Em Chiapas, a revolução continua

No início dos anos 1990, o levante zapatista encarnou uma opção estratégica: mudar o mundo sem tomar o poder. A chegada ao governo de forças de esquerda na América Latina, alguns anos depois, parecia tirar-lhes a razão. Mas, da Venezuela ao Brasil, as dificuldades das administrações progressistas levantam uma questão: como está Chiapas?

Eles têm medo que descubramos a possibilidade de governarmos a nós mesmos”, lança a maestra Eloisa. Essa frase é proferida desde 2013 a centenas de simpatizantes vindos do México e de fora do país para conhecer a experiência zapatista durante uma semana de imersão ativa. Batizada carinhosamente de “Escuelita”, essa iniciativa visava inverter a síndrome do evangelizador, a “regresar la tortilla”, como convidava em outros tempos o antropólogo André Aubry: educar-se pelo contato com centenas de camponeses maias que praticam, dia após dia, o autogoverno. Ao inaugurar a Escuelita com essas palavras, em 2013, Eloisa evocava naquele momento o essencial, que ainda deixa alguns observadores incrédulos: modesta e não proselitista, a experiência zapatista rompe, há 23 anos, os princípios seculares, e hoje em crise, da representação política, da delegação do poder e da separação entre governantes e governados – que estão na fundação do Estado e da democracia modernos.

A experiência se deu em uma escala não negligenciável. Se por um lado números exatos não estão disponíveis, estima-se que nessa região de florestas e montanhas que cobrem um terço da superfície do estado de Chiapas (28 mil quilômetros quadrados, quase o tamanho da Bélgica), de 15% a 35% da população – 100 mil a 250 mil pessoas segundo estimativas1 – forma a base de apoio do zapatismo, ou seja, aqueles que o reivindicam e participam dele. Esse fato poderia ofuscar a visão folclórica do capuz e dos discursos eloquentes do ex-subcomandante Marcos (rebatizado Galeano, em homenagem a um companheiro assassinado): nessa escala e com essa duração, a aventura zapatista é a mais importante experiência de autogoverno coletivo da história moderna. Mais longa que os operários e camponeses a favor da Revolução Russa de 1917 (antes da transferência de seus poderes aos executivos bolcheviques); que os clubes e conselhos da Comuna de Paris, derrotados em maio de 1871 após dois meses de efervescência; que o “conselhismo” colocado em prática na Hungria e na Ucrânia após as insurreições de 1919; mais que a democracia direta de camponeses na Guerra de Aragão e da Catalunha entre 1936 e 1939; e que as experiências políticas autonomistas pontuais, ou menos completas, como a de bairros urbanos em Copenhague depois de 1971 ou em Atenas hoje.

Enquanto essas experiências foram todas reprimidas ou revertidas e os governantes de esquerda do resto da América Latina decepcionavam uma parte dos movimentos populares que os levaram ao poder (no Brasil, na Venezuela, na Bolívia, no Equador…), o zapatismo manteve-se firme. Pouco a pouco, rompeu com o Estado, solidificou suas bases e delineou uma autonomia política inédita, levada adiante hoje pela primeira geração nascida após a revolta de 1994, mediante o abandono progressivo e pragmático da crença no Estado e no vanguardismo leninista no início do processo: “Quando chegamos, éramos quadrados como os profissionais da política, mas comunidades indígenas – que são redondas – apararam nossas arestas”, repete estranhamente Galeano. O desafio: mudar a natureza do poder político; na falta de poder, levá-lo a uma escala maior. O resultado está aí: “Hoje o movimento está mais forte, ainda mais determinado. As crianças de 1994 são atualmente os quadros do zapatismo, sem cooptação ou traição”, reconhece o sociólogo Arturo Anguiano, que, longe de cúmplices naturais da causa, foi o cofundador do Partido Revolucionário dos Trabalhadores (trotskista), o PRT. É o que a vida cotidiana das comunidades zapatistas demonstra hoje.

