Em 10 anos, covid-19 será como um mero resfriado

Foto: Mauro Pimentel/AFP

Por Nuño Domñinguez.

O mundo acaba de entrar em uma nova fase da pandemia com o início da vacinação maciça, da qual depende boa parte do que acontecerá nos próximos anos com o novo coronavírus. A maioria de especialistas considera que o SARS-CoV-2 nunca mais desaparecerá, mas isto não necessariamente será algo ruim. Quando a maioria da população estiver vacinada, o agente patogênico começará a se atenuar e produzirá uma infecção assintomática para os adultos e apenas um leve resfriado em crianças, segundo um estudo recém-publicado na Science.

Seus autores baseiam essa afirmação num modelo matemático que reproduz a propagação do vírus. Outros especialistas independentes, especialistas em evolução viral e imunologia, respaldam essas conclusões. “Nosso modelo sugere que essa transformação levará entre 1 e 10 anos”, diz Jennie Lavine, pesquisadora da Universidade Emory (Estados Unidos) e primeira autora do estudo, ao EL PAÍS.

O prazo exato dependerá da rapidez de propagação do vírus e do ritmo da vacinação, explica. Também influi um fator mais complexo: durante quanto tempo alguém fica imune à covid-19 grave depois de se infectar ou receber a vacina. “O ideal é que a capacidade de bloquear a doença seja duradoura, mas que a capacidade de transmissão seja mais curta”, detalha Lavine. Há um último fator: quantas infecções ou doses de vacina serão necessárias para gerar uma imunidade forte?

Essa transição marcará a transição de um vírus pandêmico a outro endêmico, ou seja, que sempre estará presente e poderá causar surtos pontuais sem muita virulência.

Os cientistas supõem que o SARS-CoV-2 seja mais parecido com os quatro coronavírus do resfriado já conhecidos do que com os dois coronavírus mais virulentos, o da SARS de 2001 e o da MERS de 2012. Se for assim, quando a maioria da população estiver vacinada, o vírus não poderá continuar causando uma forma grave da doença, pois as vacinas impedirão. Resta ver se as injeções também evitam a transmissão do vírus, algo menos provável. Desta forma, os únicos que continuarão sendo vulneráveis ao vírus serão as crianças que nascerem depois, mas nelas só ocorreriam sintomas leves, semelhantes ao de um resfriado. É o que já acontece com os quatro coronavírus sazonais conhecidos.

Com base no que se sabe dos demais coronavírus do resfriado, os pesquisadores calculam que a primeira infecção em crianças acontecerá entre os três e cinco anos. Elas poderão se reinfectar em anos sucessivos, mas os sintomas seriam cada vez mais leves ou inexistentes. “Estes resultados reforçam a importância de manter as medidas de isolamento até que as campanhas de vacinação durante esta fase pandêmica tenham terminado. É possível que seja necessário continuar a vacinação na fase endêmica”, explicam os autores do trabalho.

Uma das chaves deste possível futuro está em quanto dura a imunidade depois de uma infecção ou da vacinação. Os autores acreditam que ambas protegem da forma grave da doença, mas é possível que não de uma reinfecção leve ?com alguma presença do vírus no organismo e sua possível transmissão. Essa presença do vírus reforçaria as defesas, de forma que a imunidade acabaria sendo maior a cada sucessivo ataque do agente patogênico.

A aparição de variantes mais contagiosas, como a do Reino Unido, pode melhorar as coisas, segundo Lavine. Uma variante que se espalhe mais rapidamente, mas não seja mais letal, reduzirá a mortalidade. Além disso, reforçaria a imunidade da população, pois uma infecção assintomática fortaleceria as defesas. E por último manteria nosso sistema imunológico “atualizado” diante das variantes mais recentes do vírus. Tudo isto poderia mudar se surgir uma variante que cause uma doença de forma mais grave, o que representaria um maior risco para todos os não vacinados. Lavine explica que, baseando-se nos quatro coronavírus do resfriado, não há evidências de que isto possa ocorrer. “Não é impossível, mas não temos nenhuma prova para achar que seja provável”, acrescenta.

“O mais razoável é que nesta década este vírus se torne endêmico e produza só picos sazonais no inverno”, diz ao EL PAÍS o epidemiologista Mark Lipsitch, da Universidade Harvard (EUA). Em maio de 2020, sua equipe calculou que continuará havendo picos de infecção por este coronavírus pelo menos até 2024. O pesquisador embasa assim a sua opinião: “O impacto na saúde pública deste vírus baixará radicalmente quando se der uma de duas condições. A primeira é que, como diz este estudo, a imunidade contra a covid-19 grave seja duradoura e que, além disso, fique reforçada através de reinfecções leves, porque não há uma imunidade total. A segunda é que haja uma cobertura da vacina nas pessoas de mais risco, de forma que a mortalidade caia muitíssimo. Acho provável que o primeiro aconteça em todo o mundo. Os países desenvolvidos terão concluído a vacinação em seis meses ou um ano, e o resto de países um tempo depois”, explica.

Em todo caso, o trabalho se baseia em outra premissa razoável, mas não provada. O SARS-CoV-2 não é o mesmo que seus quatro parentes do resfriado, e não se sabe quanto tempo dura a imunidade contra formas graves da doença. “Embora seja pura especulação, é possível que as pessoas mais velhas não mantenham a imunidade contra o SARS-CoV-2 de uma forma tão efetiva como com os vírus do resfriado”, aponta Lipsitch.

