Em livro de 1915, autora imagina país utópico e exclusivamente feminino

Charlotte Perkins Gilman discursa na Union Square, em Nova York (Reprodução/ Biblioteca de Harvard)

Viajando em busca de aventuras, três cientistas norte-americanos se deparam com um país fantástico, no qual há apenas mulheres – guerreiras, construtoras, professoras, médicas. Convencidos de que aquela terra feminina só poderia ser caótica, eles se surpreendem ao encontrar uma sociedade sem desigualdade, violência ou opressão. Herland, como batizam a nação, é uma perfeita utopia.

A história pode parecer sinopse de algum seriado atual, mas tem mais de um século: trata-se do livro Herland – a terra das mulheres, de Charlotte Perkins Gilman (1860 – 1935), originalmente publicado em 1915. Fruto das primeiras ebulições feministas, que sucederam os esforços sufragistas da virada do século, a obra de ficção foi lançada recentemente no Brasil pela Edipro após muitos anos fora de catálogo – a primeira publicação veio há 37 anos, pela Francisco Alves.

O livro descreve ironicamente, do ponto de vista de um narrador masculino, um país governado por mulheres. “Toda utopia, longe de ser apenas uma brincadeira de imaginação, retrata elementos de sua época de forma crítica. Afinal, uma sociedade perfeita só pode funcionar se forem corrigidos ou encarados problemas fundamentais”, diz Juliana Gomes, autora do prefácio desta edição e criadora do Leia Mulheres, projeto de promoção da literatura feminina.

Charlotte Perkins aborda de forma direta temas atuais como a maternidade compulsória, a inutilidade da guerra, os estereótipos de gênero e até mesmo os males da indústria pecuarista. As críticas são sutis, e quase sempre aparece nos choques culturais entre os estrangeiros e as habitantes de Herland. Em uma passagem, por exemplo, três exploradores se vêem capturados por guerreiras do país e imaginam que serão mortos ou torturados – mas acabam instalados com todo o conforto em uma espécie de escola, na qual recebem ensinamentos sobre os costumes e a língua daquele país.

Em outro momento, o narrador – um dos três aventureiros – descreve as mulheres daquela terra e acaba formulando uma crítica sobre a noção de “feminino” da época: “‘Mulher’, em sua forma abstrata, é uma pessoa jovem e presumivelmente encantadora. Conforme envelhecem e passam desse estágio, de algum modo se tornam quase propriedade privada, ou simplesmente deixam de ser chamadas daquela maneira. Mas estas boas senhoras ainda estavam naquele estagio, embora todas pudessem ser avós (…). Não eram, no sentido da palavra, bonitas. Não eram nem um pouco ferozes”.

Para Juliana Gomes, o livro questiona o que o mundo poderia ter sido se imperasse a sororidade muitos anos antes de a palavra existir como um termo feminista. “Perkins trata dos problemas da sua sociedade, fala da desigual divisão de tarefas domésticas, da criação dos filhos – tarefa então vista como feminina – e se pergunta: como enfrentar tudo isso?”.

Feminista, socióloga, divorciada e financeiramente independente, Perkins é famosa pelo romance Papel de parede amarelo (1892), tido como um clássico da literatura feminista. “Ela era diferente de todas as mulheres da época. Lia, estudava, escrevia, criticava. Não podia ter filhos. E traz isso em sua escrita”, afirma Gomes. “Foi uma Jane Austen da ficção científica muito antes dos anos 1970, quando o gênero de fato despontou na literatura com nomes como Ursula K. Le Guin e Octavia Butler”.

Em Herland, Gilman faz o que Gomes chama de uma “crítica cirúrgica e discreta” à sociedade em que vivia por meio da utopia, gênero que serviu “como uma válvula de escape para a autora fazer sua crítica de forma protegida”: “Ela não escreveu um ensaio, mas uma ficção. Não haveria por que colocá-la como louca ou contradizê-la, afinal, se tratava de uma obra imaginativa. Assim, ela foi muito sagaz. Sabia que não poderia bater de frente com a sociedade machista de sua época, então usou da ficção como um jeito de fazer seus leitores, ao menos, refletirem.”

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