“O capitalismo não vai parar. O que se anuncia é uma grande tempestade. Aqui nos preparamos fazendo as coisas sem ele”, resume com um sorriso um homem de 20 anos que há três integra o Conselho de Bom Governo (Junta de Buen Gobierno) de Morelia, a menos povoada das cinco zonas zapatistas, e está prestes a deixar o posto depois de ter formado seus sucessores. Situado no coração da zona, a 1.200 metros de altitude, o caracol de Morelia fica em uma colina luxuriante. O termo caracol se refere à lentidão necessária da política e também a alguns edifícios de reunião que são os escritórios do chefe local de cada zona. Aqui, o caracol é um mirante de pastos e cultivos: 700 hectares de terras recuperadas, para 7 mil habitantes espalhados sobre um território amplo. Entre a quadra de basquete e o auditório de tijolos pintados, algumas dezenas de homens e mulheres deixam o caracol com mochilas nas costas, após três dias de reuniões. Seguem seus passos meio entorpecidos pelas longas horas de assembleias e com um ar consternado em seu semblante bronzeado, que mistura a serenidade amena dos indígenas tzotzils – povo majoritário aqui – e a preocupação daqueles que passaram três dias debatendo sobre as tarefas (cargas) assumidas por cada um voluntariamente, desde a divisão das colheitas até a construção das escolas.

NA ESCOLA, CRÍTICA AO CAPITALISMO

Ao lado do pequeno cibercafé de alvenaria, o jovem membro do conselho continua: “Não buscamos espalhar o zapatismo, que é muito particular, e sim a ideia que subjaz à experiência: a autonomia geral”. Eles agora são três a nos descrever o funcionamento de Morelia. Há um coletivo por setor de produção, da rádio ao artesanato têxtil, passando pela apicultura. Com 140 cabeças de gado e 10 hectares de plantações de milho (milpas), a zona conquistou a autossuficiência alimentar graças a seus pomares, granjas, 5 hectares de café e suas padarias cooperativas.

Os excedentes são vendidos aos não zapatistas da região, os “partidistas”, que vivem de subsídios do Partido Revolucionário Institucional (PRI), que está atualmente no poder e subsidia alguns vilarejos em troca de trabalho. Indiretamente, são os fundos do governo que permitem aos zapatistas comprar, em regime de propriedade coletiva, o que eles não produzem: máquinas, material de escritório e os poucos veículos que levam as pessoas às reuniões nos quatro cantos da zona. Os projetos individuais, como a montagem de uma cantina-mercearia, são financiados pelos bancos autônomos zapatistas (Banpaz ou Banamaz), que fazem empréstimos à taxa de 2%. Em toda a zona, come-se até saciar a fome, de forma frugal e tradicional, sem ajuda do Estado ou de ONGs: arroz, tortillas, frijoles (feijão preto), café, algumas frutas e, mais raramente, frango, ovos, cana-de-açúcar. Poucos computadores e livros nas casas, poucos carros, e roupas sóbrias: as condições materiais são mínimas, mas nada de essencial falta. Essa sobriedade se contrapõe à (falaciosa) ideia de abundância euro-americana dos shoppings e lojas de consumo.

Os encarregados voluntários do caracol de Morelia nos descrevem as três missões sociais assumidas pela coletividade: educação, saúde e justiça, desempenhadas, em regime de turnos, por – antes de professores, médicos e juízes – “promotores” benfeitores. E seus vizinhos se ocupam de suas terras e de seus lares enquanto estão em missão. Se as cerca de seiscentas escolas zapatistas das cinco zonas propõem três ciclos de estudos, todo o resto é discutido coletivamente e adaptado às necessidades locais, sejam elas relacionadas ao ritmo de cada um ou aos programas e calendário escolar. Contudo, encontram-se em toda parte cursos de espanhol e línguas indígenas, história colonial e educação política (crítica ao capitalismo, estudo de lutas sociais em outros países), matemática e ciências naturais (“a vida em meio ambiente”). Da limpeza à pintura dos murais, o trabalho coletivo é cotidiano. E, desde o fim do segundo ciclo, com 15 anos, os jovens, todos alfabetizados, podem propor desempenhar uma tarefa, após votação em assembleia e uma formação de três meses.