A equipe de Cristina Calvo, chefa de Pediatria do hospital La Paz, em Madri, estudou as infecções por coronavírus catarrais em crianças durante os últimos 14 anos. “Os vírus ou se adaptam e se tornam leves ou desaparecem porque ficam sem hospedeiros”, diz. “O lógico é que vá perdendo patogenicidade e letalidade”, acrescenta.

“Este vírus é praticamente impossível de erradicar”, explica Antoni Trilla, epidemiologista do hospital Clínic de Barcelona. “Concordo que no futuro este vírus vai se parecer mais com os coronavírus do resfriado que com os da SARS e da MERS”, acrescenta.

O vírus não desaparecerá porque sempre poderá encontrar refúgio em algumas pessoas ou em animais. É algo similar ao que já acontece com a gripe, cujo reservatório são as aves selvagens aquáticas e que a cada inverno volta suficientemente alterada para que seja necessária uma vacina nova. Às vezes a gripe é sazonal e pouco grave, e em outras pode ser uma variante pandêmica, como a que matou 50 milhões de pessoas em 1918 e 1919.

Este coronavírus já demonstrou poder saltar de humanos para animais de estimação e criação, como os visons, e recentemente foram detectados dois gorilas do zoológico de San Diego infectados por algum visitante, recorda María Montoya, chefa de Imunologia Viral do Centro de Pesquisa Biológicas Margarida Salas. Além disso, a vacina não protege 100%, então o coronavírus sempre poderá encontrar frestas por onde penetrar. “Se houver falhas na vacinação ou se a segunda dose demorar muito, ou se essa segunda dose não chegar a ser administrada, a proteção não é a ideal, então a pessoa infectada pode não sofrer a doença, mas abrigar o vírus”, explica.

Outro possível reservatório de vírus são as pessoas imunodeprimidas, com defesas debilitadas e nas quais, segundo estudos recentes, o vírus pode sofrer mutações e ganhar certa resistência a alguns anticorpos, as proteínas do sistema imunológico que teoricamente o impedem de entrar nas células para infectar. “É como quando as pessoas não tomam os antibióticos durante os dias prescritos e param na metade; você está selecionando os agentes patogênicos que sobrevivem e que podem se tornar mais resistentes aos tratamentos ou vacinas”, detalha Montoya.

Outro aspecto muito difícil de predizer é a evolução deste vírus. O SARS-CoV-2 muda menos que a gripe. Isto significa que acumula menos mutações em seu genoma cada vez que este se copia dentro de uma célula. Mas é preciso levar em conta que um só vírus pode produzir dezenas de milhares de cópias de si mesmo usando uma só célula humana. E os humanos têm trilhões de células.

E esses números devem ser multiplicados pelo número de infectados em todo mundo, mais de 90 milhões confirmados, embora provavelmente sejam mais. Assim embora mude pouco tem milhões de oportunidades para isso em cada pessoa infectada.

Até agora, o vírus evoluiu de forma natural: quase não havia tratamentos nem vacinas efetivas contra ele. É agora que começa uma segunda fase de sua evolução caracterizada pela pressão a que será submetido pelas vacinas. “As variantes com mutações potencialmente perigosas, como as detectadas no Reino Unido e África do Sul, serão muito mais numerosas assim que a vacinação ganhar velocidade e chegar a cada vez mais gente. O vírus mudará para tentar escapar do sistema imunológico dos vacinados, e aparecerão muitas outras variantes mais complexas. Se o vírus chegar a mudar muito, é possível que seja preciso modificar as vacinas atuais”, adverte Montoya.

O que se observou até o momento permite um moderado otimismo. Um estudo recente demonstrou que a vacina da BioNTech pode neutralizar a variante britânica. A chave está em que a vacina gera anticorpos e células de memória para muitas partes diferentes da proteína da espícula, a protuberância na superfície do coronavírus que serve para uni-lo às células humanas, penetrá-las e sequestrar seu maquinário biológico para se reproduzir. Mesmo que uma ou várias peças dessa proteína sejam alteradas, o sistema imunológico continuará reconhecendo o resto e poderá neutralizar ao vírus.

Outro ponto de incerteza é que este coronavírus é geneticamente mais parecido com os virulentos SARS e MERS que com os do resfriado. “Os coronavírus altamente patogênicos se diferenciam dos leves por terem um maior número de genes acessórios”, diz Isabel Sola, virologista do Centro Nacional de Biotecnologia, ligado ao CSIC (agência espanhola de pesquisa científica). Estes genes costumam contribuir para aumentar a virulência, porque inibem a resposta imunológica inata, a primeira linha de defesa que prepara e promove a resposta imunológica adaptativa, com anticorpos, e os linfócitos T. É possível que enquanto esses genes continuarem no vírus seja mais complicado que ele se torne um vírus que causa infecções leves”, adverte a especialista.

É provável que os humanos estejam assistindo ao nascimento de um vírus novo que nunca mais irá embora, mas que será imensamente mais suportável. “Ainda é impossível saber o destino final deste coronavírus, mas é razoável sugerir que se unirá aos quatro coronavírus endêmicos que nos causam resfriados todos os anos”, opina Miguel Hernán, epidemiologista de Harvard e assessor científico do Governo espanhol. “De fato, é possível que esses coronavírus endêmicos também fossem responsáveis por pestes ou pragas da antiguidade. Eram epidemias mortais na época e são resfriados incômodos agora. Se o potencial endêmico for o resultado final para gerações posteriores, quanto antes conseguirmos vacinar todos os adultos, mais vidas salvaremos nesta geração”, acrescenta.

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