Educação em tempos de “pós-verdade”

pos-verdadePor Christian Ingo Lenz Dunker.

Nos anos 1990, Woody Allen dizia que a realidade podia ser horrível, mas ainda era o único lugar onde se poderia comer um bife decente. Na entrada para os anos 2000, Cypher, o personagem do filme Matrix que decide voltar para o mundo da ilusão, declara: “a ignorância é uma benção”. Portanto, não devíamos nos assustar quando a Oxford Dictionaries (departamento da universidade de Oxford responsável pela elaboração de dicionários) anuncia o termo “pós-verdade” como sendo a palavra do ano de 2016.

Uma longa jornada filosófica e cultural foi necessária para que primeiro aposentássemos a noção de sujeito, depois nos apaixonássemos pelo Real, para finalmente chegar ao estado presente no qual a verdade é apenas mais uma participante do jogo, sem privilégios ou prerrogativas. Entenda-se por verdade tanto a revelação (alethéia) de uma lembrança esquecida, quanto a precisão do testemunho (veritas), e ainda a confiança da promessa (emunah) – por isso a verdade tem três opostos diferentes: a ilusão, a falsidade e a mentira.

A pós-verdade é algo distinto do mero relativismo com sua dispersão de pontos de vista, todos igualmente válidos; ou do pragmatismo, com sua regra maior de que a eficácia e a eficiência impõem-se às nossas melhores representações do mundo. Ela também não é apenas a consagração do cinismo no poder, com sua moral provisória, capaz de gerenciar o pessimismo, no atacado da tragédia humana, em proveito de vantagens obtidas no varejo narcísico. A pós-verdade depende, mas não se resume a esses três vetores da contemporaneidade. Pois ela efetivamente acrescenta uma ruptura entre os três regimes de verdade e seus contrários. O que a pós-verdade ataca é justamente a estrutura de ficção da verdade – ou seja, o fio de fantasia que liga a verdade como confiança e aposta na palavra, a verdade como descoberta e certeza e a verdade como legitimidade e exatidão. É que as três faces da verdade não se ligam senão por uma ficção – de que se pode contar um monte de mentiras dizendo só a verdade, mas também criar muitos fatos sem sentido algum e ainda fazer de conta que o que dizemos agora, neste contexto e segundo estas circunstâncias, não tem nenhuma consequência para o momento vindouro.

A pós-verdade tem muitas implicações políticas, morais e institucionais. Ela afeta cotidianamente nossos laços amorosos e nossas formas de sofrimento – principalmente na medida em que essas dependem de descrições, nomeações e narrativas. Mas é na educação que a suspensão da verdade prenuncia um conjunto de efeitos ainda incalculáveis. Imaginemos, para reduzir o problema, o que significaria um professor que superou a problemática da “Escola Sem Partido” porque ingressou em uma nova era de saberes pós-verdadeiros. Seu perfil didático pedagógico poderia ser construído, conjecturalmente, a partir de sete atitudes fundamentais:

1. Advogue que a tecnologia não tolera barreiras, tudo se comunica com tudo conforme a vontade do cliente. Recorra a esquemas holistas e integrativos para mostrar que se permanecemos juntos, confortáveis e amados tudo terminará bem. É mais importante saber quem somos do que o que podemos fazer em conjunto.

2. Confunda a formação de atitude crítica, baseada no cultivo produtivo da incerteza com “circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”*. A opinião pública compra qualquer coisa, inclusive conhecimento verdadeiro.

3. Mostre-se indiferente em questões controversas como neutralidade do conhecimento científico ou do ordenamento jurídico, evite qualquer termo de conotação política tal como “androcêntrico” ou “patriarcal”. Assuntos como desigualdade racial e distribuição de renda são demasiadamente humanos, por isso neles todas as opiniões são igualmente relativas. Seja sempre objetivo: se você dominar os meios e produzir imagem, o efeito de verdade virá por si mesmo.

4. Seja infinitamente tolerante com a expressão de valores, desde que possa controlar suas consequências com o rigor de procedimentos burocráticos segregativos e que a performance seja alcançada ao final do semestre. Lembre-se: seus alunos sabem que você não acredita no que está fazendo, por isso sempre diga coisas impactantes e menospreze autoridades ou especialistas que possam desmenti-las. A vida é um show e a sala de aula o ensaio do espetáculo.

5. Cultive uma atitude estética, humorada e flexível. Mostre, com isso, que é mais importante o quem está falando, com seu carisma e estilo, do que os argumentos em si, as demonstrações ou as provas. Sempre confie que a última palavra e o consenso do momento é o que importa. Divergentes merecem no máximo o tratamento de “inclusão” e no mínimo o desprezo silencioso. Considere que nenhuma conversa que não possa ser resolvida em menos de 15 minutos vale a pena.

6. Use e abuse do trabalho em grupo. Ele permite que os alunos aprendam que, em nome de ideais nobres como colaboração e solidariedade, podemos criar uma indústria da injustiça e da desresponsabilização. A troca de favores espúrios, o plágio e as técnicas de manipulação da concorrência interna serão úteis para a vida que virá.

7. Sempre privilegie a forma ao conteúdo. O método e as técnicas acima de qualquer substância. Apostilas e livros didáticos fazem o trabalho por você. Entenda: sua função é apenas fazer a gestão da sala de aula e cumprir os encargos administrativos. Ensinar é coisa de gente ultrapassada.

* “O que é ‘pós-verdade’, a palavra do ano segundo a Universidade de Oxford“. André Cabette Fábio, Jornal Nexo,  16 de novembro de 2016.

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Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de Psicologia e Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

Fonte: Blog da Boitempo.

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