Soma-se ao processo, na saída de San Cristóbal, a única universidade zapatista, fundada por Raymundo Sánchez Barraza: o Centro Indígena de Capacitação Integral (Cideci). Das escadarias às cortinas pintadas, tudo é obra dos estudantes – duzentos jovens acolhidos a cada ano para aprender saberes autônomos: fabricação de sapatos, teologia ou utilização de máquinas de escrever, mais seguras que os softwares de edição de texto, devido aos cortes frequentes de eletricidade, assim como um seminário político às quintas-feiras. Inspirado nos princípios antiutilitaristas do pedagogo Ivan Illich (“aprender sem escola”) e também nos primeiros profetas indígenas, o Cideci também acolhe os grandes colóquios zapatistas. O último, em dezembro de 2016, foi sobre as ciências exatas “contra ou a favor” da autonomia (ConCiencias).

Igualmente, o sistema de saúde é confiável: “casas de saúde” asseguram cuidados básicos de qualidade, de ecografia a exames oftalmológicos; cada caracol conta com uma clínica onde, por enquanto, cirurgiões externos voluntários realizam as cirurgias; e ONGs fornecem os medicamentos alopáticos. O uso de ervas medicinais e terapias tradicionais é incentivado por toda parte, e a ênfase está na prevenção. A justiça zapatista, assegurada por voluntários e comissões ad hoc, trata de casos em geral leves – desacordos sobre as terras ou os raros conflitos internos entre os vilarejos –, e visa a antes reparar que punir: diálogo com o acusado e trabalhos coletivos em vez de detenção (existe apenas uma prisão para o conjunto das cinco zonas), sem fiança nem mecanismos de corrupção. Mais uma vez, os não zapatistas preferem esse sistema mais justo, que, em vinte anos, fez cair a delinquência e as violências domésticas em toda a região – a proibição do álcool, que as mulheres impuseram no âmbito de sua “lei seca”, é a primeira das leis zapatistas que elas colocaram em votação e que muito contribuiu para isso.

A novidade é a prática crescente de trazer os partidistas para trabalhar nos serviços públicos zapatistas, o que permite contratá-los e assim modificar a relação clientelista, permeada pela burocracia e pela dependência e esmolas do partido. A dependência: é o que os zapatistas, passo a passo, buscaram eliminar, até mesmo a relacionada a ONGs. Mas a autonomia, “processo sem fim”, segundo eles, continua parcial e muitas vezes “remendada”: a eletricidade vem dos mesmos cabos da operadora nacional, embora sem custos, e alguns produtos ainda dependem de compras coletivas, como óleo de cozinha e telefones celulares.

 UMA ORGANIZAÇÃO VERTICAL E HORIZONTAL

Essa experiência insólita, longe do radicalismo de papel, assume suas tentativas e arbitragens delicadas. Seu princípio de aprendizagem: “caminar preguntando” (caminhar perguntando). Já o mote “mandar obedeciendo” (mandar obedecendo), afixado por toda parte, sugere que, diante do horizontalismo puro dos fantasmas anarquistas, convém sempre mesclar uma dose mesmo que marginal de organização – e eficácia – vertical. As comunidades são consultadas longamente, por meio de idas e vindas com os conselhos da zona, mas por iniciativa destes últimos, que formulam e submetem suas propostas e, se necessário, organizam votações. As tarefas voluntárias são rotativas e revogáveis, funcionando dentro de uma política não profissionalizada, mas são os mais competentes que as ocupam (e são eleitos) com mais frequência que outros. É preciso reconhecer que, ao longo de consultas minuciosas, “às vezes o povo dorme”, como dizia outro maestro da Escuelita. Antes de um sistema totalmente horizontal, existe uma tensão – fecunda – entre o governo de todos e mecanismos diagonais, ou até verticais. Trata-se de uma concepção processual e evolutiva, na qual se inventa e testa constantemente, seja em relação às regras de voto ou à duração e aos critérios das tarefas (as mulheres, em geral menos à vontade no engajamento público, podem, por exemplo, ocupar-se de uma tarefa em duas ou três companheiras).

