Em Gaza, eu não estive

Entreouvido na Vila Vudu: É preciso reconhecer que há, em Israel, jornal suficientemente liberal, que publica a coluna adiante traduzida. Que jornal, no Brasil, deixaria de demitir jornalista que escrevesse e insistisse em ver publicado que:

Não sei o que se passa em Gaza. Tudo que os jornais e jornalistas e “especialistas” brasileiros ouvidos pelo William Waack dizem que se passa em Gaza não passa nunca de amontoado de ideias feitas repapagaiadas?
Absolutamente impossível, inimaginável. Nenhum jornalista brasileiro empregado escreveria e, se escrevesse, nenhum jornal-empresa brasileiro publicaria, em nenhum caso… Nunca.
Pois… taí: Gideon Levy escreveu e o jornal Haaretz publicou. Parece muito. De fato, é muito menos que o mínimo, onde se cogite, não apenas de jornalismo liberal, mas de ativo jornalismo de democratização.
O “jornalismo” brasileiro é o pior do mundo. É PIOR, que qualquer imprensa-empresa Murdoch. MUITO ATIVAMENTE PIOR.
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Sou jornalistinha que, em boa parte, passa a perna no próprio dever e trai sua missão. Sim, andei pelo sul, pelos locais destruídos, entre israelenses traumatizados. Ao ouvir a sirene, joguei-me ao chão e cobri a cabeça com as mãos, ou encontrei precária proteção numa loja de roupas de criança. Até espiei na direção de Gaza, do alto da mais alta colina em Sderot, mas não fui a Gaza e nada noticiei sobre o sofrimento que há lá. E, como eu, todos os jornalistas israelenses.
Estive em Gaza pela última vez em novembro de 2008. Escrevi sobre um míssil israelense que atingiu as crianças da creche Indira Gandhi e matou a professora ante os olhos das crianças. Foi minha última matéria de Gaza. Logo depois, Israel proibiu jornalistas israelenses de entrarem na Faixa, e os jornalistas aceitaram a proibição, com servilismo e subserviência típicas. Ao longo dos anos, passaram a ser funcionários públicos cada vez mais leais (e admirados): eles conhecem a alma da besta. Sabem que os leitores e telespectadores não querem saber o que realmente acontece em Gaza, e alegremente satisfazem os fregueses. Sem uma palavra de protesto dos jornalistas, cujo governo os impede de cumprir seu principal papel e de ser o que existem para ser.
Não que todos sejam covardes. Os ousados, dentre eles, ao longo dos anos, reportaram de locais em guerra ou de locais de catástrofes naturais em todo o mundo. São heróis, estiveram no Iraque, na Líbia, na Síria e até eu, que pouco sou, estive em Sarajevo sob bombardeio, no Japão quando a terra tremeu e na Georgia, quando foi à guerra. O governo de Israel não manifestou qualquer preocupação com nosso bem-estar, e cumprimos nosso papel, mesmo quando era papel perigosíssimo. Mas diz que pensa em nos proteger contra Gaza, uma hora e quinze minutos de carro de minha casa, e local que afeta nossas vida imensamente mais que Fukushima.
Durante a Operação Chumbo Derretido, minha colega, Amira Hass conseguiu entrar em Gaza via Egito, graças ao próprio empenho, coragem e segundo passaporte. Dessa vez, ninguém sequer tentou.
E é assim que Israel sabe praticamente nada sobre o que está acontecendo em Gaza. E há quem se empenha para que seja exatamente assim. O assassinato terrível da família Dalou, por exemplo, foi coberto como exemplo de traição ao jornalismo profissional, nos cantos de página e em rápida referência nos noticiários de televisão. Praticamente não há registro, na mídia israelense, da destruição e morte que Israel semeou e do medo indizível que consumiu 1,5 milhão de pessoas durante uma semana, sem sequer um abrigo reforçado, sem sirenes e alertas, sem teto para proteger-se. Só notícias rápidas, à margem dos noticiários. Ocasionalmente, entrevistam um ou outro Ahmed e, digam o que disserem, a notícia de lá vem sempre introduzida por um “segundo palestinos”, com acusações hipócritas de que “os palestinos usam fotos do terror para autopropaganda”, como se do horror só houvesse as imagens, nunca o próprio horror.
Não é só questão de diferenças políticas, nem tem a ver só com jornalismo profissional: os israelenses teriam de saber o que é feito em seu nome, mesmo que, de fato, nada queiram saber. O papel do jornalismo é esse. Fazer-saber, também quem não queira saber. Claro, o sofrimento no sul de Israel tinha, sim, de ser amplamente noticiado – nunca deixei de noticiá-lo também –, mas não podemos fechar os olhos ao que está acontecendo do outro lado, ainda que não seja bom de ver uma casa voar pelos ares, com toda a família que ali vivia.
Quem queira saber o que acontece em Gaza é convidado a assistir às redes internacionais e ler jornais do resto do mundo: só eles narram a história inteira. Israel e alguns dos jornalistas israelenses ensinam ao mundo o que é jornalismo hostil, vicioso e distorcido. Querem que, do mundo, os israelenses só conheçam Ashkelon e Rishon Letzion.
É indispensável saber o que está acontecendo em Gaza, para saber o que está acontecendo em Israel. Jornalismo que não faça nem isso, que sequer proteste, é hasbará [propaganda pró-Israel] de recrutamento. É agradável quando um correspondente militar de capacete amarelo sobe a um ninho de combatentes para mostrar-nos a destruição de um bloco de apartamento; de certo modo, até suportamos um comentarista-propagandista que só faça grunhir, clamando por mais guerra. Mas repetir mensagens distribuídas por autoridades não é jornalismo.
Verdadeiro jornalista israelense teria de estar hoje em Gaza. Sem isso, e só com a nenhuma cobertura do que lá se passa, não passamos, todos, de jornalistinhas.
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu.
Gideon Levy escreve para Haaretz.com.

Artigo original: “To Gaza I did not go

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