me desse um olá, um oi sequer em forma de ronronada como os gatos fazem magistralmente. Somente quando Henrique chegou lá das bandas das Alagoas foi que teve a ideia de me pedir que buscasse o cartão de vacinas para ver o nome real da gatinha. No registro estava Funny e quando a chamamos por este nome, o condomínio fez festa. Ela correu por todos os cantos do apartamento lá em Brotas, na capital baiana em sinal de que havia chegado para ficar, que, dali para frente, a casa teria outras regras, outras normas e horários. Na época, ainda fazia UFBA e ela veio para acalmar minha vida em meio ao corre-corre e cobranças acadêmicas na federal.

Tempos depois, com parte dos irmãos, por conta de uma aprovação minha, em concurso na Uneb, veio comigo e com Henrique morar no Sul da Bahia e aqui passou a ter novos irmãos, pois à medida que situações de abandono se materializavam em meu bairro na cidade do descobrimento, outros foram chegando.

Hoje, ainda no início da primavera, ela teve que partir, provando que sempre foi uma flor e que não poderia embarcar no trem em outra estação, não para um novo dono, mas para os braços da grande mãe, nossa linda e encantadora Pachamama, aquela que sempre abraça a todos, em especial àqueles que essa sociedade patética mundial nomeou irracional, mas que, no fundo, no fundo, são o poema deste mundo, as verdadeiras faces do amor.

A partida não foi fácil, pois tive que, em parceria com Henrique, de/que optar pelo último ato de amor, já que nossa felina entrou, nos últimos dois dias, em um quadro de edema pulmonar, falha dupla cardíaca e aumento exagerado de alguns órgãos.

Foram dois dias de muita dor e de angústia. De um lado Funny sofria e, do outro, lágrimas inundavam aqui em casa e não é no sentido metafórico, pois há mais de quarenta e oito horas não consigo fazer outra coisa que não chorar.

Agora, à noite, de forma silente e tranquila, sem dor, ela começou a nova jornada e no caminho inicial havia uma lua gigante dourando o mar de Porto Seguro, sem contar que as ondas pareciam entoar um cântico de boas-vindas à nossa eterna Rainha.

Neste exato momento, ela repousa voltada para um mar cristalino e seguro, não tão distante deste pai chorão que rabisca estas poucas linhas na certeza de que minha filha não corre mais o risco de viver comigo as angústias de saber que neste Brasil atual um fascista poderá chegar ao poder. Ela segue linda e radiante em outras formas a grande viagem para novas danças cósmicas.

Enfim, mesmo com o coração partido, uma parte de mim foi com ela e sei que esta é apenas o início da viagem que todos nós, de um jeito ou de outro, temos que fazer. No mais, ela me ensinou, todos os dias, o que era amar sem interesse, coisa que a humanidade precisa aprender para que outro mundo seja possível. Com ela, a cada dia, derreti-me em amor.

Amanhã, o que mais me doerá será olhar para cada canto do apartamento e não vê-la fisicamente, chamá-la e não a vir correndo em direção a este ser que sabe que um mundo sem gatos não seria encantador.

Por fim, só me resta desejar a Funny, aqui pelo Desacato, jornal com o qual ela tanto se familiarizou em noites a fio de escrita de meus textos para a Coluna A Outra reflexão e traduções de Débora Mabaires e de Ana Moreno, que descanse em paz e vire infinitas borboletas para outros casulos de existência, minha querida e terna felina!

Se eu pudesse, Funny, você estaria agora comigo, mas fui vencido por minha impotência. O positivo nisso tudo é que, mais uma vez, me ensinou que não posso entregar os pontos, que outros gatinhos baterão à minha porta e que há seus irmãozinhos aqui serelepes pelo apartamento nessa linda Porto Seguro, nosso lar, que preciso ser amor neste mundo em que Bolsonazis ganham força. Que preciso ser luz para salvar outros gatinhos e animais nesse grande Brasil de abandono e de busca equivocada por heróis, quando o herói e a heroína moram em cada ato de amor em nós para nós de esperança!

Ademais, Funny, como ação final, você provocou o encontro dos abraços, pois em meio a lágrimas, fortaleci laços com Nice, Ábila, Heron (o amigo sumido mais presente) e Doutora Larissa Cury, a médica da razão sensível, sem contar, evidentemente, nosso querido e amado Henrique, o mago de nossas vidas!

Elissandro Santana é professor da Faculdade Nossa Senhora de Lourdes e do Evolução Centro Educacional, membro do Grupo de Estudos da Teoria da Dependência – GETD, coordenado pela Professora Doutora Luisa Maria Nunes de Moura e Silva, revisor da Revista Latinoamérica, membro do Conselho Editorial da Revista Letrando, colunista da área socioambiental, latino-americanicista e tradutor do Portal Desacato.

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