Na origem de tudo isso está o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), que surgiu na floresta em uma manhã de janeiro de 1994. Essa estrutura militar vertical é dotada de uma instância de comando, o Comitê Clandestino Revolucionário Indígena (CCRI). O EZLN zela pela perenidade da experiência, mas decidiu que se retiraria do funcionamento político em 2003, no momento da ruptura com o Estado mexicano e da instauração do sistema de autogoverno. Este, por sua vez, funciona em três níveis, após a reordenação geográfica que desfez as divisões administrativas anteriores: o da comunidade de cada vila, onde atuam agentes e comissões (para a segurança, produção etc.); o das comunas, que agrupam as vilas (municípios); e, acima dos outros, o das cinco grandes zonas, cujos centros são os cinco caracoles (Morelia, La Garrucha, Roberto Barrios, Oventic e La Realidad).

A originalidade do zapatismo é também a própria limitação da possibilidade de outros movimentos sociais do mundo replicarem suas invenções e mecanismos: a convergência histórica, em seu seio, de ingredientes heterogêneos, e até incompatíveis, que aqui se tornaram indissociáveis. Antes de mais nada, existe o núcleo indígena, que remete aos povos mesoamericanos dessa região (em particular os tzotzils, tzeltales, tojolabales e os choles) e sua tradição cosmoecológica ancestral, mas também a uma longa história de resistência anticolonial. Se o indigenismo zapatista jamais é essencializado e mantém aberto seu potencial de universalização, é porque ele se dá menos na chave étnica e mais na memória de cinco séculos de lutas contra a “sangria do Novo Mundo”,2 o que compreende o colonialismo interno das novas elites mestiças do México independente, que se arrogou o direito de representação dos indígenas e confiscou suas terras e modos de vida. Há o papel decisivo da Igreja – o do catolicismo sincrético típico do México e da versão local da teologia da libertação, a “Igreja dos pobres” inaugurada no Peru nos anos 1960 –, que também remete à memória colonial mexicana, já que desde o século XVI os únicos defensores dos indígenas contra os conquistadores foram os religiosos, como Bartolomé de las Casas e o bispo Vasco de Quiroga, com seu projeto de uma “república dos índios”.

Há sem dúvida um elemento marxista-leninista disparador, oriundo das guerrilhas dos anos 1960-1970, mas amadurecido após 1994 na luta antissistêmica e aberta contra o neoliberalismo, a pilhagem dos recursos naturais e a mercantilização de todas as formas de vida que pratica. Há ainda componentes menos óbvios, de tipo libertário e principalmente antipatriarcal, como o princípio zapatista da igualdade radical de gênero, que remete a uma filiação pré-colonial. Sem esquecer os intercâmbios com uma vasta rede internacional de apoio, convidada a comparecer aos encontros anuais: dezenas de músicos e grupos de rap e ska com refrões zapatistas (de Rage Against the Machine a Manu Chao, passando por Nana Pancha do México e por Pepe Hasegawa do Japão); milhares de ativistas e intelectuais que participaram dessa construção, como os escritores José Saramago, Gabriel García Márquez, John Berger e Umberto Eco, e os acadêmicos Alain Touraine e Noam Chomsky; além de outros famosos, como o ecologista José Bové, o cineasta Oliver Stone ou ainda Danielle Mitterrand. São inúmeros os simpatizantes do zapatismo, ou “zapatizantes”.

Há ainda a história nacional mexicana, com seu orgulho e singularidades. O projeto zapatista não é de secessão, de independência contranacional. A cada reunião do Congresso Nacional Indígena (CNI), criado em 1996, o hino nacional ressoa antes dos cantos zapatistas, e o estandarte tricolor do país se move ao vento ao lado da bandeira preta e vermelha. “Não pensamos em formar um Estado dentro de um Estado, e sim um lugar onde podemos ser livres”, repetem os comandantes do EZLN durante suas marchas pelo país. Esse patriotismo combativo é herança política de dois séculos de lutas, desde a independência em 1810. É a herança homônima, antes de mais nada, do chefe agrário Emiliano Zapata, general do Exército Libertador do Sul, que, antes de ser sufocado em 1919, se opôs à tradição latifundiária com o Plano de Ayala para a redistribuição das terras e a democracia local, vigente por alguns anos durante a “primeira república social dos tempos modernos”,3 nas palavras do revolucionário belgo-russo Victor Serge.

Para além disso, figura a superpolitização de um país com uma rede associativa e militante de rara densidade, onde o combate pelo estatuto comunal da terra (o ejido) perdura há mais de século. No México, misturam-se, simultaneamente aos corporativismos oficiais (principalmente do partido-Estado, o PRI), a mobilização permanente e retórica da justiça social e diversas insurgências autênticas cuja repressão sangrenta permanece na memória coletiva: resistências urbanas no fim do século XX, como o Movimento Urbano Popular e as Assembleias de Bairro dos anos 1970-1980, estudantes maoistas estabelecidos no campo ou ainda autogestões municipais mais ou menos em ruptura. Assim, o “coquetel” zapatista é uma combinação da igualdade e da diferença; de uma herança comunista de base; e da promoção incansável da diversidade étnica, cultural, sexual – eixos ainda fortemente divergentes em movimentos de esquerda na Europa e América do Norte, onde o “movimentismo” mais ou menos identitário das minorias e o velho unitarismo social, mais ou menos universalista, continuam desconfiando um do outro.

UM JUMENTO CHAMADO INTERNET

A unidade zapatista, contudo, deve-se tanto a essa mistura heteróclita quanto à ideia de conjunto, ao estilo de luta, à forma de vida que é construída. Os traços caraterísticos desta última, que resumem o conceito cardinal de dignidade, aparecem não apenas nas explicações formuladas pelos indígenas, mas também em textos menos evidentes, de registros variados (panfletos, discursos, contos de fadas, canções, poesias).

São esses atributos que tornaram célebre o ex-subcomandante Marcos: modéstia, solenidade, orgulho resistente, determinação marcial, doçura nos gestos, relação de paciência e placidez com o tempo, admissão da utopia e também da fragilidade, lirismo cósmico de herança indígena e senso de humor, inclusive de si mesmo. É esse mesmo senso de humor que em outros tempos incitou Marcos a chamar seu jumento de “Internet”, para enviar em 1995 suas mensagens ao governo por esse meio de comunicação ancestral, ou ainda o EZLN a chamar de “força aérea do Exército Zapatista” as dezenas de aviõezinhos de papel com mensagens dissuasivas jogados nas trincheiras militares. Em resumo, é tanto Karl Marx quanto os irmãos comediantes de mesmo nome; é menos Che Guevara e mais o antropólogo engajado Pierre Clastres; menos Lenin que Ivan Illich; menos o dogma que o pragmatismo do combate; e menos a ditadura do proletariado e mais a tradição local do “realismo maravilhoso” (essa mistura de realismo social e estética mágica promovida pelo escritor cubano Alejo Carpentier) colocada a serviço da autonomia política. Marcos, antes de tornar-se Galeano, repetia que os melhores textos ocidentais de teoria política eram, para ele, Dom Quixote, de Cervantes; Macbeth, de Shakespeare; e os romances de Lewis Carroll.

Por trás da fórmula zapatista “abaixo e à esquerda” (desde abajo y a la izquierda), está a unidade de uma ímpar coerência ética e existencial. Se o zapatismo já foi visto como “a primeira utopia democrática universal que vem do Sul”,4 é em razão dessa reinvenção do fazer político, das formas de sentir e lutar. Mas é também porque sua vitória de longo prazo é a da persistência de uma luta de várias décadas, em que os inimigos e a pressão da realidade eram o maior motor da busca pela autonomia. Longa erradicação forçada, e não decretada, da tutela estatal: a autonomia negociada fracassou, enquanto a autonomia a se construir se impôs.

Formado clandestinamente em 1983, o EZLN ocupou as grandes cidades do estado de Chiapas no dia 1º de janeiro de 1994. Seguiram-se doze dias de combate e em seguida 23 anos de uma “antiguerrilha”, nas palavras de Yvon Le Bot.5 Após o cessar-fogo, um diálogo de paz foi mediado pelo bispo da diocese de Chiapas, Samuel Ruiz García, da catedral de San Cristóbal. O processo foi interrompido pela ofensiva militar de 1995, que precedeu uma longa e desgastante guerra empreendida por paramilitares bancados pelo governo. Chiapas se transformou no maior epicentro de movimentos sociais, inspirou a disseminação de um “zapatismo civil” primeiro em Oaxaca e depois no México todo, acolheu a Convenção Nacional Democrática de 1994 e diversos eventos e encontros internacionais e estimulou as esquerdas do país (que conquistaram a prefeitura da capital em 1997). Mas os assassinatos políticos foram muitos, e a paramilitarização se intensificou – culminando no massacre de 45 indígenas, em sua maioria mulheres e crianças, no acampamento de Acteal, no fim de 1997.

Entretanto, a aliança com a esquerda oficial, notadamente o Partido da Revolução Democrática (PRD) de Andrés Manuel López Obrador, acabou fracassando, e logo vieram a “distância e o divórcio”6 de 1999. Os acordos firmados em fevereiro de 1996 em San Andrés sobre os “direitos e culturas indígenas” (pela autogestão comunitária e o desenvolvimento autônomo) permaneceram letra morta, recusados pelo presidente Ernesto Zedillo e jamais incorporados à Constituição. A esperança renasceu em 2000, com a eleição de Vicente Fox, primeiro presidente não pertencente ao PRI. A imensa Marcha da Cor da Terra, de 2001, não foi suficiente para obter ganho de causa, apesar da intervenção diante do Congresso da comandante Ester. Nesse momento, também os zapatistas decidiram romper com o ciclo de negociações do mal gobierno (mau governo). Em agosto de 2003, lançaram em Oventic a construção da autonomia política criando os caracoles.

“A outra campanha”, espirituosa e amarga, levada adiante por Marcos em 2006, antes das eleições roubadas do PRD por uma fraude do PRI, isolou ainda mais os zapatistas, que construíam laboriosamente sua autonomia. O vazio de 2009-2012 alimentou rumores de um desentendimento maciço dentro do zapatismo e da morte de Marcos. Os zapatistas acabaram com o silêncio em 21 de dezembro de 2012, dia da mudança do ciclo do calendário maia, ocupando silenciosamente todas as cidades que tinham invadido em 1994. Esse silêncio “é o barulho do mundo deles que afunda, enquanto o nosso ressurge”, declarava o comunicado do EZLN. Assim inauguraram uma nova etapa da luta, com a constituição da rede informal Sexta, aberta a todas as lutas sociais do mundo, e a chegada do subcomandante Moisés, sucessor de Marcos/Galeano na liderança do EZLN. A história do zapatismo em Chiapas se define em três palavras, que resumem as modalidades de sua relação com o Estado: contra (durante doze dias de guerra), com (nove anos de tentativa de acordo) e, desde 2003, sem.

Foi no término desse itinerário, e no princípio da nova fase, que veio a decisão tomada no fim de 2016 pelo CNI, em acordo com as comunidades, de formar um Conselho Indígena de Governo. Sua representante (será uma mulher) deverá ser nomeada em 2017 e será também candidata às eleições presidenciais em 2018. Pouco compreendida e ainda em aprovação pelo comitê eleitoral federal, a decisão do CNI deixou alguns estupefatos e outros incomodados – dos defensores de uma secessão integral, que enxergam a decisão como uma submissão ao jogo eleitoral, à esquerda nacional com olhos no pleito, em particular o Movimento de Regeneração Nacional (Morena), de López Obrador, que se exasperou com as primeiras pesquisas atribuindo 20% das intenções de voto à candidata desconhecida, como se fosse mais um golpe do zapatismo contra a esquerda governamental do maior país hispanófono do mundo, mais uma desestabilização infringida pelo movimento ao longo do último quarto de século.

O sentido dessa decisão, contudo, é outro: “Não é pelo poder”, repete o CNI, e sim para afirmar a força de 56 etnias autóctones no México (16 milhões de habitantes, ou 14% da população) e, mais amplamente, de “todas as minorias”. A iniciativa visa tornar conhecida a opressão e sua resistência, encorajando por todo o país formas de organização autônoma. A iniciativa pretende espalhar o vírus da oposição ao capitalismo e ocupar o terreno do adversário para revelar a todos os “indígenas” do mundo seu estado de decomposição terminal, assim como a possibilidade atestada de viver sem ele.

O contexto é a chave, em um país onde o tráfico de drogas (que movimenta US$ 50 bilhões) produziu, nos últimos anos, 200 mil mortos e 500 mil deslocados, e onde partidos e instituições permanecem amplamente corrompidos. O desprezo expresso pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, deveria incitar, como espera o filósofo mexicano Enrique Dussel, “a recomeçar do zero, com um projeto de autonomia e descolonização dos espíritos que rompa com o eurocentrismo das elites”.7 A decisão de formar um Conselho Indígena de Governo e apresentar uma candidata foi justificada, no comunicado de 29 de outubro de 2016,8 por uma longa lista de lutas indígenas que atravessam o país (contra o Estado, multinacionais e o cartel da droga) – às quais o CNI se declara solidário, convocando-as para uma coordenação dos combates, para romper com o isolamento de cada uma delas. O essencial está nessa relação voluntária com o exterior, com as resistências não zapatistas, com as quais o diálogo é contínuo, mas a cooperação, intermitente, desde 1994.

Aos ocidentais que os visitam, aos membros da IV Internacional, aos movimentos dos quatro cantos do mundo cuja construção de autonomia se aproxima da experiência zapatista (os curdos da “29ª revolta”, os sul-africanos de Abahlali baseMjondolo (AbM) nas townships da Cidade do Cabo ou a internacional camponesa Via Campesina), os zapatistas sempre fizeram a seguinte pergunta: “¿Y tu, qué?” (E você, o que vai fazer?). É a mesma questão que agora fazem às resistências indígenas locais insurgentes em todos os estados do México, de Michoacán a Sonora, contra os conglomerados mineradores, as expropriações turísticas, as pilhagens dos narcos e o sequestro de estudantes. E também aos movimentos sociais nacionais que os acompanham, como as greves docentes de 2016 e as manifestações contra o aumento do preço da gasolina (gasolinazo), no início de 2017.

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Se essa candidatura tem como objetivo colocar o zapatismo em cena e ampliar a rede das solidariedades ativas, é porque ainda há muitos obstáculos e inimigos tramando emboscadas – não à toa o Exército federal ainda tem algumas dezenas de postos ao redor das cinco zonas zapatistas. Os paramilitares continuam a semear o terror, como os enfrentamentos violentos em La Realidad, em maio de 2014, e depois em La Garrucha, em 2015. Os projetos das multinacionais são mais numerosos que nunca em Chiapas: o estado mais pobre do México, porém principal fornecedor de petróleo, café e energia elétrica, já cedeu quase 20% de sua superfície a concessões de mineração ou projetos turísticos. E nas próprias zonas zapatistas, onde convivem “bases de apoio” e não zapatistas, os subsídios de partidos, os “caciques” (latifundiários) que embolsam fortunas dos grupos mineradores aos quais cedem suas terras, representam ameaças cotidianas, diretas ou psicológicas, para comunidades com equilíbrio econômico e político precário – que se esforçam para não responder às provocações e precipitar uma operação militar.

Diante da barreira do caracol de Morelia, um grupo de partidistas se senta em círculo, bebendo cerveja e tequila ruidosamente de manhã para zombar dos zapatistas que chegam para as assembleias e tentar fazê-los se arrepender da “lei seca”. Contra o orgulho de ter construído a autonomia política, de ter retomado uma cultura e inventado um discurso de combate, de ter demonstrado ao mundo que não eram marionetes ou ventríloquos de Marcos, permanecem as provocações e os ataques morais, as tensões e ameaças, que continuam a pesar sobre a “Fragile Armada”,9 que no entanto, por enquanto, segue firme.

Fonte: Diplomatique.

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